Dias de prosperidade

São muitos séculos de história para ter a presunção que o dinheiro não traz prosperidade. Traz sim. Mas a prosperidade tem outros caminhos, que nem sempre passam pela riqueza material. Em Macau, longe dos negócios, dos casinos e da política existem um pescador que voltou à terra, um casal que procura ser feliz e um campeão nacional de lançamento de dardo. Estas são as outras faces da prosperidade

 

P-Deus da Riqueza

 

Texto Catarina Domingues | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Acontecia logo nesses primeiros minutos, quando o barco, um daqueles grandes, chegava ao porto. Ainda os passageiros tardavam no convés, à espera que quem de competência fizesse fundear a embarcação, e já os pescadores tinham estacionado as sampanas a jeito. Lá em baixo, à volta desse grande barco, os pescadores equilibravam-se no fundo chato da sampana, esticavam a mão e gritavam por dinheiro. Sem qualquer contacto físico, os visitantes lançavam moedas miúdas à água. E os pescadores mergulhavam.

Acontecia ainda em 1950 em Macau e Hong Kong. “Os pescadores gritavam gum sa, uma corrupção do termo inglês come shore (vir para a costa). Mas a forma como se pronuncia em cantonês é muito parecida a gam sa, que significa areia dourada. O termo era utilizado para pedir dinheiro”, explica Vincent Ho, historiador e professor na Universidade de Macau.

Os pescadores nasciam, cresciam, casavam e morriam no mar. Eram a classe mais baixa da estratificação social e alvo de preconceito. Diziam ser os “verdadeiros dragões do mar e vermes miseráveis em terra” e para eles a ideia de riqueza não passava de uma fabulação. Fixar-se em terra era sinal de que tinham prosperado, diz Vincent Ho. “Sinal de que estavam bem na vida e que podiam transferir essa identidade de pobreza para uma pessoa de posses.”

No caso da família Cheong, apenas esta geração cortou com uma tradição de séculos em alto-mar.

 

O homem e o mar

Senta-se para não perder o equilíbrio, assim como quem ainda não perdeu as graças ao mar. Sessenta anos de pesca não se esquecem sem mais nem menos. Cheong Sun Kuang, 89 anos, está em terra há 20.

Fez o que fizeram os pais, o que fizeram os avós. Logo cedo habituou as mãos às redes, o corpo ao barco de uma vida, nove metros de comprimento por quatro de largura. Casou-se com uma pescadora e teve três filhos, todos homens pescadores. A vida era essa. E era muita. Dias passados em alto-mar. Deste lado, apressava-se a vender o peixe entre os estaleiros do Porto Interior. “Éramos muito pobres. Se pudéssemos escolher, mudávamos de vida.”

Nas noites de vigília, ouvia os peixes chorar, “há um período do dia em que eles choram”. Mas nem isso tranquilizava o homem e o mar. “Tínhamos medo dos piratas, eram cruéis, saltavam para o barco, ameaçavam com facas e levavam tudo”. O mar era um repositório gigante de imprevistos e por mais que o povo acredite que a água e o peixe são sinais de riqueza, Cheong nunca engrandeceu da pesca nem encontrou tesouros por aquelas profundezas.

Agora os tempos são outros e de outros, daqueles que controlam a pesca. “Hoje há segurança e só se dedicam à actividade aqueles que têm bom equipamento“, diz Cheong.

A riqueza está nos netos, que foram à escola e trabalham como electricistas. A prosperidade de Cheong está em terra. “Eu concretizei o meu sonho. Tenho uma casa na Travessa de Chan Loc, aqui no Porto Interior. Todas as manhãs vou comer dim sum e passear com os meus amigos no parque.”

O anel de jade até podia ter contribuído para a sorte. Mas não, “não é um amuleto, é apenas decoração”.

 

P-Cheong Sun Kuang

 

A cargo dos deuses

Lá longe da costa eram os deuses que olhavam pelas gentes do mar. As embarcações de pesca levavam na popa pequenos oratórios com imagens esculpidas para os ritos de devoção. O analfabetismo entre os pescadores fazia com que as tradicionais tábuas inscritas fossem substituídas por pequenas esculturas de madeira. Aos deuses era pedida saúde, segurança e riqueza.

Estimulados pela crença popular dos pescadores, os artífices de ídolos sagrados começaram a prosperar em Macau. No início do século XX, só na Rua da Madeira abriram mais de uma dezena de negócios. A Loja de Esculturas de Imagens de Buda e Objectos de Madeira Tai Cheong tem mais de 100 anos e é o mais antigo dos estabelecimentos. “Era comum esculpirmos uma tábua com nove deuses para os pescadores colocarem no barco. Fazíamos em formato pequeno, adequado ao tamanho das embarcações”, relembra Tsang Tak Hang, responsável pelo espaço.

A partir de 1950, com o desenvolvimento económico de Macau e a industrialização do sector, o negócio da pesca tradicional atrofiou e na Rua da Madeira sobreviveram apenas duas lojas. A equipa de artífices de Tsang Tak Hang teve de dar outro uso às madeiras de cânfora e de teca, às lacas especiais e folhas de ouro. “Começámos a fazer esculturas para templos e também para outro tipo de clientes.” Aqueles que aqui vêm e acreditam no poder de divindades como a Deusa da Misericórdia ou o Deus da Riqueza, chegam a pagar 30 mil patacas por uma escultura.

 

P-Tsang Tak Hang

 

Desejo transformado em objecto

Quase todos os noivos de Macau passam por aqui, pelo número 18 da Rua da Tercena, a loja Cocos Chao Io Kei. É assim há muitos anos. Um par de cocos para a família dele, outro para a dela. Pelo menos desde que o senhor Chao se lembra de ser gente. Ele e a mulher preparam os cocos e inscrevem, a tinta vermelha, o símbolo da dupla felicidade (喜喜). “Em chinês a palavra coco diz-se yezi, e pronuncia-se da mesma forma que as palavras avô e criança. Por isso é um fruto auspicioso, representa uma família grande e feliz”, explica a senhora Tung.

Foi também por aqui que Karen Chan e Perkin Lau começaram. Apesar de cristãos, optaram por um casamento misto. “Sou a única filha que manteve a tradição chinesa”, diz Karen.

O coco faz parte de um grupo de objectos simbólicos que se compram antes do casamento. Depois vem o ábaco, para fazerem contas à vida, e ainda uma escova de cabelo e um espelho. A beleza deve ser eterna.

O dia do casamento é feito de símbolos que trazem sorte, muitos filhos e muito dinheiro. Perkin começou o dia com promessas registadas em papel vermelho. “Prometi amá-la, beijá-la diariamente, dar-lhe todo o dinheiro, fazer uma viagem por ano. Prometi muita coisa.”

Nessa manhã, em casa de Karen tudo é vermelho e tudo é dourado, cores auspiciosas. Na cerimónia de chá, oferece-se aos pais uma infusão de tâmaras e sementes de lótus, que representam fertilidade. No caso de Karen, o primeiro vestido era branco de véu e grinalda, o segundo de cor vermelha com bordados dourados. As pulseiras de ouro e os laissis – pequenos envelopes vermelhos com dinheiro que recebem da família – vão trazer sorte e riqueza.

A caminho da Igreja de Santo António carregam um guarda-sol vermelho, para proteger o casal de todos os males. Para trás, à cabeceira da família materna, ficam as esculturas a porcelana das três divindades estelares. “Representam a felicidade, a prosperidade e a longevidade, tudo aquilo que uma pessoa quer alcançar na vida”, diz Karen.

 

P-Vendedor de cocos

 

Viver muitos anos

Seis anos depois, Perkin prometeu e cumpriu. Beija Karen diariamente, repete juras de amor e ainda há pouco fizeram mais uma viagem à Europa. Só a parte do dinheiro é que não é bem assim. “Para nós o dinheiro não é o mais importante.” Também para eles, ainda jovens, os tempos e as vontades são outras. “Agora as pessoas só pensam em dinheiro e em vestir roupas de marca, é tudo muito superficial”, diz Karen. “Se fizerem a festa de casamento num restaurante de três ou quatro estrelas não se sentem respeitadas.”

Perkin e Karen acreditam que para se ser próspero é preciso ser feliz. Para se ser feliz é preciso viver muitos anos. E é fácil imaginar o casal, lá longe no tempo, ainda entre estas paredes, tons esverdeados, ainda sentados neste mesmo sofá na Rua de Coimbra, na Taipa, onde moram.

 

Ser-se respeitado

Quando Ning Ziheng nasceu, a cidade de Hezhou era ainda um registo tímido nos mapas da Região Autónoma de Guangxi. Nesses anos 1960, os pais de Ning  trabalhavam numa fábrica de cerâmica. “Éramos pobres, mas a minha família sempre teve a ideia de que a educação podia mudar uma vida”, relembra agora o professor do Instituto Politécnico de Macau (IPM). Ao contrário dos colegas da primária, que abandonavam a escola para trabalhar, o destino de Ning passava pelo estudo e pelo desporto. “Um treinador levou-me para uma escola especial, onde se treinavam futuros campeões desportivos.”

A 600 quilómetros de casa, na Escola Provincial de Desporto de Nanning, especializou-se no lançamento de dardo e tornou-se, em 1980, campeão nacional da modalidade em juvenis.

Esses pedaços de memória sabem tão bem que não há como esquecer quando, em 1984, recebeu o primeiro salário como professor. “Comprei um gravador. Nessa altura era um luxo, mas eu queria aprender inglês e estudar lá fora.”

Ao longo da carreira ajudou sempre a família. E os outros, tinha de ajudar os outros. E por isso dedicou-se à educação. “Queria apoiar os jovens para que conseguissem algo da vida.”

Foi como professor que chegou a Macau em 1994. Dessa primeira vez ficou três anos. “Precisavam de um professor que falasse inglês e na faculdade, onde eu trabalhava em Cantão, não havia ninguém.” Só no ano da transição regressou ao IPM, onde trabalha até hoje como professor de Biomecânica no Desporto e de Aprendizagem e Controlo Motor. Do doutoramento, que entretanto realizou em Portugal, ganhou o gosto pelo golfe e pelo ensino da modalidade. Aos títulos de Nanning, junta agora outros quantos de golfe. Essa é e verdadeira riqueza da vida, “ter um trabalho que também é um passatempo”.

Para Ning Ziheng a prosperidade não está ligada à riqueza. “Para mim só faz sentido falar de prosperidade moral. Ser respeitado e dedicar o meu trabalho aos meus alunos e família.”

 

P-Ning Ziheng

 

A dignidade de um cargo

A educação tem, desde tempos antigos, um peso importante na cultura chinesa. “A educação expressava o estatuto social. Quem passava os Exames Imperiais era mais respeitado porque tinha um emprego estável. Nos tempos que correm é o mesmo, com educação arranja-se um emprego melhor”, explica o historiador Vincent Ho.

De acordo com Ana Cristina Alves, doutorada em Filosofia da Cultura Chinesa, a prosperidade só colateralmente está ligada à riqueza. “Rezava-se e reza-se à Divindade da Prosperidade para a obtenção de um bom cargo, que possa dignificar a pessoa que o possui.”

Ana Cristina Alves acredita que o mais importante para um chinês é a dignidade. “Importante é poder estar na vida de um modo digno, de cabeça erguida, de maneira a proteger a família e auxiliar os amigos. Ora, tal apenas se conseguia tanto na China tradicional como na actual, com um cargo que possibilite uma existência próspera e equilibrada.”

 

Superstição no desporto

Para prosperar no desporto é preciso treino e talento, é certo. E de levar à séria algumas superstições. Neste momento Ning Ziheng, professor de Biomecânica no Desporto e de Aprendizagem e Controlo Motor do Instituto Politécnico de Macau, está a acompanhar o trabalho de oito alunos, que estudam a superstição no desporto. No atletismo, quando se começa uma corrida “deve-se partir sempre do meio da pista, mas nunca do número quatro”. Em chinês a palavra quatro lê-se da mesma forma que a palavra morte. É um número que atrai o azar na cultura chinesa. “O melhor é optar pela pista número cinco”, revela Ning Ziheng.

 

Superstição no negócio

Ana Tique é responsável pela TopWine, uma empresa de exportação de vinhos de pequenos produtores portugueses. A empresa vende sobretudo para o mercado local, Hong Kong, China e Japão.

Tudo é pensado, desde as cores vermelhas e douradas dos rótulos até ao design. “Os chineses gostam de brasões e castelos nas garrafas, é sinal de estatuto social, de riqueza.” Além disso, “em situações promocionais os produtos têm o número oito no preço, por exemplo custam 288 ou 388 patacas”.

Na cultura chinesa, o número oito é associado à riqueza e por isso é um número auspicioso. “Recentemente numa feira em Pequim uma senhora comprou todos os nossos vinhos do ano de 2008.”

 

P-Ana Tique

 

PROSPERIDADE

s. f.

1. Qualidade ou estado do que é próspero.

2. Felicidade; ventura

* Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

 

A religião e o jogo: uma troca de favores

Nos últimos anos, o número de visitantes dos templos tem vindo a subir. O historiador Vincent Ho acredita que o aumento está relacionado com a liberalização do jogo em Macau. “Onde é que estão os novos casinos? Estão no Cotai. Também são os templos da Taipa que estão mais cheios. Os jogadores vão pedir sorte ao jogo.” Ho explica que durante a Revolução Cultural muitos dos templos na China foram destruídos e por isso os locais de culto mais antigos de Macau são muito procurados. “Para um chinês, quanto mais antigo for um templo, melhor.”
O poder da palavra

Há palavras na língua chinesa que por homofonia (semelhança de sons ou de pronúncia) são auspiciosas.

P-Quadro

 

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