Os vinhos topo de gama produzidos na China estão em alta, com um crescente reconhecimento internacional. À Revista Macau, dois especialistas apontam que, mais do que uma moda, tal reflecte uma evolução consistente – e promissora – do sector vitivinícola chinês
Texto Viviana Chan
A região de Bordeaux, em França, o Vale do Douro, em Portugal, o Napa Valley, nos Estados Unidos… e Ningxia, na China? Tradicionalmente encarado como um importante mercado de importação de vinhos “premium”, a China está agora a trabalhar para se posicionar também como um produtor de relevo neste segmento.
Luís Herédia, fundador e director da Vinomac Lda., empresa de distribuição e importação de vinhos com sede em Macau, é um dos especialistas que têm acompanhado de perto este fenómeno. A Vinomac representa localmente aquele que é um dos mais destacados produtores da Região Autónoma da Etnia Hui de Ningxia, a Xige Estate, que tem diversos vinhos avaliados com mais de 90 pontos – numa escala até 100 – pela reputada publicação especializada “Robert Parker Wine Advocate”.
“Está a haver uma onda de aceitação e de reconhecimento da qualidade do vinho chinês, com o próprio mercado interno a valorizar os seus produtos”, afirma Luís Herédia. O especialista nota que as castas de uva Cabernet Gernischt e Marselan estão a tornar-se prevalecentes no âmbito da indústria vitivinícola do país, contribuindo para a sua diferenciação e a definição de uma identidade nacional, da mesma forma que a casta Touriga Nacional é associada a Portugal, a Shiraz à Austrália ou a Malbec à Argentina.

O também vice-presidente da Confraria dos Enófilos de Macau, que lecciona há décadas cursos relacionados com vinho na Universidade de Turismo de Macau – anteriormente Instituto de Formação Turística –, acredita que a qualidade dos vinhos chineses já atingiu padrões internacionais. Isso reflecte-se nas certificações obtidas ao longo dos últimos anos por vários produtores, bem como num foco na sustentabilidade.
Luís Herédia recorda que vários vestígios arqueológicos confirmam que a produção de vinho na China remonta há vários milénios. A vitivinicultura moderna no país, no entanto, tem uma história mais curta, com cerca de 140 anos. Só a partir da segunda metade do século XX, especialmente com a modernização e abertura da economia chinesa, iniciadas no final da década de 1970, é que começou a haver um desenvolvimento apreciável no sector. Para tal contribuiu a entrada de grandes empresas internacionais, através de colaborações com parceiros locais, assim como a chegada de peritos estrangeiros e também um assinalável investimento local.
O especialista destaca a evolução verificada desde então, incluindo a introdução de tecnologia de ponta para elevar os níveis de produtividade, a formação em França e nos Estados Unidos de profissionais especializados e a colaboração com enólogos internacionais. Localmente, o sector universitário passou também a apostar nesta área, com o lançamento de cursos ligados à enologia e vinicultura.
“Nos últimos 40 anos, como em todos os sectores na China, o desenvolvimento foi extraordinário”, considera Luís Herédia. “Em particular, no sector agrícola, incluindo no vinho, houve um progresso notável.” Como resultado, o país tem vindo gradualmente a afirmar-se como capaz de produzir vinhos de qualidade mundial, especialmente em regiões como Shandong, Xinjiang e Ningxia, refere.
Para ilustrar esta evolução, o especialista nota a escolha de servir vinho “premium” de produção chinesa ao presidente francês, Emmanuel Macron, aquando das suas últimas visitas à China. Este gesto, na opinião de Luís Herédia, é emblemático, até porque a França é afamada mundialmente pela qualidade dos seus vinhos, não poucas vezes utilizados como “arma” de “soft power” no campo diplomático.
Estimular o mercado doméstico
De acordo com o mais recente relatório anual da Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV), a China era, em 2023, o terceiro país do mundo com a maior área total de vinha: cerca de 756.000 hectares, fruto de um crescimento particularmente acelerado de 2000 a 2015. Para tal contribuíram gigantes locais como a Yantai Changyu Pioneer Wine Co. Ltd. e a China Great Wall Wine Co. Ltd., ambas ligadas à produção de vinho de mesa comercializado a preços relativamente acessíveis.

A China é o maior produtor de vinho na Ásia, com um volume total de 320 milhões de litros em 2023, ficando na 15.ª posição a nível mundial – ainda assim, menos de metade da produção registada em Portugal no mesmo ano e menos de um décimo do que foi então produzido em mercados como a França ou a Itália, de acordo com dados da OIV.
Apesar de uma evolução notável num curto período, os vinhos topo de gama produzidos na China ainda enfrentam desafios. Segundo explica Luís Herédia, o mercado global é bastante competitivo, com uma panóplia de marcas já estabelecidas, especialmente de produtores europeus, mas também de origens como a Austrália, o Chile e a Argentina.
“Os consumidores ainda estão muito ligados aos vinhos franceses, italianos e australianos. Porém, o vinho chinês já tem um nível de qualidade muito elevado e, com o tempo, isso será reconhecido”, acredita, explicando que esse é um processo que já está em curso.

“Está a haver uma onda de aceitação e de reconhecimento da qualidade do vinho chinês, com o próprio mercado interno a valorizar os seus produtos”
LUÍS HERÉDIA
ESPECIALISTA EM VINHOS E FUNDADOR DA EMPRESA DE DISTRIBUIÇÃO DE VINHOS VINOMAC LDA.
Um dos principais espaços para os vinhos “premium” chineses crescerem é o mercado doméstico. Embora o país seja um dos maiores consumidores mundiais de vinho em termos absolutos, fazendo parte do top-10 global, com 680 milhões de litros consumidos em 2023, os valores de consumo per capita são relativamente baixos. Os registos mais recentes da OIV apontam para uma média de 0,6 litros por pessoa em 2023, em contraste com países como Portugal, que liderava o ranking, com 61,7 litros anuais per capita. Ou seja, aponta Luís Herédia, existe uma margem significativa de expansão na China, até porque o país atravessa um momento de alterações no que toca aos padrões de consumo de vinho importado, o que pode ser vantajoso para os produtores locais.
“A China tem cerca de 1,4 mil milhões de pessoas e o consumo de vinho ainda está na fase inicial”, explica. “O mercado está a crescer, mas é um processo que leva tempo. As pessoas precisam de aprender, entender e incorporar o vinho nas suas vidas e na gastronomia local.”
Ainda assim, o valor actual do mercado chinês no que toca ao segmento dos vinhos “premium” é já bastante atractivo. Segundo um estudo de Outubro passado da consultora Euromonitor International, as vendas do sector para 2024 – incluindo também champanhes e bebidas espirituosas – estavam projectadas atingir 853,3 mil milhões de renminbi, um aumento anual de cerca de três por cento.
Quantidade e qualidade
Entre os obstáculos enfrentados pela produção de vinhos “premium” na China está o facto de as principais regiões produtoras se situarem em áreas relativamente remotas, com climas desafiantes. No entanto, os produtores locais têm feito esforços consideráveis e a capacidade de montar projectos de sucesso e de enfrentar as dificuldades é cada vez mais elevada, refere Luís Herédia. De resto, nos últimos anos, houve uma tendência de consolidação no que toca às empresas envolvidas no sector, em benefício de projectos de longo prazo e com acesso a maiores recursos.
“Fazer vinho na China não é fácil”, admite o especialista. “Em regiões como Xinjiang e Ningxia, o trabalho necessário para cuidar das vinhas durante o Inverno – enterrando-as e depois desenterrando-as – é árduo e exige um grande esforço”, diz. “No entanto, isso resulta em vinhos de qualidade excepcional.”
Outra questão prende-se com a localização destas regiões, na parte ocidental da China, longe dos grandes centros urbanos chineses. Isso eleva os custos de produção e logística, desde a importação de barris para envelhecer o vinho à introdução de maquinaria pesada especializada.

Depois, há a questão associada à criação de uma cultura local ligada à vinicultura e à produção de vinho, que demora gerações a consolidar-se. Luís Herédia sublinha a importância desse património imaterial, até para criar “estórias” em torno de cada marca, que ajudem a criar identidades próprias que possam ser utilizadas para efeitos promocionais.
“Com uma aceitação crescente por parte das comunidades chinesas no exterior, presentes na Europa, Estados Unidos ou Austrália, os vinhos chineses começarão a ser mais consumidos globalmente”, acredita o especialista. “É um movimento natural: assim como os portugueses em Macau consomem o vinho do seu próprio país, os chineses vão começar a perceber que o vinho da sua terra tem qualidade e este será cada vez mais procurado.”
A mudança de paradigma está em curso particularmente junto das novas gerações de consumidores, mais abertas a experimentarem coisas diferentes e a procurarem entender as características dos vinhos produzidos na China. De acordo com Luís Herédia, vários produtores locais têm ajustado o perfil dos seus produtos para satisfazer um tipo de cliente que prefere vinhos mais suaves, frutados e com menor acidez. “Os consumidores mais jovens não estão acostumados à acidez e taninos elevados dos vinhos mais tradicionais” da Europa, explica. “Por isso, os produtores chineses têm vindo a criar vinhos mais acessíveis e agradáveis para esses clientes.”
Crescimento sustentável
Adolphus Foo, fundador da Associação dos Escanções de Macau, partilha o optimismo de Luís Herédia quanto ao futuro dos vinhos topo de gama chineses. “A percepção e a aceitação de vinhos ‘premium’ entre os consumidores chineses passaram por uma transformação fascinante nos últimos anos”, nota.
O especialista acrescenta: “Um dos desenvolvimentos mais empolgantes tem sido o surgimento de empresas vitivinícolas locais que produzem vinhos excepcionais, capazes de competir no palco mundial”, muitos dos quais premiados em competições internacionais.
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Com mais de 30 anos de experiência no sector, Adolphus Foo observa que regiões que eram relativamente desconhecidas da maioria dos apreciadores de vinho há apenas uma década estão hoje em destaque. Por exemplo, conseguem estar representadas nas cartas de restaurantes de luxo um pouco por todo o mundo, um salto notável em termos de prestígio, diz.
“Vários factores-chave impulsionam essa mudança”, afirma, enfatizando o papel dos sommeliers e profissionais do sector, nomeadamente na promoção de vinhos chineses junto dos seus clientes. Macau, em particular, tem vindo a afirmar-se como um ponto de referência nesse campo, com vários resorts e restaurantes de topo a levarem a cabo regularmente degustações exclusivas e eventos destinados a elevar o perfil dos vinhos chineses, incluindo competições.
A isto somam-se iniciativas governamentais por parte das autoridades chinesas e o envolvimento de associações do sector. O especialista acredita que esses esforços têm vindo a estabelecer uma base sólida para o crescimento sustentado deste segmento.
Uma oportunidade referida por Adolphus Foo prende-se com as alterações no comportamento dos consumidores chineses em relação à procura por vinhos “premium” estrangeiros. As novas gerações, em particular, estão a dedicar mais atenção às diversas regiões vinícolas chinesas e respectivas castas, considera. Como observa o especialista, os consumidores mais jovens estão menos focados no vinho como símbolo de estatuto social e mais interessados em explorar a bebida como forma de prazer hedónico.

“Um dos desenvolvimentos mais empolgantes tem sido o surgimento de empresas vitivinícolas locais que produzem vinhos excepcionais, capazes de competir no palco mundial”
ADOLPHUS FOO
FUNDADOR DA ASSOCIAÇÃO DOS ESCANÇÕES DE MACAU
Ainda assim, Adolphus Foo admite que a cultura chinesa de oferta de presentes em festivais e ocasiões de negócios continua a ser um aspecto importante em relação ao consumo de vinhos “premium” na China. Destacam-se aqui os vinhos importados, especialmente de França, tradicionalmente valorizados como oferendas de prestígio. No entanto, o especialista está optimista quanto à crescente valorização neste âmbito dos vinhos topo de gama chineses, marcando uma alteração cultural significativa. “Essa mudança sublinha o crescente orgulho nos vinhos produzidos localmente e a sua capacidade em competir com marcas internacionais em termos de qualidade e prestígio”, enfatiza.
Parcerias ‘win-win’
No percurso de ascensão dos vinhos “premium” produzidos na China, é difícil ignorar o papel de investimentos levados a cabo no sector por empresas ocidentais, usualmente em “joint ventures” com parceiros locais. Esse é o caso da empresa vitivinícola Ao Yun, com produção na província de Yunnan, a qual é participada pelo grupo francês de bens de consumo de luxo LVMH Moët Hennessy Louis Vuitton SE. Outro exemplo é a produtora Domaine de Long Dai, localizada na província de Shandong e associada a outro “gigante” francês do sector, o grupo Domaines Barons de Rothschild, responsável por alguns dos vinhos mais conceituados em todo o mundo.
Adolphus Foo explica que o perfil dos vinhos produzidos nestas propriedades é alavancado pelo prestígio das empresas-mãe estrangeiras. Tal, acrescenta, tem desempenhado um papel significativo na reconfiguração das percepções sobre os vinhos chineses. Por outro lado, esses projectos, ao colocarem o enfâse na singularidade dos “terroirs” da China – isto é, nas suas condições naturais, desde o solo à topografia e clima –, ajudam a definir estilos próprios e a promover o potencial do sector vitivinícola do país.

Apesar dos desenvolvimentos promissores, Adolphus Foo enfatiza que ainda há muito a fazer em termos de “branding” no que toca às marcas chinesas de vinho “premium”. “Ao contrário de marcas icónicas como o Château Lafite Rothschild ou a Penfolds, muitos produtores chineses carecem do património secular e do poder de contar histórias que daí advém, as quais ressoam junto dos consumidores internacionais”, diz. Construir confiança e criar uma narrativa forte para as respectivas marcas será essencial para que os produtores de vinhos chineses compitam de forma efectiva no palco global, considera, acrescentando que é necessário também uma maior aposta em marketing, especialmente junto de mercados mais maduros e estabelecidos.
Ainda assim, Adolphus Foo permanece confiante. “O futuro parece promissor para os vinhos ‘premium’ chineses”, afiança. “À medida que os consumidores desenvolverem uma compreensão mais profunda quanto à produção de vinhos e ganharem maior confiança nas suas preferências, a diferença no que toca às percepções relacionadas com os vinhos domésticos e importados continuará a diminuir.” E conclui: “Essa evolução não só beneficiará os produtores locais, mas também vai enriquecer o panorama global do vinho, ao introduzir estilos e histórias únicas que são distintamente chinesas.”