Uma cidade híbrida e fluída, que tem no seu passado e na sua tessitura multicultural os seus maiores activos estratégicos. Para Maria José de Freitas, Macau foi ao longo das últimas três décadas e meia uma casa mui amada, mas também um arrebatador e desafiante laboratório urbano que a colocou no encalço do que se tornaria uma vocação: a salvaguarda do património arquitectónico
Texto Marco Carvalho
Hói-Keang-Ou (海鏡澳). De todos os nomes antigos de Macau, a Baía do Espelho do Mar é, porventura, o mais poético, mas também o que mais cristalinamente reflecte a sua natureza. A cidade estruturou-se junto ao mar e durante séculos o mar foi parte integral da sua alma – e é essa ligação, primordial em toda a história de Macau, que Maria José de Freitas almeja ver reabilitada.
Doutorada em Patrimónios de Influência Portuguesa pela Universidade de Coimbra, a arquitecta encetou, em 1987, um intenso e prolongado vínculo a Macau que mudou a sua própria forma de ver a cidade, o espaço público e a arquitectura. Antes de entranhar Macau, estranhou-a. Aos poucos, mergulhou na sua história, apreendeu-lhe as ânsias e os arrebatamentos, identificou desafios e dilemas e hoje, quase 40 anos depois, defende que o futuro de Macau passa, em grande medida, pela valorização do seu estatuto de cidade portuária e multicultural.

No empedrado da Avenida da Praia, Maria José de Freitas acredita, reverberam os ecos de uma das mais extraordinárias gestas perpetradas pelo Homem. A arquitecta recebeu em 2002 o Prémio ARCASIA na categoria de Reabilitação Arquitectónica pelo projecto de musealização das Casas-Museu da Taipa.
Ajustada nos meses que antecederam a transferência de administração de Macau para a China, a empreitada foi uma das últimas grandes obras conduzidas por iniciativa da administração portuguesa. Para Maria José de Freitas, foi também o culminar de um percurso que desde muito cedo a fez enveredar pelos caminhos da história e da protecção patrimonial.
“Foi, à época, um projecto que teve um grande impacto, até porque foi uma das últimas obras no período de administração portuguesa. Era uma zona patrimonial e era – e é – uma zona com grande significado que, de alguma forma, dá corpo a esta ideia de multiculturalidade que, para mim, a cidade de Macau encerra”, assume a arquitecta.
Os planos originais contemplavam apenas a intervenção nas cinco moradias que hoje integram o núcleo museológico, mas, empenhada em tornar a zona verdadeiramente significativa, Maria José de Freitas propôs também soluções para o arranjo urbanístico da área, com uma sugestão que ganhou, inadvertidamente, um inegável apelo poético.
“O que nos foi dito é que a pedra que foi usada na pavimentação da Avenida da Praia era o lastro das naus que faziam o percurso para o Japão. Esta foi a narrativa que nos foi transmitida na altura por moradores locais, que nos disseram que, quando as embarcações voltavam, o lastro ficaria amontado naquela zona do Carmo”, recorda a Directora Executiva da AETEC-Mo, Architechture and Engineering, Ltd.
Se a fantástica, mas implausível ligação entre o pavimento da Avenida da Praia e a Nau do Trato permanece pouco mais do que um apontamento romântico que carece de fundamento histórico, a intervenção a que o Teatro D. Pedro V foi submetido sob a supervisão de Maria José de Freitas fez com que a arquitecta acreditasse que em Macau tudo é possível e nada pode ser dado como adquirido.
Convidada para coordenar a renovação da mais antiga sala de espectáculos da região, a também dirigente do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS) deparou-se com um conjunto edificado a necessitar de intervenção urgente, repleto de história e infestado de segredos.
“O Teatro D. Pedro V também é muito emblemático para mim. Quando fui chamada para trabalhar nesse projecto, já estava em curso uma obra de engenharia e a empresa responsável pela empreitada já tinha removido a cobertura, porque estava completamente corroída pela formiga branca”, recorda Maria José de Freitas. “A empresa tinha removido a parte da cobertura e estava a começar a remover os tectos falsos dos diversos compartimentos. Quando visitei o espaço, fui apanhada de surpresa. Foi quando percebi pela primeira vez que havia ali uma série de histórias escondidas: havia janelões e outros elementos dissimulados e obliterados pela existência desses tectos falsos”, acrescenta.
A inusitada descoberta obrigou à reinterpretação do espaço e à revisão dos planos inicialmente previstos. Mais do que um contratempo, a arquitecta diz que o episódio lhe ofereceu uma oportunidade para aprender e para crescer como profissional.
“Já tinha uma concepção pensada para a remodelação do edifício, mas alterei tudo quando fui visitar o espaço e me apercebi desta conjugação de valores que estavam escondidos. Pareceu-me, desde logo, que seria muito bonito que o edifício pudesse contar a sua própria história”, afirma. “Aquilo que se vê lá agora – que são paredes pintadas até uma certa altura, o friso e depois o tijolo à vista – foi a forma que arranjei para mostrar aqueles vãos que tinham sido abertos, sabe-se lá por quem, que tinham sido tapados posteriormente e que era bonito mostrar.”

Casas-Museu da Taipa, Teatro D. Pedro V, Ruínas de São Paulo. Ao longo das últimas três décadas e meia – ainda que com maior incidência nos anos que antecederam a transferência de administração de Macau –, Maria José de Freitas foi responsável por alguns dos mais emblemáticos projectos de remodelação e revitalização arquitectónica nos espaços e edifícios que, em Julho de 2005, foram inscritos na lista do Património Mundial da UNESCO.
A arquitecta portuguesa – que coordenou também os trabalhos de requalificação de algumas das moradias de traça portuguesa da zona do Tap Seac – advoga a perspectiva de que o passado histórico se insinua como um activo estratégico que deve ser articulado com o desenvolvimento da cidade, mas assume que nem todo o património edificado é passível de salvaguarda. No caso do Tap Seac, Maria José de Freitas lamenta o desaparecimento do Hotel Estoril, mas reconhece que a empreitada de construção da nova Biblioteca Central abre boas perspectivas para a área.
“Gosto muito da zona do Tap Seac. Gostava muito do hotel que lá estava e que foi demolido. É possível que o painel do Oseo Acconci ainda venha a ser preservado. Foi uma das soluções que eu propus no concurso que foi feito pelo Instituto Cultural e julgo que a empresa que ganhou o concurso, a Mecanoo Architects, vai fazer exactamente isso. O painel do Oseo Acconci vai ser reposto no interior do Foyer e parece-me bem”, assume.
“A Mecanoo é constituída por um excelente grupo de arquitectos e gosto da proposta deles. Pessoalmente, gostava do contraste entre o modernismo do hotel e as moradias neoclássicas, do outro lado, mas se a substituição de bens de qualidade for feita por outros bens que também tenham qualidade, é um balanço que deve ser feito. Não me repugna”, atesta a arquitecta.

Numa cidade com as contingências de Macau, o equilíbrio entre o novo e o antigo, argumenta Maria José de Freitas, é um aspecto fundamental para que a cidade continue a manifestar a multiculturalidade que desde sempre foi o seu cartão-de-visita perante o mundo. Mais do que a classificação a título individual de edifícios e complexos edificados, a arquitecta e especialista na protecção do património argumenta que a península de Macau deve ser tida, planeada, estudada e valorizada como um todo.
Na apreciação do espaço urbano e do referencial afectivo da península de Macau, devem entrar espaços e edifícios com valor historicamente comprovado, mas também as propostas modernas e contemporâneas que ajudaram a transformar Macau ao longo das últimas décadas. “Vivo perto do parque que se situa no NAPE, do jardim que foi projectado pelo arquitecto Caldeira Cabral, e sinto-me feliz por morar ali, porque é uma área bastante interessante. Atravesso com alguma frequência o jardim e não é difícil perceber que é um espaço com muita afluência, que se enraizou na vivência das pessoas”, sustenta.
“O próprio NAPE, em si, tendo sido projectado por arquitectos locais, é o resultado de um trabalho feito em parceria ou com a colaboração do arquitecto Siza Vieira e do arquitecto Fernando Távora, dois arquitectos conceituados mundialmente. O arquitecto Siza foi distinguido com um prémio Pritzker. Portanto, o trabalho que foi desenvolvido no NAPE é património do futuro. É necessário ter consciência de que o património não é só passado. É também o que se está a fazer agora. É também uma arquitectura miscigenada e também ela tem de ser preservada”, conclui Maria José de Freitas.