Uma impressão ténue, mas persistente. A Macau de Maria Isabel Marreiros teima em sobreviver nos sabores de sempre, no eco das vozes de outrora e na lembrança de dias mais simples e mais autênticos. Viagem guiada pelos recessos da memória e pelo âmago de uma cidade plural que persiste no que tem de mais genuíno, a alma da(s) gente(s)
Texto Marco Carvalho
Fotografia Cheong Kam Ka
Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Em Macau, as leis da matéria esbarram de frente com as subtilezas do espírito e as verdades de Antoine de Lavoisier não são mais do que possibilidades.
Nascida em Macau, filha de pai português metropolitano e mãe chinesa, a directora da Creche da Santa Casa da Misericórdia de Macau não restringe a amplitude dos afectos a pedras e paredes, mas neles engloba as pessoas, os estímulos e os pequenos rituais que dão significado ao quotidiano, mesmo que alguns sobrevivam, apenas, sob a forma de saudade: “As nossas memórias de infância são sempre as melhores, não são? Em parte, porque são as memórias daquilo que nós perdemos para sempre”.
Afunilada, exígua e sombria, a Rua da Barra desagua com circunspecção no Largo do Pagode da Barra, mas, para Maria Isabel Marreiros, poucas zonas se projectam tanto em direcção ao passado como o ténue fio da memória que conduz ao Largo do Lilau e aos saborosos entardeceres da infância. Outrora ladeado por pequenas e arejadas vivendas, com vista privilegiada para as águas tranquilas do Porto Interior, o arruamento foi escola, recreio e modo de vida, um laboratório a céu aberto onde os estímulos e as experiências se transformaram em certezas.
“Foi um período muito marcante para mim. Vivíamos com grande intensidade, sem ter receio de coisa alguma. Vivíamos muito em liberdade. Podíamos brincar na rua sem qualquer receio. Havia mais confiança, não havia tantos veículos. Estas brincadeiras hoje em dia não seriam possíveis, não é?”, questiona. “Depois de jantar, os residentes chineses pegavam num banquinho e sentavam-se à porta para conversar, até porque era mais fresco no Verão. As pessoas ficavam mais na rua, conversavam e, enquanto isso, nós brincávamos na rua. Esta prática ajudou a criar relações duráveis de vizinhança”, acrescenta Maria Isabel Marreiros.
De costas voltadas para o bulício da baía da Praia Grande, a franja de encosta entalada entre a Igreja de São Lourenço e a Barra viu germinar nesses anos um microcosmos muito próprio, com impulsos e manifestações que não vingavam com a mesma autenticidade em qualquer outro lado de Macau e que fizeram despontar, com inegável vitalidade, os contornos de uma identidade.
“Era um ambiente fortemente macaense. Lembro-me de as vizinhas conversarem de janela para janela em patuá. Hoje em dia, se percebo alguma coisa de patuá é por causa disso”, conta a educadora de infância.
Se, no pedaço de mundo entalado entre o Largo do Lilau e o Largo da Barra, Maria Isabel Marreiros descobriu os fundamentos de uma identidade que abraça, alimenta e procura salvaguardar desde então, foi na última encarnação do Liceu Nacional Infante D. Henrique, situada nos aterros da Praia Grande, que tropeçou na vocação para o ensino e desencantou um rumo de vida.
Do complexo escolar, demolido em 1989, guarda recordações vívidas, mas, uma vez mais, é das pessoas que guarda as mais sólidas referências: “O Liceu Nacional Infante D. Henrique ficava situado em frente ao Hotel Sintra, em toda essa zona que se estende até ao Hotel Lisboa. Os anos do Liceu foram anos de grande alegria, de grandes amizades. Era um espaço formidável, em que recebemos, realmente, uma boa educação”, argumenta.
“Na altura, o reitor era o Túlio Tomás, que acumulava funções como director dos Serviços de Educação. Quando completei o sétimo ano, na segunda metade da década de 70, analisei as minhas opções e acabei por optar por ficar algum tempo mais em Macau”, diz Maria Isabel Marreiros. “Concorri para entrar no ensino, para ensinar e foi quando o Dr. Túlio Tomás me chamou e me sugeriu o curso de educadora de infância”.
Túlio Tomás escreveu, pelo seu próprio punho, uma carta de recomendação, e, em 1978, Maria Isabel Marreiros embarcou rumo a Lisboa, para estudar na Escola João de Deus: “Senti Macau mudar, eu diria, a partir dos meus vinte anos. Em 1980, quando regressei para fazer férias após dois anos em Portugal, senti a cidade muito diferente. Mais tarde, acabei o curso e fui a primeira macaense, a primeira estudante local a regressar com um curso de educação infantil, algo inédito na altura. Tudo isto marcou-me muito”.
Regressada a Macau, Maria Isabel Marreiros não tardou a colocar em prática “as ideias muito novas, muito inéditas” que trouxe de Portugal, primeiro no Jardim de Infância D. José da Costa Nunes e depois num projecto que se tornou o cânone e a regra no apoio à primeira infância em Macau, o da revitalização do Infantário Avé Maria.
“No ano de 1984, recebi um convite dos Serviços de Educação para dirigir e coordenar um jardim de infância que ia abrir nesse espaço. Aceitei esse desafio e dei o meu melhor, até porque trazia ideias de fora e, como era muito jovem, tinha a energia para um projecto desta dimensão. E foi assim que, no sopé da Colina da Guia, montei o meu primeiro jardim de infância”, recorda a educadora. “Foi um projecto que deu muito crédito a Macau e que serviu muito bem, sobretudo, a comunidade portuguesa e macaense”, sublinha.
Situado na Rampa do Padre Vasconcelos, com vista para a Estrada de Cacilhas e para os aterros do Porto Exterior, o espaço depressa conquistou a aceitação da população do território, um favorecimento a que não era indiferente o facto de ter ali, a dois passos de distância, o maior recreio da cidade.
“Usávamos a Colina e as trinta e três curvas como uma extensão da escola. Todos os anos convidávamos a banda da Polícia para lá ir tocar para os alunos. Convidávamos os grupos de dança do leão para lá ir dançar e brincar com as crianças e, sendo eu macaense, havia um cruzar de culturas que eu podia transmitir tanto às minhas colegas, como às crianças. Foi uma fase gloriosa na nossa profissão, também por causa do espaço”, reconhece Maria Isabel Marreiros.
À voragem dos dias e à cidade que desaparece e se reinventa sem cessar, Maria Isabel Marreiros contrapõe a urbe inefável que transcende os espaços – e até a tessitura do tempo – e sobrevive em práticas, saberes e sabores antigos. Há ainda espaços e outras mãos disseminadas pela cidade que dominam, quase como que por magia, a improvável arte de escancarar as portas da infância, através de encantamentos tão simples como um prato de “chee cheong fun” ou de um naco de uma iguaria natalícia que já muito poucos dominam.
“Há um sítio, perto dos Três Candeeiros, onde regresso muitas vezes, sobretudo aos fins-de-semana, para comprar “chee cheong fun”, aquela massa longa que se corta aos pedaços e que é servida com molho de amendoim, entre outras coisas. Esta casa existe no mesmo local há 30 ou 40 anos. Ainda existem estas casas pequenas onde podemos reencontrar os sabores de antigamente”, explica.
“No Natal, por exemplo, há uma iguaria, o aluá, que era presença habitual nas mesas macaenses. Antigamente, havia várias famílias macaenses que faziam o aluá e nós encomendávamos. Agora, praticamente só existe um sítio onde podemos encomendar, numa pequena mercearia chinesa, na Rua dos Mercadores. É um senhor chinês, muito velhinho, que vende aluá e que tem uma ligação de décadas com os macaenses por causa desta iguaria”, remata Maria Isabel Marreiros.