Mito ou realidade, a Gruta de Camões tem um lugar especial no imaginário literário mundial como local onde o poeta português Luís Vaz de Camões terá escrito parte do seu poema épico “Os Lusíadas”. No ano em que se comemoram cinco séculos sobre o nascimento do escritor, a Revista Macau foi à descoberta das primeiras referências históricas sobre a Gruta de Camões após a passagem do poeta por Macau
Texto João F. O. Botas
Jornalista, autor de vários livros sobre a história de Macau e criador do blogue Macau Antigo (macauantigo.blogspot.com)
Em 2024, celebram-se os 500 anos do nascimento de Luís Vaz de Camões (1524-1580). O poeta português, autor da epopeia “Os Lusíadas”, obra maior da literatura lusófona, terá vivido em Macau por alguns anos, em meados do século XVI.
Face à popularidade internacional da sua obra, o nome de Camões tornou-se, nos séculos subsequentes, num dos símbolos recorrentes do território em relatos de viajantes estrangeiros. Para tal, contribuiu em muito a Gruta de Camões – localizada no que é actualmente o Jardim de Luís de Camões –, na qual, conta a mitologia camoniana, o poeta terá escrito parte d’ “Os Lusíadas”. O local surge em textos e desenhos publicados por ocidentais que passam por Macau, particularmente durante o século XVIII, com designações em inglês como “Camoens Cave”, “Camoens Grotto” e “Cave of Camoens”, ou, em francês, “Grotte du Camoens”.
Uma das mais antigas referências documentais ao nome de Camões em Macau surge num inventário dos bens do Colégio de S. Paulo relativo aos anos de 1632 a 1636, quando era reitor o padre António Francisco Cardim (1596-1659). Aí, alude-se à existência dos “penedos de Camões”, localizados num terreno propriedade da Companhia de Jesus, perto do Colégio de S. Paulo e da Igreja Mater Dei – edifício cujos vestígios são hoje conhecidos como as Ruínas de S. Paulo. Os penedos, designação comum na altura para grandes rochedos, são identificados no inventário como ficando numa colina na parte norte da península de Macau, com vista sobre o Porto Interior e sobre o Patane, uma das primeiras povoações da cidade, habitada por uma comunidade de ascendência chinesa.
A obra maior
Publicado em 1572, o poema épico “Os Lusíadas” depressa se tornou conhecido a nível mundial, com múltiplas traduções. Não admira por isso que os viajantes estrangeiros que rumavam à China no século XVIII, na escala obrigatória que faziam em Macau, procurassem “marcas” da presença de Camões no território. Alguns dos relatos dessas viagens seriam imortalizados em livros que incluem as primeiras descrições ocidentais – em textos e ilustrações – da Gruta de Camões.
Integrado na terceira e última expedição ao Pacífico do capitão britânico James Cook (1728-1779) ao serviço de Inglaterra, o pintor inglês John Webber (1752-1793) esteve em Macau de 1 de Dezembro de 1779 a 13 de Janeiro de 1780, onde desenha “View in Macao, including the residence Camoens, when he wrote his Lusiad”. É uma panorâmica geral onde não aparece a gruta, mas, no relato oficial da expedição, o local é descrito como um “grande arco, de pedra sólida, formando a entrada de uma gruta escavada no terreno atrás”, sendo que “a rocha é ofuscada por grandes árvores e oferece uma ampla e magnífica vista sobre o mar e as ilhas em redor”.
Casa da Horta
Por esta altura, já tinha sido construído na propriedade onde a gruta está localizada um edifício residencial – remonta a 1770 –, mencionado pelo viajante Samuel Shaw (1754-1794) como “uma elegante casa com jardins, bastante extensos e criteriosamente dispostos, proporcionando um paraíso terrestre”. Shaw chegou à costa do Sul da China pela primeira vez em 1784, sendo eventualmente nomeado como primeiro representante diplomático dos Estados Unidos no Império do Meio, onde passou largas temporadas.
Nesta época, a Companhia Inglesa das Índias Orientais desempenha um papel crucial no comércio entre a China e o exterior. As proibições impostas pelas autoridades chinesas à presença permanente de estrangeiros em Cantão (actual Guangzhou, na província de Guangdong), onde eram efectuadas as trocas comerciais, faz com que os ingleses arrendem em Macau vários espaços. Na zona da Praia Grande, ocupam alguns edifícios para guardar mercadorias e para os marinheiros dormirem, enquanto um pequeno grupo de altos funcionários fixa residência no que passa a ser denominada como “Casa da Horta” ou “Casa Garden”, devido à envolvente paisagística – o tal edifício que Samuel Shaw havia descrito.
É aí que fica hospedado George Macartney (1737-1806), líder da primeira missão diplomática inglesa à China, ordenada em 1792. Politicamente, a expedição foi um fracasso, mas de uma riqueza sem paralelo até então em termos de informação recolhida. Os múltiplos relatos publicados (e as traduções em várias línguas) originaram uma das maiores divulgações da imagem da China no Ocidente. E também de Macau.
Num relatório oficial da missão, pode ler-se: “A maioria dos elementos da embaixada está alojada na feitoria inglesa. O meu alojamento fica numa casa na parte alta da cidade, arrendada pelo Sr. Drummond, que teve a gentileza de a ceder durante sua ausência. Tem uma esplêndida localização, tendo ao lado um jardim romântico de dimensões consideráveis. A tradição local diz que foi antigamente a habitação do célebre Camões, tendo aqui escrito seus ‘Os Lusíadas’”.
Nas expedições ocidentais à China, seguiam habitualmente pintores cuja missão era documentar o sucedido. Integrados na missão de George Macartney, os artistas William Alexander (1767–1816) e William Gomm (1754-1794) produzem inúmeras obras em Macau, sendo que a maioria nunca foi publicada em livro até hoje, estando à guarda de museus britânicos. Gomm elaborou aguarelas e a primeira planta topográfica do Jardim de Camões e Alexander vários desenhos da gruta.
Em Março de 1794, Gomm pinta uma aguarela com a seguinte legenda, numa tradução livre para português: “Vista de um jardim de lazer, em Macau, com um miradouro no topo de uma colina à esquerda e um banco rodeado de árvores e pedras no centro”. O referido miradouro foi construído em 1772, de acordo com o testemunho de Andreas Everardus van Braam Houckgeest (1739-1801), comerciante holandês que fez parte da embaixada à China da Companhia Holandesa das Índias Orientais em 1794-95. O viajante descreve “uma cúpula hexagonal, aberta dos lados, formando um miradouro, nome justíssimo aos olhos de quem quer que seja e se deixe guiar pelo olhar no vasto horizonte”. Esta cúpula, bem como outros elementos entretanto construídos junto à gruta por volta de 1830 a 1840, seriam destruídos após a compra do espaço em 1885 pelo Governo de Macau, que ali criou o jardim público de Camões.
Imagem icónica de origem misteriosa
Uma das ilustrações mais conhecidas da Gruta de Camões data de meados do século XIX e é da autoria do britânico Thomas Allom (1804-1872), que, curiosamente, nunca esteve em Macau. As suas ilustrações foram publicadas na obra de 1843 “China, in a Series of Views, Displaying the Scenery, Architecture, and Social Habits, of that Ancient Empire”, com texto de George Newenham Wright (1794-1877), um reverendo que também não esteve na China. O livro está entre os que maior divulgação tiveram na época, sendo publicado em Londres e Paris.
Na capa, desvenda-se parte do mistério quando se refere que o conteúdo é “desenhado a partir de esboços originais e autênticos, por Thomas Allom”. No prefácio, menciona-se ainda que um “agradecimento adicional também é devido a Sir George Staunton pela permissão em copiar da sua bela colecção de desenhos chineses de artistas nativos”. Ora, Staunton (1737–1801) foi o secretário oficial da embaixada de Macartney à China de que também fazia parte William Alexander. Uma das imagens que este produziu da Gruta de Camões é muito semelhante à de Allom, confirmando-se assim parte da explicação. No entanto, o mistério adensa-se quando o próprio Alexander admite na legenda manuscrita do seu desenho que o elaborou “a partir de um desenho chinês”.
Qual seria então o original? Uma primeira pista está num artigo intitulado “A Description of the Grotto of Camoens at Macao on the Coast of China with a View By Eyles Irwin”, datado de 1793 e que inclui uma ilustração semelhante às de Allom e Alexander. Foi publicado em 1797 na obra “The Oriental Collections – Consisting Of Original Essays And Dissertations, Translations And Miscellaneous Papers; Illustrating The History And Antiquities, The Arts, Sciences, And Literature, Of Asia”.
De origem irlandesa, Eyles Irwin (1751-1817) nasceu em Calcutá, na Índia, mas estudou ainda jovem em Inglaterra. Poeta e escritor, foi também funcionário da Companhia Britânica das Índias Orientais, tendo vivido entre Macau (na Casa Garden) e Cantão durante os primeiros anos da década de 1790.
Uma quarta versão da imagem muito semelhante às anteriores é assinada em co-autoria. Thomas Daniell (1749-1840) era já um conceituado pintor quando, juntamente com o seu sobrinho e aprendiz do ofício, William Daniell (1769-1837), com apenas 16 anos, obtiveram autorização para se instalarem na Índia como pintores por parte da Companhia Britânica das Índias Orientais. Partiram de Inglaterra a 7 de Abril de 1785 e estiveram alguns meses em Macau, onde produzem a “Camoens Cave”, uma das inúmeras ilustrações incluídas na obra “A Picturesque Voyage to India by the Way of China”, originalmente publicada em dez partes entre 1795 e 1810.
Um mapa raro
Aquela que aparenta ser a primeira referência à Gruta de Camões num mapa está no “Plan de la ville de Macao”. Remonta a 1792 e surge no livro de 1808 “Voyages à Peking, Manille et l’Île de France: faits dans l’intervalle des années 1784 à 1801”, da autoria de Chrétien-Louis-Joseph de Guignes (1759-1845). Comerciante, diplomata e estudioso da cultura chinesa, era filho do sinólogo Joseph de Guignes. Aprendeu chinês com o pai e viajou para a China em 1784, tendo vivido em vários locais na zona sul do território chinês durante quase 20 anos, incluindo em Macau, antes de regressar à França em 1801.
No terceiro volume da obra mencionada, refere-se à “Casa do Horto” como sendo o maior jardim de Macau, onde fica localizado “um rochedo que se diz ter servido de retiro ao célebre Camões”.