Cabo Verde assinala este ano meio século de independência, tendo estabelecido relações diplomáticas com a China logo em 1976. Macau destaca-se no relacionamento bilateral, tanto através do seu papel como plataforma de cooperação sino-lusófona, como pela presença de uma comunidade local de origens cabo-verdianas, dinâmica e bem integrada
Texto Marta Melo
Em linha recta, são mais de 13.000 quilómetros, mas a distância que separa Macau de Cabo Verde rapidamente se encurta quando contabilizada em léguas afectivas. Pelo menos, assim o é para a comunidade local com origens cabo-verdianas.
A viver em Macau há mais de três décadas, o advogado cabo-verdiano Álvaro Rodrigues considera que as relações entre a região e o país africano têm sido “boas”. A poucos meses de se assinalarem os 50 anos da independência de Cabo Verde – cuja proclamação ocorreu formalmente a 5 de Julho de 1975 –, o causídico nota que Macau “tem desempenhado um papel importante” nas relações da China não só com o seu país natal, mas também com outros países de língua portuguesa.
Esse papel de plataforma sino-lusófona foi enfatizado pelo Presidente Xi Jinping, durante a sua mais recente visita a Macau, em Dezembro passado, por ocasião do 25.º aniversário do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM). Na altura, Xi Jinping sublinhou o facto de este ser o único local no mundo em que o chinês e o português convivem como línguas oficiais. Álvaro Rodrigues é espelho dessa singularidade, juntando à língua materna, o português, o domínio do cantonense.
Para Nuno Furtado, delegado de Cabo Verde junto do Secretariado Permanente do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa, conhecido como Fórum de Macau e com sede na RAEM, a função da RAEM nas relações entre Cabo Verde e a China tem-se desenvolvido de forma positiva. “Macau tem desempenhado um papel importante no fortalecimento da cooperação em sectores estratégicos”, diz. Entre as áreas que enumera estão os assuntos financeiros, o turismo, o ensino superior e a medicina tradicional chinesa, bem como a arbitragem e a participação em feiras empresariais internacionais.
A RAEM, enquanto sede do Fórum de Macau, “tem sido uma referência na organização de convenções e eventos, proporcionando a Cabo Verde um espaço privilegiado para promover oportunidades de cooperação e investimento”, nota Nuno Furtado.

“Macau tem desempenhado um papel importante no fortalecimento da cooperação [entre a China e Cabo Verde] em sectores estratégicos”
NUNO FURTADO
DELEGADO DE CABO VERDE JUNTO DO SECRETARIADO PERMANENTE DO FÓRUM DE MACAU
Apesar de a cooperação ter já gerado impactos positivos, o representante cabo-verdiano assegura que “há ainda um grande potencial” por explorar. “Com um engajamento mais profundo dos empresários e instituições de Macau, poderemos ampliar as oportunidades nas vertentes económica e social, tornando a relação entre Cabo Verde, Macau e a China ainda mais dinâmica e benéfica para todas as partes”, garante. “Acredito que há espaço para uma actuação mais incisiva de Macau no estímulo ao comércio, no fomento do investimento privado e no reforço das ligações empresariais”, aponta.
Formação como pilar de cooperação
Um dos sectores em que a cooperação entre a RAEM e Cabo Verde tem obtido frutos mais visíveis é a área do ensino superior. Largas dezenas de actuais quadros cabo-verdianos obtiveram os seus graus académicos em Macau, apoiados por bolsas de estudo atribuídas pela Fundação Macau.
Álvaro Rodrigues é um dos primeiros exemplos fruto dessa cooperação, que também tem beneficiado Macau, visto que, como ele, outros cabo-verdianos que vieram para a cidade para estudar acabaram por aqui se radicar. Actualmente sócio sénior de um dos principais escritórios de advocacia da RAEM, Álvaro Rodrigues saiu de Cabo Verde em 1990 para frequentar a licenciatura em Direito da Universidade de Macau (UM), com uma bolsa de estudo da Fundação Macau.
“Temos tido muitos quadros formados em Macau na área do direito, da gestão, da tradução e da administração pública. Isso tem sido muito importante para o desenvolvimento de Cabo Verde”, reconhece.

“Temos tido muitos quadros formados em Macau na área do direito, da gestão, da tradução e da administração pública. Isso tem sido muito importante para o desenvolvimento de Cabo Verde”
ÁLVARO RODRIGUES
ADVOGADO CABO-VERDIANO RADICADO EM MACAU
Em Macau, há actualmente cerca de 60 estudantes cabo-verdianos ligados a instituições de ensino superior locais. Nuno Furtado, do Fórum de Macau, afirma que, apesar de esta presença se ter mantido contínua ao longo do tempo, ainda não foi possível regressar aos números verificados em 2019, antes da pandemia da COVID-19.
Dúnia Rocha está a frequentar o terceiro ano da licenciatura em Medicina e Cirurgia da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (UCTM), contando com o apoio de uma bolsa de estudo da Fundação Macau. “Optei por estudar em Macau pelo facto de ser um local que mantém relações com países de língua portuguesa”, afirma.
Uma das vantagens de estudar na RAEM, aponta, prende-se com a qualidade do sistema de educação, além da possibilidade de beneficiar de uma experiência multicultural. Para Dúnia Rocha, os conhecimentos adquiridos no curso e nas actividades extracurriculares oferecidas pela universidade contribuem para que, no futuro, possa ser uma profissional competente, “podendo assim exercer da melhor forma medicina em Cabo Verde”.
A frequentar o segundo ano da licenciatura em Direito da UM, José Carlos do Rosário considera ter já adquirido em Macau conhecimentos de como interagir com sucesso com pessoas de outras culturas, nomeadamente a chinesa, que lhe “podem ser úteis no futuro”, em termos profissionais. O jovem cabo-verdiano aponta ainda a oportunidade que é dada aos estudantes lusófonos da UM para estágios em escritórios de advocacia da RAEM. “De certa forma, é um ‘networking’ que vamos fazendo”, diz.
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No sexto ano do curso em Medicina e Cirurgia da UCTM e perto de completar os seus estudos em Macau, Elmira Coutinho avalia a experiência de forma positiva, não só pelo contributo para o seu crescimento pessoal e profissional. “Tendo presente que Cabo Verde é um país ainda em processo de desenvolvimento, precisamos de mais pessoas formadas na minha área de estudo e a oportunidade que a Fundação Macau nos dá é excelente para levar novos quadros ao nosso país”, afirma.
O estudante de Direito José Carlos do Rosário recorda que, ao longo dos anos, vários cabo-verdianos passaram por Macau para estudar, aplicando depois os conhecimentos retirados dessa experiência em prol do desenvolvimento do país – muitos acabaram por desempenhar cargos de relevo. “Eu planeio fazer o mesmo”, afirma, com aspirações a ser um alto quadro em Cabo Verde.



Um dos exemplos que o jovem aponta é o de Lívio Lopes, antigo ministro da Administração Interna de Cabo Verde, que, nessas funções, regressaria a Macau em 2009. O político cabo-verdiano, falecido no ano passado, licenciou-se em Direito pela UM, tendo sido colega de Álvaro Rodrigues.
Promoção cultural
A comunidade cabo-verdiana local tem também um papel na divulgação em Macau da cultura do arquipélago, ao abrir portas para os saberes e tradições da nação, mas também ao ajudar na divulgação das oportunidades existentes no país. Uma missão onde ganha destaque a Associação de Amizade Macau-Cabo Verde, fundada há 25 anos, e as participações em eventos anuais como o Festival da Lusofonia, a cargo do Instituto Cultural, ou a Semana Cultural da China e dos Países de Língua Portuguesa, promovida pelo Secretariado Permanente do Fórum de Macau.
“Já desenvolvemos várias vezes actividades culturais, que passam pela música, exposições de pintura e outros aspectos da cultura de Cabo Verde, mas, e porque temos vários cabo-verdianos nas áreas da economia e do direito, também [contribuímos para a] divulgação das características e das oportunidades que o mercado de Cabo Verde possa ter para investidores de Macau” e do resto da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, aponta o médico cardiologista Mário Évora, antigo director clínico do Centro Hospitalar Conde de S. Januário.
Do lado da sociedade da RAEM, o interesse pelo que se faz em Cabo Verde existe. Em Novembro passado, a cidade recebeu o afamado músico, compositor e cantor cabo-verdiano Tito Paris, para um concerto especial em parceria com a Orquestra Chinesa de Macau.
A família Évora foi das primeiras com origens cabo-verdianas a fixarem-se em Macau, no final da década de 1940. Embora sem nunca ter vivido em Cabo Verde, Mário Évora assume-se como um embaixador do país africano. “Sempre que tenho oportunidade, levanto essa bandeira”, diz.
“Cada um de nós, cidadão lusófono em Macau, é embaixador do seu país nesse tipo de relações. Tentamos sempre fazer o nosso melhor para bem representar os respectivos países. É isso que se tem feito”, assegura Álvaro Rodrigues.

“Já desenvolvemos várias vezes actividades culturais, que passam pela música, exposições de pintura e outros aspectos da cultura de Cabo Verde”
MÁRIO ÉVORA
MÉDICO CABO-VERDIANO RADICADO EM MACAU
Mário Évora realça o contributo da comunidade cabo-verdiana, embora esta tenha uma dimensão limitada. “Vai ter efeitos positivos” na relação entre Cabo Verde e a China, afiança.
Já Álvaro Rodrigues defende que, além da vertente cultural, há margem para cooperar noutras áreas. O advogado deposita elevada esperança no novo ministro dos Negócios Estrangeiros, Cooperação e Integração Regional de Cabo Verde, José Filomeno Monteiro, que tomou posse em Outubro passado e desempenhou as funções de cônsul-geral de Cabo Verde em Hong Kong entre 1993 e 2000. “Espero que consiga impulsionar essa relação e capitalizar essa plataforma que Macau pode desempenhar nas relações com Cabo Verde”, sublinha o advogado.