Texto Joana Freitas
Fotos António Mil-Homens
São 6h30 e, ainda antes do frenesi da ida para os empregos e os negócios, a cidade espreguiça-se em movimentos silenciosos. Os amantes da natureza e do ar puro enchem progressivamente parques, jardins e trilhos de marcha e de jogging. Como por exemplo os parques que rodeiam a zona da ilha Verde. É altura de começar o dia a buscar o equilíbrio através do tai chi.
Omi Yang, na casa dos 40 anos de idade, é uma das praticantes que ali se encontra. A rotina na rua estende-se por cerca de seis meses. “Antes fazia numa sala com uma professora e até cheguei a querer ir a competições.” Foi o horário de trabalho por turnos num dos casinos de Macau que a impediu de continuar a frequentar as aulas, mas agora Omi Yang agradece o facto de se ter juntado a um pequeno grupo debaixo das arcadas de um edifício no Fai Chi Kei. Fala de “contacto com a natureza, mais amigas e mais divertimento”. São só mulheres, normalmente com leques, as que fazem parte do dia sim, dia não em que Omi pratica tai chi. Envergonhadamente diz saber que “não tem muito jeito”, mas o bem-estar que sente desde que começou a prática, há alguns anos, “é suficiente e faz-me estar bem com o mundo”.
Habitualmente, são jardins como o Lou Lim Leoc, bem ao estilo chinês, ou a Praça do Tap Seac que são procurados para os exercícios matinais. Mas isso não é uma obrigatoriedade e, hoje em dia, os espaços em redor dos prédios também recebem estes atletas. Vão munidos de leques, espadas e rádios, que espalham no ar melodias imperceptíveis na fraca potência das colunas. O lago Nam Van enche-se também de praticantes diários quando os primeiros raios de sol despontam.
O boxe da sombra
A prática do tai chi enquadra-se idealmente de manhã, ao raiar do dia, ou ao fim da tarde. Baseado nos princípios do Yin Yang, que cruzam pólos opostos – noite, dia, feminino, masculino, escuro, luz – crê-se que é nestas horas que se atinge um maior contacto com o equilíbrio. O qi é o ponto de partida. “O tai chi faz parte dos chamados sistemas internos (neijia), uma das vertentes marciais que dá mais importância ao trabalho energético e ao desenvolvimento da musculatura que se encontra mais próxima dos órgãos para melhorar a circulação sanguínea, os movimentos respiratórios.” A explicação é dada por Diogo Santana, professor da Escola de Artes Marciais Chinesas She-Si, em Portugal.
Mas o que é, em termos mais práticos, o tai chi? Como explica Sifu Wa, da Associação de Artes Marciais de Macau, pode distinguir-se como um desporto ou uma prática medicinal aconselhada por muitos médicos. Em 1920, a modalidade iniciou a sua expansão na China, que a tomou como prática nacional quando se apercebeu dos seus benefícios. Desenvolveu-se num modo semelhante ao wushu, baseado na observação do comportamento dos animais: a luta travada entre uma garça e uma serpente levou a que a habilidade de atacar e defender em simultâneo fosse imitada pelos homens. Em movimentos suaves e lentos, são protegidos os principais pontos do corpo, também utilizados na acupunctura.
Origens
A história do tai chi é considerada sempre sob dois aspectos: o lendário e o historicamente comprovado, que não se excluem necessariamente. O aspecto lendário é geralmente encarado como uma metáfora para indicar o desenvolvimento dos princípios do tai chi através da figura do taoista imortal Chang San Feng. Historicamente comprovado, o criador do tai chi foi Chen Wangting.
Existem indicações de que durante a dinastia Tang (618-906 d.C.) um eremita chamado Xu Xuan Ping desenvolveu uma arte chamada “os 37 estilos do tai chi”, também chamada de chang chuan (punho longo) ou chang kiang (rio longo). Por volta da mesma época, um monge taoista chamado Li Dao Zi praticava uma arte denominada “punho longo primordial”, semelhante aos 37 estilos do tai chi. Muitas das posturas dessas duas artes têm nomes semelhantes aos das actuais posturas do tai chi.
O texto Guan Jing Wu Hui Fa (Método para se alcançar o esclarecimento através da observação da escritura), escrito por Cheng Ling Xi na época da dinastia Liang (907-923 d.C.), no período das cinco dinastias e dos dez reinos, é o documento mais antigo já encontrado a usar o termo tai chi chuan.
No entanto, historiadores acreditam que o tai chi foi criado por Chen Wangting (1600-1680) na passagem da dinastia Ming para a dinastia Qing. Esta é a versão considerada oficial pelo Governo chinês.
(In)Diferenças
Estima-se que existam entre 80 a 200 milhões de praticantes apenas na China, embora seja quase impossível acertar num número devido aos milhares de praticantes por conta própria. Mesmo nas grandes cidades chinesas, como Xangai ou Pequim, os parques e as praças enchem-se diariamente de adeptos da prática. De acordo com dados oficiais do Centro de Tai Chi e Medicina Chinesa de Pequim, o número elevado de praticantes deve-se muito aos programas do Ministério de Saúde Pública, que cria grupos nas ruas e hospitais com o objectivo de tentar restabelecer a saúde de pacientes em recuperação.
Em Portugal, por exemplo, contam-se mais de 700 atletas federados, mas a arte marcial teve que se adaptar a um quotidiano diferente, onde o sentido prático se sobrepõe ao filosófico. “Há noções que se perdem porque os ocidentais vivem num sistema baseado na produtividade e rentabilidade económica. Temos planeado tudo desde o horário de trabalho às necessidades do consumo”, refere Diogo Santana, professor da modalidade há mais de um década, considerando ainda que há conceitos que ficam fora de sentido para quem não estude e viva a fundo o tai chi.
Associa-se quase que automaticamente arte marcial aos factores violência e rapidez. Contudo, no tai chi os movimentos lentos visam em relaxar o corpo e concentrá-lo para que se possa utilizar a energia na sua máxima eficiência. Ainda assim, surgem movimentos mais rápidos e de auto-defesa. É uma arte atraente ao espectador, mas que acarreta outra função – protecção do dantian, um ponto vital no abdómen, que ao ser “massajado” com os movimentos largos e circulares das mãos, age como o centro estabilizador da força interior.
É quase noite em Macau. Mais uma vez os parques enchem-se com praticantes de tai chi. A prática dos movimentos pode ser orientada usando como guião um papel no bolso com desenhos. Os movimentos são imperfeitos, mas desenrolam-se sintonizados. São repetidos as vezes necessárias porque não há horários ou etapas de aprendizagem.
Do saco ao ombro, tiram as espadas e os leques que, ao serem parte da execução do tai chi, se tornam parte do próprio praticante. São a extensão de um membro e provêm da tradição longínqua da China.
Os leques, por exemplo, escondiam por trás de uma aparência inocente ferros de aço o paus de bambu, já a “kim” (a espada de ponta fina e flexível) era considerada a espada imperial. A flexibilidade e a variação de ataques que permite conjugam-se com a sua graciosidade e elegância, que combina na perfeição com o tai chi. Uma forma longa pode conter 60, 108 ou até mesmo 150 movimentos, enquanto uma forma curta tem apenas 27 movimentos.
Para José Tavares, vice-presidente do Instituto do Desporto da RAEM (ID) este é “um desporto bastante apreciado pela generalidade da população”. Em Macau é a Associação Geral de Wushu quem tem a palavra no apoio técnico e desenvolvimento desta prática. Mas há ainda “as classes oferecidas pelo Instituto do Desporto e as das muitas associações e organizações particulares e públicas”, salienta o responsável. Pondo de parte o bem-estar, o tai chi é um desporto que o ID pretende continuar a promover, já que “é culturalmente significativo para a região, é adequado a indivíduos de todas as idades, promovendo a saúde não só a nível físico mas também a nível psíquico e social”.
Na RAEM, existem classes de recreação e manutenção organizadas pelo ID, onde, a pagar entre 50 e 100 patacas a cada dois meses, se pode aprender a técnica três vezes por semana. Se em 2009, o número de inscritos nestas turmas rondou os 3600, já o ano passado este número cresceu 27%, com 4587 alunos, num total de 157 turmas.
Desporto
À semelhança do que aconteceu com o wushu, esta arte vai-se tornando popular no cinema e surge como categoria de competição. As formas vão-se modernizando e passam a ser menos complicadas de ensinar e aprender. O tai chi está presente em campeonatos por todo o mundo. E muitos ocidentais já o incluem num dia-a-dia saudável. Mehmet Oz, um famoso cirurgião cardíaco norte-americano, tem como especialidade retardar ao máximo os efeitos da idade nos seus pacientes. Director do Programa de Medicina Integrada da Universidade de Colômbia, em Nova Iorque, Oz é conselheiro na clínica de Michael Roizen, o criador do conceito de que é possível manter o organismo mais jovem do que a idade natural do ser humano.
Por todo o lado, Mehmet Oz recomenda a prática do tai chi como combate ao envelhecimento e diz mesmo que o conjunto do equilíbrio, coordenação motora e meditação oferecidos pela prática desta arte oriental, se adoptados pelos cidadãos de todo o mundo, poderia aumentar a esperança média de vida da população para 110 anos.
Apesar de suaves, os movimentos tomam impulsos fortes e servem como sistemas de ataque ou defesa. Maioritariamente composto por movimentos circulares, repetitivos e coordenados com a respiração, “o segredo está em tornar o tronco num eixo”, explica Sifu Wa, um ponto de equilíbrio de onde partem todos os outros movimentos.
O tai chi não deixa de parte o facto de ser uma arte marcial e, por isso, as posições das pernas, flexionadas ou esticadas em equilíbrio, são semelhantes às do wushu. Nos diferentes estilos, ou escolas, os movimentos fundamentam-se numa mesma natureza: a imitação dos animais. Assim, ao abrir os braços o atleta imita uma garça a esticar as asas. Com as mãos, agarra a cotovia pela cauda ou assume-se como uma serpente a deslizar no tronco de uma árvore.