Entrevista

“A actividade de advogado é hoje muito mais diversificada”

Oriana Inácio Pun, secretária-geral da Associação dos Advogados de Macau
Os advogados de Macau estão empenhados em aproveitar as oportunidades geradas pela integração regional no âmbito do projecto da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau. Quem o diz é Oriana Inácio Pun, secretária-geral da Associação dos Advogados de Macau. Em entrevista, a causídica defende que o edifício legislativo do território se mantém sólido, mas que se deve ir adaptando às mudanças da sociedade. Quanto ao português, considera que não há obstáculos para quem queira usar o idioma nos tribunais

Texto Emanuel Graça
Fotografia Cheong Kam Ka

A crescente integração regional no âmbito do desenvolvimento da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau tem vindo a proporcionar várias oportunidades aos advogados locais para poderem exercer a sua actividade do outro lado da fronteira. Considera que os profissionais do território estão a fazer proveito disso?

Os advogados estão a aproveitar bem as oportunidades no âmbito da Grande Baía, e estas oportunidades vão ser cada vez mais. Ainda temos muitas oportunidades, muitos mercados, por explorar. O importante é termos visão e conhecermos melhor a realidade, para podermos desenvolver o mercado dos serviços da Grande Baía e até do resto da China. O mercado de Macau é limitado e o mercado do Interior da China é muito diverso. É muito mais vasto e, por isso, os advogados de Macau estão interessados em explorá-lo.

No seio da Grande Baía, destaca-se o projecto da Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin. Que oportunidades é que esta iniciativa em particular pode oferecer aos advogados de Macau? Por exemplo, já há escritórios de Macau com presença em Hengqin.

Temos escritórios, que podemos denominar de tipo “joint-venture”, no âmbito do CEPA [Acordo de Estreitamento das Relações Económicas e Comerciais entre o Interior da China e Macau], envolvendo escritórios de Macau, do Interior da China e de Hong Kong. Já existem em Hengqin, em Zhuhai, Shenzhen e até em Guangzhou. Este é um modo de cooperação que permite aos advogados de Macau – incluindo advogados de nacionalidade portuguesa e de língua portuguesa – inscreverem-se como advogados oferecendo serviços jurídicos de direito estrangeiro.

Por outro lado, temos um programa-piloto para a Grande Baía, que já vai no terceiro curso de formação. Este é outro tipo de cooperação, que permite aos advogados de Macau trabalharem com base na lei do Interior da China, em parceria com escritórios locais, essencialmente em áreas como o direito civil ou comercial e envolvendo clientes de Macau. Há ainda outra forma de prestar serviços no Interior da China, que é como consultor jurídico, também no âmbito do CEPA, em que qualquer advogado de Macau, de língua chinesa ou portuguesa, pode prestar consultoria a diferentes escritórios, em todo o Interior da China.

Além disso, temos muitos advogados a desempenharem funções em instituições de arbitragem, nomeadamente em Zhuhai, Guangzhou e também Shenzhen. Também há cooperação quando está em causa lei estrangeira, ou seja, quando os advogados de escritórios do Interior da China precisam de advogados que conheçam melhor a lei de uma jurisdição estrangeira, nomeadamente a lei dos países de língua portuguesa – nesses casos, também recorrem aos nossos serviços.


“Temos um direito com uma base muito sólida, muito bem estruturada”

ORIANA INÁCIO PUN
SECRETÁRIA-GERAL DA ASSOCIAÇÃO DOS ADVOGADOS DE MACAU

Que mais-valias podem os advogados de Macau oferecer no âmbito da integração regional?

Em primeiro lugar, Macau foi sempre uma cidade internacional e, por isso, temos uma visão muito aberta e temos muitos contactos com o resto do mundo. Isso dá-nos uma perspectiva diferente das coisas. Por outro lado, os advogados de Macau – a maior parte, pelo menos – são bilingues ou trilingues. Alguns até sabem mais línguas. Isso também é uma grande vantagem para nós. Outra vantagem prende-se com o facto de o direito de Macau ter uma matriz portuguesa. Temos um direito com uma base muito sólida, muito bem estruturada. E, no Interior da China, também é utilizado o direito continental: embora o direito de Macau não seja igual, temos uma base similar – por isso, temos uma maior facilidade em perceber a lei do Interior da China. Por fim, temos a ligação com os países de língua portuguesa, que é também uma das nossas vantagens.

Os advogados de Macau são bem vistos do lado de lá das Portas do Cerco?

Sim. Somos bem-vindos. Trabalhamos sobretudo em cooperação. Além disso, em termos de direito substantivo, estamos bem preparados. A China está a dar muita importância ao direito: tudo tem de ser baseado na lei, em fundamentos legais. Isso é muito benéfico para nós, porque temos uma boa formação. E isto é algo que devemos transmitir aos advogados jovens: temos de ter confiança no futuro, porque temos vantagens e estamos bem preparados para aproveitar as oportunidades.

Falou nos advogados jovens. As profissões ligadas ao direito continuam a gerar interesse entre as novas gerações?

Penso que sim. Os cursos superiores de direito estão sempre cheios, nomeadamente o da Universidade de Macau. Temos cerca de 170 advogados estagiários. Ou seja, temos muitos jovens formados em direito e que estão interessados em entrar na advocacia e noutras profissões no campo jurídico.

Não está preocupada com o futuro da profissão em Macau, portanto?

Nas últimas décadas, o número de advogados tem vindo a crescer: se compararmos com há 20 anos, quase que duplicou. Existem agora mais de 400 advogados, embora nos últimos anos tenha ocorrido uma quebra ligeira, também associada à pandemia. Actualmente, a actividade jurídica, do próprio advogado, é muito mais diversificada. Para além dos grandes escritórios, há hoje escritórios de pequena e média dimensão, e há mesmo quem opte por trabalhar sozinho. Depois, há profissionais a trabalhar para as operadoras de jogo, outras empresas concessionárias, para grupos privados, para a banca. Por isso, a actividade de advogado é hoje muito mais diversificada. Também há mais concorrência, mas isto é natural.

O direito é uma das pedras basilares da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM). Como vê a evolução do sistema ao longo das últimas duas décadas?

Há maior regulação em vários sectores e houve um aumento na produção legislativa. Durante a fase de produção legislativa, seja na revisão de leis ou no lançamento de uma nova lei, existem sempre consultas ao público. O processo legislativo em si está bem feito. Agora, deve continuar-se a produzir mais leis e rever a legislação existente, para acompanhar a evolução da sociedade, nomeadamente ao nível das novas tecnologias e da indústria financeira, que são áreas em que Macau está a apostar. Temos que ter as leis preparadas para estarmos prontos para desenvolver essas actividades.

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Considera que o actual edifício legislativo da RAEM se mantém sólido?

Continua a estar. Na verdade, sempre estivemos sólidos. O que é preciso é actualizar: face às necessidades sociais, à evolução comercial, social e económica, ir produzindo mais leis para responder às necessidades da população.

Como vê o papel da língua portuguesa no âmbito do direito em Macau?

A língua portuguesa continua a ser muito utilizada. Aliás, o estatuto da língua portuguesa está previsto na Lei Básica e tem de ser cumprido. Qualquer pessoa pode usar o português, sem barreiras. Os tribunais continuam a ter uma equipa de tradutores para assegurar as traduções, inclusive as traduções simultâneas, durante os julgamentos. Ou seja, qualquer pessoa pode optar por falar na sua língua. Ainda há despachos e até acórdãos produzidos em língua portuguesa. Por isso, a língua não é uma preocupação. É certo que agora se usa mais a língua chinesa, mas a língua portuguesa continua a ser uma língua garantida. Eu própria ainda escrevo muito em português. Não há obstáculos para quem queira usar o português. E o que vejo também é que hoje continua a haver muitas pessoas a estudar direito em português, o que é bom.

De que forma é que a utilização do português no sistema jurídico pode contribuir para a afirmação de Macau como uma plataforma entre a China e os países de língua portuguesa?

Pode ser importante no âmbito da arbitragem, que é um tipo de mecanismo em que Macau está a apostar, em termos de integração na Grande Baía e também de integração no mundo global, em particular com os países de língua portuguesa. Na arbitragem, a língua portuguesa é importante, porque para os países ou empresas que estão mais habituados a trabalhar nesta língua, podemos ter um papel importante em termos de arbitragem.

Que papel desempenha hoje a Associação dos Advogados de Macau na sociedade local?

Somos uma associação de características únicas: isso dá-nos autonomia, mas, por outro lado, dá-nos muita responsabilidade. Temos de ter a noção que temos de regular bem a nossa classe: ser exigente na formação e nos exames de acesso à profissão, e no controlo da qualidade deontológica e técnica dos advogados. Como secretária-geral, sou responsável pela área dos estagiários, que é uma parte muito importante da classe. Preocupamo-nos em formar advogados dignos e sérios, correctos, tecnicamente competentes e com elevados valores deontológicos.

Por outro lado, uma das coisas que devemos promover é o uso das novas tecnologias na profissão e no trabalho da associação. Ainda estamos a trabalhar de forma muito tradicional. Com a evolução da sociedade e também por influência do estrangeiro e até do próprio Interior da China, há ideias diferentes de como desenvolver a advocacia. Sendo certo que há algumas ideias que podemos considerar, há valores que temos sempre de manter. Quando nos comparo com os advogados de Hong Kong e do Interior da China, eles são muito activos, muito competitivos. Nós temos qualidade e temos preparação. Temos de abrir as nossas perspectivas e aproveitar as oportunidades.