Zona de Cooperação Aprofundada

Modelo aduaneiro inovador aproxima (ainda mais) Macau e Hengqin

O novo modelo aduaneiro facilita o transporte entre Macau e Hengqin, para fins pessoais, de várias categorias de alimentos cozinhados
É um passo significativo no desenvolvimento da Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin: desde Março que a área passou a funcionar como zona aduaneira autónoma, abrindo um novo leque de possibilidades no âmbito da integração regional

Texto Viviana Chan

As palavras são do próprio Chefe do Executivo da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), Ho Iat Seng: o posicionamento da Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin como zona aduaneira autónoma “abre um novo capítulo” no que toca ao projecto, tendo um importante significado na promoção de um modelo de integração regional com alto nível de abertura. De acordo com vários especialistas, trata-se de um avanço de monta no seio da política “um país, dois sistemas”, traduzindo-se em melhorias efectivas em vários aspectos para os portadores de Bilhete de Identidade de Residente (BIR) da RAEM que vivem ou trabalham em Hengqin, assim como para as empresas de Macau.

O posicionamento da Zona de Cooperação Aprofundada como zona aduaneira autónoma, modelo que entrou em vigor no início de Março, estava já definido no “Projecto Geral de Construção da Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin”, promulgado pelo Conselho de Estado em Setembro de 2021. Aí, é explicado que são criadas duas linhas de supervisão aduaneira no âmbito da Zona de Cooperação Aprofundada: na “primeira linha”, entre Hengqin e a RAEM, são implementadas medidas de maior flexibilização aduaneira e tendencialmente semelhantes às em vigor em Macau; na “segunda linha”, estabelecida entre Hengqin e as restantes regiões do Interior da China, é adoptado um modelo de maior controlo.

Com a zona aduaneira autónoma, foram criadas políticas e regulamentação fiscal de importação e exportação de mercadorias aplicáveis apenas à “primeira linha” – ou seja, que excluem o resto do Interior da China –, estando prevista, para vários tipos de mercadorias, a introdução de isenções fiscais ao nível das tarifas alfandegárias.

No âmbito da “segunda linha”, de forma a assegurar a inspecção e controlo de mercadorias que entram no resto do Interior da China a partir de Hengqin, foram estabelecidos postos de controlo em todas as conexões entre a ilha e o restante município de Zhuhai.

As mercadorias que entram no resto do Interior da China a partir de Hengqin são sujeitas a formalidades aduaneiras normais, incluindo a eventual cobrança de impostos e taxas aduaneiras. No entanto, mercadorias produzidas na Zona de Cooperação Aprofundada que não contenham materiais ou peças importados – ou que, contendo-os, tenham tido um aumento de valor igual ou superior a 30 por cento em resultado do processamento em Hengqin –, beneficiam de isenções fiscais ao entrarem no resto do Interior da China pela “segunda linha”. Em sentido oposto, mercadorias que partam do resto do Interior da China e entrem na Zona de Cooperação Aprofundada pela “segunda linha” serão consideradas como exportadas, podendo beneficiar de rebates fiscais.

O modelo de “duas linhas” pretende também facilitar a circulação de pessoas. Na “primeira linha”, está já a ser implementado um sistema de cooperação de inspecção única para passagem transfronteiriça. Além disso, estão a ser flexibilizadas as políticas fiscais em relação a bens transportados como bagagem pessoal.

Agarrar as oportunidades

Numa conferência de imprensa para apresentar o novo modelo de supervisão alfandegária em Hengqin, o Chefe da Comissão Executiva da Zona de Cooperação Aprofundada e também Secretário para a Economia e Finanças de Macau, Lei Wai Nong, sublinhava já que a nova política iria permitir uma circulação facilitada de pessoas, mercadorias, capitais e informação entre Macau e Hengqin. Tal, acrescentou na altura o governante, possibilitaria aos portadores de BIR da RAEM a viver e trabalhar na Zona de Cooperação Aprofundada usufruir de “um ambiente de vida mais similar” ao de Macau, criando-se, assim, “um valioso novo espaço de desenvolvimento para novas indústrias” da RAEM.

Henry Lei Chun Kwok, professor associado de Economia Empresarial na Universidade de Macau, concorda que o posicionamento de Hengqin como zona aduaneira autónoma poderá ter uma contribuição e efeito significativos na promoção da diversificação adequada da economia de Macau. O académico defende que a existência de uma ampla lista de produtos que podem ser levados de Macau para Hengqin com isenção de tarifas alfandegárias “oferece grande flexibilidade” às empresas da RAEM. Isto porque, em termos práticos, permite que empresários locais possam considerar o estabelecimento de fábricas em Hengqin, sem preocupações ao nível de custos e formalidades aduaneiras. Em apenas um mês, cerca de 60 entidades empresariais já se tinham registado para beneficiar destas isenções fiscais.


“Hengqin pode tornar-se num centro de produção, o que, por sua vez, impulsionaria o desenvolvimento de uma base industrial diversificada em Macau”

HENRY LEI CHUN KWOK
PROFESSOR ASSOCIADO DE ECONOMIA EMPRESARIAL NA UNIVERSIDADE DE MACAU

Na opinião do especialista, Hengqin pode servir mesmo como uma base auxiliar de produção industrial para Macau, a começar pelo sector alimentar. “Quando certos materiais precisam de ser importados do estrangeiro para serem processados no Interior da China, os procedimentos podem ser complexos; com o modelo da zona aduaneira autónoma, esses materiais podem agora entrar mais facilmente em Hengqin para processamento.” Henry Lei refere ainda que, “actualmente, Hengqin tem custos ao nível de rendas e mão-de-obra mais baixos”, o que pode ajudar também a reduzir as despesas de produção.

O académico aplaude igualmente a possibilidade de produtos processados em Hengqin beneficiarem de isenções fiscais ao serem enviados para o resto do Interior da China. “Isso é muito atractivo para as empresas manufactureiras de Macau, pois podem utilizar a sua experiência ao nível da produção ou a vantagem de possuírem uma marca de Macau para desenvolver produtos sob o rótulo ‘fabricado sob supervisão de Macau’ ou ‘design de Macau’” na Zona de Cooperação Aprofundada, sublinha. Desta forma, defende Henry Lei, “Hengqin pode tornar-se num centro de produção, o que, por sua vez, impulsionaria o desenvolvimento de uma base industrial diversificada em Macau”.

De resto, ainda antes da entrada em funcionamento da zona aduaneira autónoma, o número de empresas com capitais de Macau registadas em Hengqin estava já em rápido crescimento. No final do ano passado, o número ascendia a 5952, um aumento de 11,8 por cento em termos anuais.

Oportunidades também no turismo

No âmbito do estabelecimento da zona aduaneira autónoma, as autoridades do Interior da China aumentaram também o valor mínimo a partir do qual bens de consumo adquiridos no exterior – por exemplo, compras por turistas chineses – passam a estar sujeitos a tributação à entrada via Hengqin: o valor passou de 5 mil renminbis para 8 mil renminbis (cerca de 9 mil patacas). Tal significa que visitantes do Interior da China podem levar consigo até oito mil renminbis em mercadorias isentas de impostos, isto caso utilizem o posto fronteiriço de Hengqin para regressar a casa e o façam no prazo máximo de 15 dias após terem saído do Interior da China.

Henry Lei assinala que a utilização dos postos fronteiriços entre Macau e o Interior da China é ainda muito desequilibrada. O fluxo de pessoas está concentrado nos postos das Portas do Cerco e de Qingmao. Nesse contexto, a isenção fiscal alargada oferecida a quem utiliza o posto de Hengqin pode incentivar mais turistas a escolher essa opção, ajudando a aliviar a pressão sobre os outros postos fronteiriços.

O estabelecimento da zona aduaneira autónoma visa facilitar a circulação de pessoas, mercadorias, capitais e informação entre Macau e Hengqin

De resto, o académico nota a melhoria ao nível das infra-estruturas de transportes entre Hengqin e Macau e entre Hengqin e o resto do Interior da China. “Como os projectos turísticos do Cotai estão muito próximos do posto fronteiriço de Hengqin, isso será outra vantagem para atrair mais turistas a passar por este posto fronteiriço para entrar em Macau, e, nesse caso, ajudará ainda mais a aliviar o tráfego na Península de Macau”, considera Henry Lei.

O docente da Universidade de Macau prevê que, conforme sejam implementadas mais medidas facilitando a circulação de pessoas entre Hengqin e a RAEM, isso poderá ser positivo para o turismo de Macau, já que muitos turistas tendem a não ficar muito tempo no território. A esse respeito, a Administração Nacional de Imigração publicou em Abril várias novas políticas destinadas a facilitar a entrada e saída de pessoas entre Macau e o Interior da China. De acordo com uma das medidas, passa a ser permitido aos residentes do Interior da China que participam em excursões turísticas Hengqin-Macau deslocarem-se várias vezes entre ambos os lados no âmbito de uma mesma viagem.

“Há quem acredite que, ficando alguns turistas em hotéis em Hengqin, isso representa, de certa forma, competição acrescida para os negócios hoteleiros de Macau, mas eu não concordo. Pelo contrário, acho que isso irá expandir o mercado”, sublinha o académico. A esse propósito, Henry Lei relembra que Hengqin é um local aberto ao investimento por parte dos residentes de Macau: os próprios empresários do território podem considerar desenvolver empreendimentos turísticos na Zona de Cooperação Aprofundada, contribuindo também dessa forma para estimular a economia regional.

Embora os benefícios potenciais gerados pela zona aduaneira autónoma sejam óbvios, Henry Lei avisa que estes vão demorar algum tempo a materializar-se. O académico nota que a realização de investimentos visando aproveitar ao máximo o novo modelo é algo que requer planeamento e tempo.

Facilitar o quotidiano dos residentes

De acordo com estatísticas oficiais, até ao final de 2023, o número de portadores de BIR da RAEM empregados ou residentes em Hengqin tinha atingido já 11.500, um aumento de mais de 70 por cento face ao ano anterior. Deste total, mais de 5000 estavam empregados em Hengqin, um aumento de quase três vezes em comparação com o ano anterior. A expectativa das autoridades locais é a de que o número continue a aumentar e que, até ao final do ano, cerca de 20 mil portadores de BIR da RAEM vivam em Hengqin: nesse quadro, o “Novo Bairro de Macau”, disponibilizando cerca de quatro mil apartamentos a preços acessíveis, desempenha um papel essencial. Até 2035, é esperado que mais de 80 mil portadores de BIR da RAEM trabalhem em Hengqin e que cerca de 120 mil tenham escolhido a ilha para residir.

Parte das políticas de flexibilização proporcionadas pela zona aduaneira autónoma visa contribuir para que os portadores de BIR da RAEM que vivem em Hengqin se possam sentir um pouco mais em casa na ilha – e isso passa também pelas pequenas coisas. O novo modelo aduaneiro facilita o transporte entre Macau e Hengqin, para fins pessoais, de várias categorias de alimentos cozinhados, lacticínios e frescos, entre outros, bem como de animais de estimação.

Dados estatísticos demonstram que, só no primeiro mês após a implementação do novo modelo aduaneiro, cerca de 2500 portadores de BIR da RAEM foram autorizados a transportar produtos de origem animal e vegetal para Hengqin, para consumo próprio.

Lao Ngai Leong, delegado da RAEM à Assembleia Popular Nacional (APN), diz à Revista Macau que estas medidas “são significativas” porque facilitam efectivamente a vida dos portadores de BIR de Macau que vivem, trabalham e investem em Hengqin. Ao mesmo tempo, materializam, de alguma forma, aos olhos do cidadão comum, a crescente aproximação entre ambos os lados, afirma.


“Facilitar a entrada de alimentos e outros bens de consumo provenientes de Macau na Zona de Cooperação Aprofundada é uma iniciativa inédita a nível nacional”

LAO NGAI LEONG
DELEGADO DA RAEM À ASSEMBLEIA POPULAR NACIONAL

O responsável sublinha que “facilitar a entrada de alimentos e outros bens de consumo provenientes de Macau na Zona de Cooperação Aprofundada é uma iniciativa inédita a nível nacional”. Nas suas palavras, trata-se de algo “conveniente” e que responde às necessidades específicas da integração regional entre Hengqin e Macau.

Além disso, Lao Ngai Leong enfatiza outros benefícios da zona aduaneira autónoma, nomeadamente para as empresas de Macau. A flexibilização ao nível da importação e exportação de produtos e equipamentos entre Hengqin e Macau significa que os empresários locais podem usar a Zona de Cooperação Aprofundada para criarem áreas de exposição dos seus produtos, bem como de armazenamento. Tal suprimiria o problema de falta de espaço na RAEM, atira. A Zona de Cooperação Aprofundada – e, logo, a zona aduaneira autónoma – ocupa toda a ilha de Hengqin, com uma área total de 106 quilómetros quadrados, o triplo da dimensão de Macau.

Expectativas elevadas

O responsável sugere que parte das políticas de incentivo empresarial promovidas pelas autoridades de Macau sejam também aplicáveis a quem investe em Hengqin, para preparar o terreno para o futuro. “O Governo pode considerar priorizar a extensão das políticas de apoio ao empreendedorismo inovador jovem, bem como as políticas de apoio à investigação científica”, exemplifica Lao Ngai Leong. “Ao mesmo tempo, espero que o Governo da RAEM possa estender a Hengqin as políticas em vigor em Macau de apoio às pequenas e médias empresas, desde que as empresas beneficiadas satisfaçam determinados requisitos.”

O estabelecimento de Hengqin enquanto zona aduaneira autónoma tem sido recebido positivamente por diversos sectores da sociedade de Macau. O director do Gabinete de Guangdong da União Geral das Associações dos Moradores de Macau, Tian Yi, diz que os portadores de BIR da RAEM que actualmente vivem em Hengqin ou que têm planos para o fazer têm “expectativas muito elevadas” quanto ao modelo. Segundo diz, há esperança que, no futuro, não haja qualquer barreira na passagem entre Macau e Hengqin.


Os portadores de BIR da RAEM que vivem em Hengqin ou que têm planos para o fazer têm expectativas muito elevadas quanto ao modelo da zona aduaneira autónoma”

TIAN YI
DIRECTOR DO GABINETE DE GUANGDONG DA UNIÃO GERAL DAS ASSOCIAÇÕES DOS MORADORES DE MACAU

Tian Yi aponta que uma das áreas onde ainda há espaço para melhorias são as instalações de passagem de veículos privados na fronteira de Hengqin. Com isso em mente, entraram em funcionamento em Março um total de 30 corredores de inspecção “One-Stop” para passagem de veículos de passageiros e de carga no posto fronteiriço de Hengqin.

O responsável aponta também para o sector da saúde e apoio à terceira idade. A este respeito, a União Geral das Associações dos Moradores de Macau começará em breve a operar, em modelo piloto, um centro de serviços para idosos localizado no complexo habitacional “Novo Bairro de Macau”. Tian Yi espera que, com a zona aduaneira autónoma, medicamentos e dispositivos médicos aprovados em Macau possam também ser facilmente disponibilizados em Hengqin, promovendo ainda mais a integração entre as duas regiões.

Entre os portadores de BIR da RAEM com ligações a Hengqin, há a expectativa de que o estabelecimento da zona aduaneira autónoma traga mudanças positivas. Há quem sugira que o modelo seja gradualmente reforçado e ampliado, de forma a facilitar a mudança de agregados familiares de Macau para a ilha. É o caso da senhora Chan, que se mudou de Macau para Hengqin em 2017 e reconhece as grandes mudanças ocorridas na ilha. Actualmente aposentada, reside em Hengqin com o marido, enquanto os seus filhos trabalham e vivem em Macau. Nas suas palavras, Hengqin está agora “muito mais conveniente” do que há cinco anos, especialmente em termos de disponibilidade de comércio, transportes e outros serviços essenciais.