Stella Ho

Triunfo e redenção no palco de todos os sonhos

Stella Ho, fundadora do colectivo Stella & Artists
Nome incontornável do panorama da dança em Macau, Stella Ho fintou o destino e um prognóstico médico reservado para triunfar nos palcos e fora deles. A fundadora do colectivo Stella & Artists foi diagnosticada com uma insuficiência de foro cardíaco e proibida de dançar. Apenas uma paixão a toda a prova e uma cidade a todos os níveis desafiante a fizeram perseverar

Texto Marco Carvalho

O fruto proibido é, muitas vezes, o mais apetecido. No caso de Stella Ho, foi necessária uma quase pena capital para que a bailarina e coreógrafa compreendesse que a dança era o alfa e o ómega, o princípio e o fim. A agora directora artística da companhia Stella & Artists começou a aprender, aos seis anos, técnicas básicas de dança clássica chinesa e os rudimentos do que se viria a tornar o seu destino. Mas uma revelação devastadora quase aniquilou desde a raiz o que se viria a tornar uma respeitada carreira nos palcos, dentro e fora das fronteiras do território: “Descobriram, a determinada altura, que tinha um problema de foro cardíaco”, explica.

“Na altura, os médicos acreditavam que, se as batidas cardíacas não fossem regulares, era necessário evitar movimentos bruscos e desportos intensos. Dançar estava fora de questão. Julguei que o facto de não poder dançar não me afectaria, mas, ao fim de vários meses em casa, percebi que não podia viver sem a dança”, enfatiza Stella Ho.

Dissonante, carecido de harmonia, o coração de Stella Ho encontrou na dança como que um compasso perfeito, o ritmo que por vezes o fazia galgar uma ou outra batida. Quando a dança se insinuou tão essencial como o pão para a boca, Stella Ho perdeu o medo e deixou de ouvir os médicos.

“Ao fim de alguns meses de paragem, decidi continuar a dançar. Deixei de me importar com que os médicos diziam”, admite a coreógrafa. “Não há forma de curar a doença que tenho, mas surgiu, entretanto, algo que me pode ajudar a viver mais tempo. Na verdade, tenho um desfibrilador no peito. Ajuda a fazer com que o meu ritmo cardíaco seja mais regular”, explica.

O aparelho, que permite combater a fibrilação cardíaca – uma sucessão rápida e irregular de contracções dos músculos do coração –, acelerou o regresso da então jovem dançarina aos palcos e a uma montra que recorda com particular nostalgia.

“Perdi a conta ao número de vezes que actuei no Largo do Senado. Agora, os espectáculos ao ar livre não são muito frequentes, mas na altura em que cresci quase todos os fins-de-semana havia espectáculos no Senado”, recorda Stella Ho. “Era uma experiência completamente diferente das demais que tive no palco, até porque conseguíamos ver o público, perceber as suas reacções. Num teatro, numa sala de espectáculos, não conseguimos ver quem nos está a ver”, esclarece.

Largo do Senado

No Largo do Senado desaguam residentes em passo acelerado e turistas em transumância. Oriente e Ocidente entrelaçam-se num inequívoco abraço secular que confere à emblemática praça uma aura incomparável.

Se o largo ferve em azáfama, no planisfério emocional da directora artística da companhia Stella & Artists cabem rincões do território nos antípodas do bulício que pauta o quotidiano do umbigo da cidade. 

Entre os predilectos da coreógrafa, que terminou o curso de coreografia da Escola de Dança do Conservatório de Macau em 2004, está a Vila de Nossa Senhora de Ká-Hó, em Coloane.

“Quando eu era pequena, o meu pai costumava conduzir até lá. Aquela zona, aos meus olhos, era como se fosse um jardim secreto. Poucas pessoas conheciam aquela zona e eram ainda menos as que iam até lá. Corríamos sem preocupação, havia uma pequena fonte, uma estátua de Nossa Senhora”, recorda Stella Ho. 

“Sempre que lá ia, ficava com a impressão de que penetrava num jardim secreto que só a mim me pertencia. Era o local mais longínquo até onde se podia conduzir. Era um mundo completamente diferente de tudo o mais que Macau tinha para oferecer”, assegura a antiga dançarina, que concilia a paixão pela dança com um emprego a tempo inteiro na função pública.

Vila de Nossa Senhora de Ká-Hó

Recuperadas e hoje mais acessíveis do que nunca, as instalações da Antiga Leprosaria de Ká-Hó já não são, aos olhos de Stella Ho, o segredo mais bem guardado de Macau. O véu de silêncio e de secretismo que as envolvia e o leve sopro de transgressão exalado por tudo o que é ruína foram substituídos pelo cândido e ordeiro equilíbrio dos espaços aos quais é insuflada uma nova vida. 

A Vila de Nossa Senhora de Ká-Hó permanece, ainda assim, uma referência num oásis de tranquilidade: “Foi feito um esforço para transformar aquela zona numa atracção turística, mas como é bastante afastada do centro da cidade, não são muitos os turistas que se deslocam até lá. Continua a ser um local muito especial para mim”, confidencia.

O afecto e a predilecção estendem-se, sem constrangimentos, ao resto de Coloane. A ilha é cada vez mais procurada por levas de visitantes à procura da fotografia ideal, mas preserva uma autenticidade e um aconchego que são cada vez mais raros noutros locais de Macau.

“Quando eu era pequena, nem todas as crianças da minha geração tinham a sorte de ter um pai que as levava para onde quer que fosse. O meu tinha carro e levava-nos para todo o lado. A vila de Coloane era, para mim, sinónimo de exploração e de aventura”, admite Stella Ho. 

“Ainda hoje, Coloane convida à exploração. Permanece um local tranquilo e aconchegante e não é difícil perder-me nos becos e nas ruelas à descoberta de lojas e galerias. Continua a ser um recanto muito especial, com um sem fim de surpresas para descobrir”, sustenta.


Se um sem fim de performances no Largo do Senado enredaram a jovem Stella Ho na paixão pela dança, foi a principal sala de espectáculos de Macau e o mais apetecido dos palcos do território que fizeram com que o sonho ganhasse asas.

Em 2008, foi seleccionada para participar no programa de intercâmbio de coreógrafos “Dança até Nova Iorque”, organizado pelo Centro Cultural de Macau. Ao abrigo da iniciativa, a então dançarina viajou para os Estados Unidos da América, onde recebeu formação intensiva. A experiência mudou o posicionamento de Stella Ho face ao que era, até então, uma paixão exacerbada, a bússola que lhe orientava o coração. A coreógrafa convenceu-se de que, apesar de nunca ter encontrado na dança um modo exclusivo de vida, podia ajudar os outros a tornarem-se profissionais.

“Quero que a dança em Macau se desenvolva verdadeiramente, até porque acho que há muita margem de manobra para melhorias, muito espaço para desenvolvimento. A determinada altura, dei por mim a pensar que, apesar de não ganhar a vida a dançar, poderia muito bem ajudar os outros a trilhar esse caminho”, explica.

“Como estudei administração e gestão e a dança não é o meu ganha-pão, talvez seja um pouco mais fácil, uma vez que é a minha carreira que financia a minha paixão pela dança”, sustenta Stella Ho.

A experiência em Nova Iorque conferiu à coreógrafa o impulso que faltava e, em 2012, depois de duas décadas na Companhia de Dança Violeta, Stella Ho fundou a sua própria companhia. 

Em 12 anos de vida, o colectivo Stella & Artists conta com colaborações com artistas como Amy Marshall (Estados Unidos da América), Jacek Luminski (Polónia), Alexandra Battaglia (Portugal), Yuri Ng, Mui Cheuk Yin e Xing Liang, de Hong Kong.