O Grande Prémio de Macau celebra este ano a 70.ª edição, com o regresso das taças do mundo FIA GT e Fórmula 3. Com uma história marcada por percalços e muita devoção, o evento anual reveste-se hoje de emoção a cada curva, com estrelas do presente e do futuro à procura de sucesso no lendário circuito urbano da Guia
Texto Sérgio Fonseca
Um grupo de amigos estava longe de imaginar que o evento que se propôs a realizar naquela noite da Primavera de 1954, sentados na esplanada do Hotel Riviera, se tornasse, setenta anos depois, num dos maiores eventos do desporto motorizado do mundo.
A ideia inicial era uma caça ao tesouro com recurso a carros, tão em voga naqueles tempos, mas rapidamente o objectivo passou a ser uma simples Prova de Regularidade. Fernando Macedo Pinto, Carlos da Silva e Paulo Antas não procuravam um grande evento, até porque, na altura, só existiam cerca de 300 automóveis em Macau. Um contacto com Frank d’Almada e Castro, director do Hong Kong Automobile Association, para pedir informações, despontou a vinda de Paul du Toit ao território. Fascinado com o que encontrou, o antigo corredor residente em Hong Kong disse que o traçado que lhe foi apresentado era digno de corridas do tipo Grande Prémio ou Le Mans.
Com a concordância do então governador de Macau e o aval do Automóvel Club de Portugal, que logo depois nomeou o seu primeiro delegado para o território, o evento tornou-se uma realidade. Ainda se colocou a hipótese de fazer uma corrida de 24 horas, mas essa ideia morreu à nascença, pois o parque automóvel era modesto e constituído por carros do dia-a-dia. O evento foi, desde logo, baptizado como Grande Prémio de Macau e o circuito, por ladear em grande parte a Colina da Guia, foi chamado de Circuito da Guia.
Tamanho foi o desafio na organização desta primeira prova que Macedo Pinto terá dito a Carlos Silva: “É a primeira e a última corrida que vamos organizar, porque nunca mais nos vão autorizar uma prova deste género”.
E o quão errado ele estava…
Estrada acidentada
A primeira edição foi um êxito, tanto a nível desportivo como para a imagem e cofres de Macau. O sucesso da prova rapidamente se espalhou por outras paragens do sudeste asiático, e, perante esta onda de interesse, o Governo de Macau avançou com o asfaltamento das zonas da pista, que estavam em terra batida, e com um programa de quatro corridas: “Grande Prémio”, “100 milhas handicap”, “Taça das Senhoras” e uma “Corrida de Principiantes”. Estava lançado o evento.
O Grande Prémio de Macau foi evoluindo com a mesma velocidade da indústria automóvel, com os regulamentos e as corridas de apoio a serem adaptados às conveniências da época, acompanhando as tendências do que se fazia além-fronteiras. Em 1962, disputou-se a primeira corrida só para monolugares, então Fórmula Júnior, mas o facto de ter reunido apenas cinco participantes fez com que não vingasse. Curiosamente, três anos depois, realizou-se em pleno Circuito da Guia uma corrida de karting – mais radical que isto só as corridas de scooters de 2003 a 2007 –, mas que também não teve repetição. O primeiro Grande Prémio de Motos só chegou em 1967 e tal foi o carinho que recebeu, que não mais saiu do programa – à excepção das edições de 2020 e 2021, devido à pandemia da COVID-19.
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Apesar de o evento ter um saldo muito positivo ao longo da sua história, foram vários os episódios em que teve de enfrentar contrariedades regionais e globais, desde as crises do petróleo na década de 1970, passando ainda pelas desavenças com a Comissão Desportiva Internacional (CDI) e a Federação Internacional do Desporto Automóvel (FISA). No final da década de 1970 e início da década de 1980, o Circuito da Guia era visto em Paris como demasiado perigoso e um mau exemplo em termos de segurança – isto apesar de a prova ter ganho, em 1976, o estatuto de evento reconhecido pela FISA (antes a prova era um evento internacional no calendário de provas de Portugal).
Com o declínio da Fórmula Atlantic, no início da década de 1980, Macau tentou acolher a Fórmula 2, mas a intenção foi rejeitada pela FISA, alegando falta de segurança. O inglês Barry Bland, que co-organizava as provas de monolugares, e Rogério Santos, então à frente do Leal Senado em Macau, foram obrigados a apostar na Fórmula 3, uma aposta que se revelaria um enorme sucesso, tendo por esta prova passado alguns dos mais celebrados pilotos internacionais.
Entretanto, Alfredo César Torres, o homem forte do automobilismo em Portugal, usou a sua influência junto de Jean-Marie Balestre, o então presidente do órgão federativo mundial, para sossegar os ímpetos, e dez anos depois, já com Max Moxley à frente da Federação Internacional do Automóvel (FIA) –, este organismo acabou por até fazer várias investidas infrutíferas para que Macau acolhesse um Grande Prémio de Fórmula 1.
Fechadas as portas da categoria rainha do desporto automóvel, o Grande Prémio de Macau afirmou-se com a sua prova de Fórmula 3, que ganhou o estatuto de Taça do Mundo e de Taça Intercontinental. A passagem de administração do território traduziu-se numa maior aproximação à FIA, tendo Macau conseguido reunir num só fim-de-semana três Taças do Mundo – F3, Turismo e GT –, enquanto manteve a sua corrida de motociclismo, o que tornou o evento único no mundo.
Aos de cá
Sem esquecer a influência e dinâmica do empresário Teddy Yip, a quem o Grande Prémio de Macau deve muito – nomeadamente no que toca à internacionalização do evento –, as primeiras quatro décadas foram impulsionadas por residentes e entidades da vizinha Hong Kong, desde os pilotos à Hong Kong Automobile Association (HKAA), que organizava a prova. Todavia, em 1985, nascia o Automóvel Clube de Macau (ACM), agora Associação Geral Automóvel de Macau-China (AAMC), e muito iria mudar quando João Manuel Costa Antunes assumiu as rédeas do evento, em 1988. Os anos que se seguiram marcaram o fim da dependência de Hong Kong, com a construção de infra-estruturas e a formação de pessoal em Macau.
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Mário Sin, o primeiro presidente do ACM e ex-membro da Comissão do Grande Prémio de Macau, recorda, porém, que nem tudo foi fácil: “Aquando da passagem da organização desportiva do HKAA para o ACM, a organização desportiva de Macau não estava preparada. Éramos muito dependentes do HKAA e nessa altura o know-how não era transmitido para a organização desportiva de Macau, concentrando-se somente nos comissários de pista”.
Perante esta fragilidade, conta, foram logo solicitar ao Automóvel Clube de Portugal que lhes desse formação em Macau e assistência na organização do Grande Prémio de Macau. “A parte mais difícil foi a formação de grupos de pessoas para a direcção da prova e comissários para áreas e tarefas específicas para o funcionamento do Grande Prémio. O foco noutras áreas foi-se fazendo ao longo de vários anos”, conta Mário Sin.
Mas não foi só no campo desportivo que os de cá assumiram as despesas do evento. A TVB Pearl, de Hong Kong, foi a responsável pelas transmissões televisivas até 1984. A Teledifusão de Macau (TDM) é inaugurada em Maio desse ano e, em Novembro, junta-se à TVB para se estrear na cobertura do evento, cedendo três câmaras. Em 1985, a transmissão já foi feita em parceria, com sete câmaras para cada uma das estações. No ano seguinte, a TDM assume a função de “transmissora anfitriã” do Grande Prémio de Macau, papel que conserva até aos dias de hoje.
Circuito intemporal
No que começou por ser uma celebração de entusiastas dos automóveis, em que até os militares serviam de comissários de pista, o evento actual cumpre as mais altas exigências de um desporto profissional e altamente tecnológico. Os carros e motos estão cada vez mais rápidos, e todos os anos são introduzidas novas medidas de segurança. O Circuito da Guia, no entanto, está praticamente inalterado desde o primeiro dia.
Ao longo do tempo foram apresentadas e estudadas várias propostas alternativas ao Circuito da Guia, desde uma mudança para a Taipa ou para a zona do Cotai, até à construção de um autódromo permanente. “Houve de facto muitas pessoas que não gostavam do Grande Prémio e que queriam que este fosse realizado fora da península de Macau, devido aos inconvenientes criados no trânsito durante os dias do evento”, diz Mário Sin.
“Ninguém pensou na sustentabilidade da manutenção do circuito e nos custos que porventura iriam aparecer”, isto para além da descaracterização que iria ter o evento, pois o Circuito da Guia tem “fama mundial por ser um circuito citadino em que ninguém pode treinar durante o ano”, acrescenta.
“Se tivéssemos um circuito permanente em Macau, o Grande Prémio perderia as suas características e especialmente o interesse para os corredores internacionais de virem cá desafiar as suas capacidades”, defende Mário Sin.
Em 1988, não havia praticamente instalações e o centro de imprensa e o apoio aos pilotos funcionavam em compartimentos de madeira debaixo das árvores. O piloto britânico e ex-apresentador do Top Gear, Tiff Needell, chegou a recordar a ironia dos anos 1970, em que as equipas trabalhavam paredes meias com os abrigos dos refugiados vietnamitas. Em 1993, ergueu-se o edifício em frente ao Terminal Marítimo do Porto Exterior, que hoje é o centro nevrálgico do Grande Prémio de Macau, e foi construída uma nova Torre de Controlo em 2013. O antigo paddock era na “Curva do Mandarim”, onde a antiga Torre de Controlo ainda está, como testemunho desses tempos.
Embora muitos pilotos descrevam o traçado de Macau como um dos mais exigentes circuitos citadinos onde alguma vez correram, a magia da prova e a exigência da pista foram sempre um forte atractivo.
Durante anos, a corrida de F3 chegou mesmo a ser considerada fundamental para os corredores que sonhavam em chegar ao patamar mais alto do automobilismo – em alguns anos, a maioria da grelha da F1 era constituída por pilotos que passaram pelo tortuoso circuito do Grande Prémio de Macau.
O que mudou
O Grande Prémio de Macau sempre teve uma fortíssima componente local, principalmente a partir dos anos 1980. A contrastar com a chegada das poderosíssimas equipas de fábrica – a primeira foi a Alpine, em 1969 –, deu-se a democratização do desporto. As corridas de apoio de motociclismo, entretanto já extintas, e as corridas de carros de turismo permitiram a muitos amadores cumprir o sonho de correr no Circuito da Guia. Na altura, bastava pequenas alterações para que carros e motos de estrada pudessem participar na prova. No entanto, a profissionalização do desporto e as novas tecnologias têm tornado mais difícil a vida aos pilotos amadores.
“Comecei a correr de mota” em 1976, rememora Belmiro Aguiar, multi-vencedor da corrida de iniciados de duas rodas. “Naquela altura, só gastei na prestação da mota e consegui um bom resultado e boas classificações. A seguir, surgiu a oportunidade de ser patrocinado pela Yamaha de Macau e correr como piloto da casa sem pagar e com a oferta de equipamento pessoal”, recorda.
Depois, vieram os carros. “Aprendi mecânica com o meu mestre, o Sr. Teixeira, e tenho um amigo que tem uma oficina na Ribeira do Patane. Comecei a modificar um Nissan para correr e assim me iniciei” nas corridas de carros, explica Belmiro Aguiar, que continua a ser presença habitual na prova, mas agora do lado de fora do circuito.
Rui Valente, outro piloto com uma história de quatro décadas ligadas ao Grande Prémio de Macau – e que ainda corre no Circuito da Guia –, reconhece: “Para nós, os mais velhos, existe sempre uma saudade do que era o Grande Prémio”.
Mas acrescenta: “Porém, o passado pertence ao passado e o futuro está nas nossas mãos, e não vale a pena estarmos a comparar o antigamente com o presente. Se me perguntarem se tenho saudades do Grande Prémio antigo, claro que tenho! Eram outros tempos, em que quase tudo o que acontecia era facilitado para o conforto e bem-estar de todos os pilotos, organização e o público em geral. As carolices de quem o dirigia, e aquela grande vontade de o fazer bem e cada vez melhor, tornaram o evento no que é actualmente. O Grande Prémio do antigamente fazia lembrar aquelas festas de família, e o actual, os bailes de gala”.
O estatuto internacional que ganhou a prova teve impacto na redução das corridas pensadas para os pilotos da terra, mas estes, mesmo assim, ainda conservam o seu espaço no evento. “A profissionalização tem um preço, há que pagar a factura”, salienta Rui Valente, que é um dos pilotos com mais participações no evento e que continua a lutar por lugares de honra nas provas de carros de Turismo, porque, explica, o que mais lhe interessa “é participar”: “Pois o bichinho ainda cá anda”.
Os segredos das duas rodas
Num circuito de elevado risco, a continuidade da prova de motos no programa tem sido um desafio ao longo dos anos. Se as corridas amadoras foram gradualmente eliminadas, uma grande aposta na segurança e no profissionalismo tem permitido que a prova principal sobreviva ao passar dos anos.
“Eu diria que houve dois factores importantes na evolução desta corrida”, explica Carlos Barreto, que durante mais de duas décadas foi director de corrida do Grande Prémio de Motos de Macau. “Existe hoje uma maior maturidade dos pilotos e das equipas convidadas – o recital do Kevin Schwantz em 1988 é bonito na televisão, mas é de alto risco para quem anda lá dentro. Nos últimos anos, as equipas têm vindo mais mentalizadas para a dureza e exigência da prova, os pilotos mais experimentados e mais focados para o grau de dificuldade.”
A selecção dos pilotos convidados está muito mais rigorosa, pois “o processo de selecção a partir de 2012, baseado na experiência dos circuitos de Isle of Man TT, North West 200, Ulster Grand Prix, International Road Racing Championship e Macau, bem como no carácter dos pilotos dentro e fora do circuito e nos relatórios de acidentes e maleitas, permitiram uma escolha o mais adequada possível” ao programa de Macau, refere Carlos Barreto, o primeiro colaborador do Automóvel Clube de Macau (agora AAMC) a receber, em 1993, a licença desportiva da Federação Internacional de Motociclismo (FIM) como director de prova e comissário desportivo.
Por outro lado, salienta, houve uma natural evolução registada ao nível da segurança, que “começou no tempo de Mike Trimby, mas registou uma evolução assinalável nos últimos 12 a 15 anos, desde logo com a alteração do formato da grelha (de 4-4-4 para 3-3-3), a montagem de barreiras mais seguras para os pilotos, pilares protegidos com espuma, o uso de pó absorvente em vez do cimento, as marcas rodoviárias bem raspadas para aumentar a aderência nessas zonas”. Além disso, acrescenta Carlos Barreto, “outros aspectos, como uma boa comunicação com todos, sem diferenciar as equipas mais profissionais das outras, a entreajuda, a integração de colaboradores conhecidos dos pilotos e uma boa conjugação destes factores ajudaram a elevar a qualidade do evento”.
ESTÓRIAS QUE O TEMPO (NÃO) APAGOU |
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Muito cuidado! Para se perceber como o Grande Prémio de Macau mudou, basta recordar o anúncio da organização na Gazeta Macaense em vésperas do primeiro evento: “Pede-se ainda a todos que tenham cães, porcos, cabritos e toda a espécie de animais para evitarem a todo o transe que os mesmos atravessem a pista porque eles podem ser igualmente a causa de desastres de funestas consequências. Não atravessem a pista! Cuidado com as vossas vidas!”. F1 em Macau A caravana do mundial da Fórmula 1 nunca visitou Macau, mas por duas ocasiões, monolugares de Fórmula 1 rodaram no Circuito da Guia. A primeira vez que um monolugar da categoria rainha do automobilismo se fez ao asfalto do circuito citadino de Macau foi em 1977, quando o francês Patrick Tambay fez algumas voltas de exibição com o Ensign N177 Ford, um carro que pertencia à Theodore Racing do empresário local Teddy Yip. A segunda vez foi no 50.º aniversário, quando Ralph Firman, ao volante de um Jordan EJ13-Ford, percorreu o traçado da Guia em 1 minuto e 55 segundos, 18 segundos mais rápido que a “pole position” da Fórmula 3 no mesmo ano. Preso pelas calças Ainda na primeira edição, Fernando de Macedo Pinto, o único piloto de Macau que alinhou na prova do Grande Prémio, partiu com bastantes cautelas no seu antigo MG Special. Fez um arranque suficientemente rápido, mas foi logo ultrapassado por quase todos os adversários. É que, na emoção da partida, ficou com as calças presas na alavanca de velocidades e esqueceu-se de desengatar o travão de mão. Nomes esquecidos Se o Circuito da Guia, ao longo dos seus 6,2 quilómetros, está praticamente igual há 70 anos, o mesmo não se pode dizer das suas curvas que foram mudando de nome com o tempo. A mundialmente famosa Curva Lisboa foi durante muitos anos a Curva da Estátua. A igualmente célebre Curva do Mandarim nasceu como Curva do Clube Náutico. Outros nomes desapareceram com o tempo, como a Recta Clube Náutico, a Recta de Macau Seac ou a Recta da Praia, que ligava a Curva dos Pescadores à Curva R. Curiosamente, a Curva R chegou a chamar-se Curva Rothmans, dado o apoio da tabaqueira ao evento, mas reverteu mais tarde para Curva R, dado que a sua localização era usada como ponto de referência (“R”) para as inspecções aquando da construção do Terminal Marítimo do Porto Exterior. |