Na Loja de Chá Ieng Kei, os aromas da nostalgia impregnam-se nos sentidos. O estabelecimento, com 95 anos de existência, continua fiel às origens: promover a cultura milenar do chá, proporcionando produtos de qualidade
Texto Cherry Chan
Fotografia Cheong Kam Ka
Pu’er, Tieguanyin, Longjing, Xiangpian… A lista prolonga-se, enumerando a variedade de chás chineses que podem ser encontrados na Loja de Chá Ieng Kei, localizada na Rua de Cinco de Outubro e em funcionamento há quase 100 anos.
Ao entrar no estabelecimento, chamam imediatamente a atenção as fileiras de latas de estanho, em largas prateleiras, guardando diversos tipos de chá. O local está repleto de itens que transmitem uma sensação de nostalgia e tradição: pouco parece ter mudado ao longo das últimas décadas, a começar pela placa lacada a dourado com o nome do estabelecimento. No chão, estão algumas caixas de vidro com molduras de madeira, marcadas pela passagem do tempo, contendo os chás mais vendidos.
Mais do que uma simples bebida, o chá é um símbolo da cultura chinesa, com raízes profundas na tradição do país. Em Macau, até aos anos 1950, o sector de processamento de chá era relativamente próspero, havendo vários negócios de comercialização de chá espalhados pela cidade.
A Loja de Chá Ieng Kei viu a luz do dia neste contexto. Foi fundada por um tio do actual proprietário em conjunto com alguns sócios, em 1930. “O meu pai tomou conta da loja nos anos 1960. Eu próprio brincava na loja quando era criança e comecei a ajudar no negócio aos 13 anos”, conta Lou Seak Lon, que viria a tomar nas suas mãos os destinos do estabelecimento a partir de 2002.

“Recordo-me, quando era jovem, de haver sempre um bule de chá em casa de todas as famílias”, diz. “As pessoas com maiores posses iam às casas de chá para ‘yam cha’ quando recebiam o salário”, um hábito da época, recorda Lou Seak Lon, numa referência à refeição tradicional do sul da China, que mistura pratos diferentes, acompanhados de chá. Daí o seu nome, “yam cha”, significando literalmente “beber chá” em cantonense.
Mudanças e constâncias
Com a chegada dos anos 1990 e o desenvolvimento industrial da produção e processamento de chá no Interior da China, o sector de Macau acabou por sofrer alterações. Nas palavras de Lou Seak Lon, a indústria de chá local “superou altos e baixos e a Ieng Kei tem vindo a testemunhar esse processo”. “Durante a época áurea do sector, existiam mais de dez lojas de chá nesta pequena cidade. Depois, apenas algumas resistiram e agora estão a nascer novas casas de chá, em diferentes estilos”, explica.
O actual proprietário recorda que passaram mais de quatro décadas desde a altura em que começou a ajudar o pai na Loja de Chá Ieng Kei. “O tempo passa, o ambiente muda, é impossível encontrar as coisas exactamente iguais às do passado”, admite. Porém, assegura que há algo que se tem mantido constante no estabelecimento: o empenho em disponibilizar produtos de qualidade.
Desde a fundação, a Loja de Chá Ieng Kei obtém os chás que comercializa no Interior da China. Assegurar a qualidade dos produtos não é tarefa fácil, explica o proprietário, visto que vários factores impactam o desenvolvimento destas plantas, desde as condições climatéricas ao estado dos solos, passando pela qualidade do ar. “Eu só ofereço aos meus clientes o que acredito ser de alta qualidade”, garante Lou Seak Lon.
Embora o chá seja uma bebida tradicional, com profundas conotações históricas na China, Lou Seak Lon acredita que tem igualmente futuro. “Hoje em dia, as pessoas desenvolvem facilmente pressão arterial alta, colesterol elevado e diabetes. Isso faz do chá – no formato original, sem adição de açúcar – uma bebida natural e saudável.”
Lou Seak Lon diz que a comercialização de chá, para si, é um negócio, mas também uma paixão e uma forma de fazer amigos. É igualmente um esforço pessoal, acrescenta, para ajudar a promover esta forma de cultura tradicional.
Ainda assim, há desafios. Os tufões estão entre os maiores, visto que a Rua de Cinco de Outubro, por se situar numa zona baixa, é uma área historicamente propensa a inundações. No passado, houve casos em que o estabelecimento perdeu vários lotes de folhas de chá, que ficaram inutilizados pela água das cheias. Ainda assim, Lou Seak Lon prefere ver o copo de chá meio cheio e não tem planos para mudar de local.
À (re)descoberta do chá
A evolução da sociedade de Macau ao longo das décadas mais recentes também se reflecte na forma como o chá é agora consumido localmente, denota o proprietário da Loja de Chá Ieng Kei. Por um lado, a bebida – no seu formato original – já não faz parte do quotidiano de muitos, em particular nas gerações mais novas. Por outro, a cultura e práticas tradicionais associadas à preparação da bebida ganharam novo fôlego, também como um reflexo da afirmação da identidade chinesa.
“A forma de beber não é mais a mesma do passado”, diz Lou Seak Lon. “As pessoas tendem a ter um conjunto completo de chá, escolhem bules e xícaras de diferentes materiais para combinar com diferentes tipos de chá.” E acrescenta: “Algumas pessoas até elevam a cultura do chá a um nível artístico, demonstrando certas técnicas na preparação e no serviço”.

Como o Instituto Confúcio promove a cultura chinesa no estrangeiro, assim o pode fazer o chá, argumenta o proprietário da Ieng Kei. “Ao verem, experimentarem e compreenderem a cultura do chá, se a considerarem como algo de bom, as pessoas do exterior podem gradualmente vir a adoptá-la”, afirma.
A contribuir para isso está a profissionalização do sector do serviço. Ao contrário do passado, não basta juntar folhas da planta na proporção exacta com água aquecida à temperatura certa. Foram criados padrões de serviço e normas e, no Interior da China, foram introduzidos certificados profissionais, como o de “Especialista em Arte do Chá”.
“Essas qualificações profissionais regulamentadas pelo País também servem para mostrar que o chá pode ser uma área de estudo muito especializada, exigindo um entendimento profundo para ser possível sistematizar e transmitir a cultura do chá a mais pessoas”, nota Lou Seak Lon. “A cultura do chá é algo muito complexo. Saber apreciar chá já é algo impressionante, mas conseguir explicá-lo de forma padronizada e sistemática é extremamente difícil.”
Olhando para o futuro, o proprietário da Loja de Chá Ieng Kei – estabelecimento que completará um século dentro de cinco anos – descomplica. “Como a Ieng Kei já tem 95 anos, espero pelo menos chegar aos 100, para cumprir a minha quota-parte de responsabilidade em relação à loja, como resposta aos esforços do meu tio e do meu pai.”
Por ora, Lou Seak Lon garante estar já contente por ver muitos antigos amigos a regressarem ao estabelecimento após os anos da pandemia da COVID-19. Muitas vezes, mais do que o chá, procuram a conversa: “O chá é algo de natural e pacífico, é muito reconfortante e agradável”, diz.