Manuel Geraldes

A segurança de se sentir em casa

Manuel Geraldes
Não foi paixão à primeira vista. Manuel Geraldes não se deixou arrebatar pelas primeiras impressões, mas Macau entranhou-se com naturalidade nos seus hábitos e expectativas. Ao fim de quase quatro décadas a Oriente, tem hoje uma relação com a cidade pautada por menos receio e menos drama, mais intimidade e mais certezas. A maior de todas? Macau será a sua última morada

Texto Marco Carvalho

A 20 de Dezembro de 1999, Manuel Geraldes testemunhou um dos mais cruciais momentos da história portuguesa contemporânea, o retorno de Macau à China. Radicado em Macau desde o final da década de 1980, ajudou a dar um novo fôlego e um novo rumo ao Clube Militar de Macau, instituição da qual é o rosto há mais de três décadas.

Pragmático e pouco dado ao saudosismo, Manuel Geraldes desencantou na cidade um raro sentido de pertença: “É aqui que me sinto bem, que me sinto tranquilo. Já decidi que Macau é a minha última morada”.

Nas múltiplas vidas que viveu, de todas as peles que vestiu, a de anfitrião – e timoneiro – no Clube Militar de Macau é, porventura, a que Manuel Geraldes enverga com maior naturalidade. Associada durante mais de um século à presença militar portuguesa em Macau, a vetusta instituição submeteu-se, antes ainda do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), a uma inevitável metamorfose, um processo no qual teve papel fundamental.

“Fui convidado a estudar um projecto com vista ao futuro, que criasse no Clube Militar um centro de encontro não só de portugueses, no pós-1999, mas também da comunidade chinesa”, esclarece. “O Clube Militar é uma instituição de cultura portuguesa, mas é uma instituição da RAEM, de Macau. O desígnio, na altura, era o de criar um centro de união das comunidades: da comunidade chinesa, da comunidade macaense e das comunidades de estrangeiros que aqui vivem”, acrescenta.

A intervenção, concluída no prazo de menos de um ano, incidiu tanto sobre o corpo do edifício, que cresceu e se fortaleceu, como sobre a alma da instituição, que abandonou as prerrogativas de exclusividade do passado e é hoje um espaço incontornável de encontro e de convívio para residentes e visitantes.

Para Manuel Geraldes, no entanto, a instituição é bem mais do que isso. Parte integral do seu quotidiano e da sua vivência de Macau há mais de trinta anos, o Clube Militar é fonte inesgotável de estima e de orgulho: “Sinto que, de certa maneira, tive alguma intervenção na criação deste local e isso é algo que me deixa feliz”.

Clube Militar de Macau

Soberbo no seu esplendor neoclássico, o Clube Militar é presença obrigatória no quotidiano de Manuel Geraldes, mas não é o único local onde regressa com pendular regularidade. Natural de Macedo de Cavaleiros, no coração da Terra Quente Transmontana, o antigo militar fez da natação prática de eleição. Uma rinite persistente forçou-o, porém, a abraçar um ritual que mantém religiosamente há mais de duas décadas.

“Já nadava, mas nadava em piscinas. A determinada altura fui aconselhado a interromper essa prática por causa de um problema de saúde: uma rinite provocada pela água da piscina e que eu não consegui ultrapassar. Consultei um médico em Portugal que me receitou banhos de mar”, explica.

A cura chegou sob a forma de mergulhos madrugadores nas águas tranquilas de Cheoc Van. Na pequena enseada, mais do que o encanto e do que as virtudes do romper da aurora, Manuel Geraldes redescobriu os benefícios que a água salgada traz ao corpo e à mente e encontrou como que uma união fraternal feita de espuma e de sal, um grupo de pessoas em íntima comunhão com o mar.

“Fui encontrar o Clube de Nadadores de Inverno de Macau, que eu sabia que existia, mas que, em rigor, não conhecia. Fui muito bem recebido. Acho que fui um dos primeiros portugueses a nadar com eles. Eu e o arquitecto Bruno Soares”, sustenta. “Gostava de salientar o ambiente de confiança e de honestidade que reina tanto na praia, como nas infra-estruturas. Há um ambiente de grande harmonia no Clube de Nadadores de Inverno. Há ali um ambiente fantástico”, acrescenta o antigo representante em Macau da AICEP Portugal Global, a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal.


Bonita, agradável e, sobretudo, segura. Os qualificativos a que Manuel Geraldes recorre para retratar a cidade onde vive e trabalha há quase quatro décadas espelham, em grande medida, os princípios que norteiam a carreira militar, valores que assimilou e transformou em traços permanentes de carácter. Numa cidade que se recria ciclicamente, que muda de pele e de rosto com incontida voracidade, houve sensibilidade para salvaguardar, um pouco por toda a Macau, a tranquilidade e a bonomia de outrora.

Um esforço que o antigo presidente da direcção do Clube Militar de Macau aplaude e aprecia: “O próprio ambiente de Macau é muito interessante. Gosto muito de passear em Macau. De vez em quando estou aqui a trabalhar, interrompo o meu trabalho e vou dar uma volta ao Tap Seac. Sem querer fazer demagogia, Macau é dos sítios mais bonitos, mais agradáveis e mais seguros onde alguém pode viver”.

Em poucos locais o fascínio se faz tão abrangente e transcendente como na Colina da Guia. Do alto das muralhas da Fortaleza de N.ª Sr.ª da Guia, abraça-se a cidade com um único vislumbre. Um olhar basta, porém, para ver para além do óbvio.

“Por vezes, vou à Fortaleza da Guia e dou ali três ou quatro voltas. É um ponto extremamente agradável para quem queira fazer um pequeno intervalo, para fazer um pequeno passeio”, diz Manuel Geraldes.

“Um pouco por toda a cidade é possível encontrar pontos agradáveis, que foram bem trabalhados para que as pessoas se possam sentir confortáveis, para que possam sentir que estão num local repousante. Depois, como dizia, há a questão da segurança. Macau é dos sítios mais seguros do mundo, ao ponto de as pessoas permitirem que os filhos andem à noite sozinhos na rua. Tenho duas filhas e nunca senti que estivessem sob ameaça”, argumenta.

Colina da Guia

Entre a Praia do Bom Parto, onde vive, e o Clube Militar, onde Manuel Geraldes passa boa parte dos seus dias, a luminosa sumptuosidade da Praia Grande abraça o futuro sem, ainda assim, deslustrar o seu passado.

A designação, hoje indisputavelmente hiperbólica, alude a circunstâncias há muito desaparecidas, quando as mansas ondas do estuário do Rio das Pérolas rebentavam mesmo à porta do antigo Palácio do Governo, mas a última grande intervenção de que a zona foi alvo, nos anos finais da administração portuguesa de Macau, salvaguardou o essencial, a ligação secular ao mar.

“Pode haver interpretações e visões diferentes, mas eu acho que foi preservado o essencial. Acompanhei a modernização da avenida, quando se fez o encerramento da Baía da Praia Grande e o trabalho que foi feito na altura foi notável. Foi uma obra exemplar. A área ficou bonita e preservou-se a ligação ao mar”, refere.

Exemplar tem sido também, defende Manuel Geraldes, a forma como as autoridades têm vindo a gerir o património – tangível e intangível – que lhes foi legado por quase cinco séculos de intercâmbio. As igrejas, as fortalezas, as praças e os largos são hoje não apenas um certificado de convivência histórica, mas um trunfo importante para o futuro da RAEM.

“Os monumentos têm sido tratados com grande rigor. Diria que foram tratados com grande rigor científico e cultural e constituem hoje um valor acrescentado para Macau e para o património de Macau. São um contributo fantástico tanto em termos turísticos, como do ponto de vista cultural. Nós, portugueses, não ensinámos nada e se viermos cá analisar o que aqui foi feito, podemos aprender bastante”, remata.