Há cada vez menos barreiras à circulação de veículos particulares de Macau e Hong Kong no seio da Grande Baía: foram várias as políticas a esse respeito que entraram em vigor este ano, abrindo (ainda mais) a porta aos fluxos rodoviários regionais. Mais do que facilitar o vai e vem de automóveis, as medidas têm vindo a estimular uma crescente integração a nível comunitário e económico
Texto Viviana Chan
Há muito que Kin Hoi desejava conduzir no Interior da China, mas esse desejo só se tornou realidade este ano, quando as autoridades passaram a permitir a circulação de veículos particulares de matrícula única de Macau na província de Guangdong. À Revista Macau, o residente de 34 anos diz que, desde que obteve a documentação necessária para circular na região vizinha, em Maio, conduz quase todas as semanas até Zhuhai na companhia da família.
Foi em Janeiro que a política de circulação de veículos da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) na província de Guangdong entrou em vigor. No âmbito desta medida, os residentes da RAEM elegíveis – um dos requisitos é que possuam salvo-conduto para deslocação ao Interior da China – podem requerer uma licença provisória para entrada e saída do Interior da China para o seu veículo particular registado em Macau. Cada automóvel pode ser destinado ao uso de dois condutores previamente designados. Aprovada a licença provisória, os veículos podem entrar e sair de Guangdong múltiplas vezes, mediante pré-marcação e sempre através do Posto Fronteiriço de Zhuhai da Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau. A permanência por cada entrada em Guangdong não pode ser superior a 30 dias consecutivos e a permanência anual não pode ultrapassar 180 dias. Anteriormente, apenas veículos da RAEM que estavam também registados no Interior da China – sob o denominado sistema de “matrícula dupla” – podiam circular em Guangdong (pelo menos para lá da Ilha de Hengqin).
Por outro lado, desde meados de Maio que está em vigor um acordo de reconhecimento recíproco das cartas de condução entre ambos os lados. Os residentes permanentes de Macau que sejam titulares de carta de condução válida do território podem obter directamente, com dispensa do exame, a carta de condução do Interior da China.
Kin Hoi já tinha carta de condução emitida pelas autoridades do outro lado das Portas do Cerco, obtida ainda antes de ser implementado o regime de reconhecimento mútuo de cartas de condução. Por isso, na primeira viagem que fez a Zhuhai após ter garantido a sua licença provisória de circulação em Guangdong, optou logo por ir na sua viatura particular. Para a família, a medida veio não só simplificar as movimentações entre os dois lados da fronteira, como facilitar as deslocações dentro de Zhuhai e as visitas a cidades da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau que ficam mais longe, nomeadamente Zhongshan.
Por outro lado, Kin Hoi é pai de uma criança de quatro anos: segundo diz, ir a parques infantis ou recreativos em Zhuhai tornou-se agora uma rotina familiar. “A cidade tem muitos locais indicados para famílias”, afirma. Além disso, os preços das actividades de entretenimento são baixos, refere, acrescentando que o combustível no Interior da China também é barato, assim como os custos de reparação ou manutenção de um veículo.
Tráfego mais integrado
A política de circulação de veículos particulares de Macau na província de Guangdong entrou em vigor a 1 de Janeiro. Uma iniciativa similar, entre Hong Kong e Guangdong, teve início a 1 de Julho. O principal propósito é promover uma maior integração na região da Grande Baía.
Até ao dia 13 de Julho deste ano, tinham sido registados em Macau mais de 43 mil pedidos para licença provisória de circulação no Interior da China. De acordo com a Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego, estima-se que cerca de 80 mil veículos do território cumpram os requisitos para requerer esta licença. Por sua vez, as autoridades de trânsito de Hong Kong tinham já recebido cerca de dez mil inscrições antes da entrada em vigor da medida referente ao território vizinho. As estimativas apontavam para que cerca de 450 mil proprietários de veículos particulares em Hong Kong pudessem beneficiar da iniciativa. Até meados de Julho, tinham sido registadas mais de 310 mil entradas em Zhuhai de veículos com matrícula única de Macau através da nova política, com um recorde de 100 mil entradas registado em Maio.
As novas políticas de circulação regional trouxeram, por arrasto, um enorme impulso quanto à utilização da ponte sobre o Delta do Rio das Pérolas, a mega infra-estrutura que liga as cidades de Hong Kong, Zhuhai e Macau. Segundo as autoridades de trânsito em Guangdong, 2023 tem sido um ano de pico no que concerne ao tráfego na ponte. Em Julho, a média diária de veículos que utilizou a infra-estrutura para entrar ou sair do Interior da China ascendeu a mais de 8.800, com mais de 80 por cento a serem automóveis ligeiros de passageiros.
Maior proximidade comercial
A facilitação da circulação rodoviária entre Macau, Hong Kong e Guangdong está a trazer mudanças à Grande Baía não só ao nível dos transportes, mas também do comércio e, em termos mais amplos, da própria economia. Aeson Lei Ian Leong, presidente da Associação da Indústria de Restauração de Macau, confirma que a política trouxe “impacto à estrutura da economia” do território. “Os residentes de Macau gostam de fazer compras no Interior da China: a medida trouxe um grande impulso ao consumo dos residentes fora de Macau”, explica, dando como exemplos os sectores da restauração, entretenimento e da beleza e bem-estar, bem como da reparação de veículos.
O responsável não vê as alterações como negativas: Aeson Lei considera que a sociedade de Macau deve “abraçar as mudanças” proporcionadas pela integração regional. Ainda assim, admite que algumas empresas locais estão a passar por um processo de ajustamento, em particular aquelas localizadas nos bairros comunitários.
Na sua opinião, as pequenas e médias empresas (PME) de Macau “devem manter uma boa qualidade de serviço, explorando ainda mais as oportunidades existentes em Hengqin e nas outras zonas da Grande Baía”. O dirigente associativo sublinha que a pandemia da COVID-19 e as mudanças verificadas na estrutura do turismo local levaram a que “as PME estejam mais conscientes dos riscos que correm, existindo a ideia de que os negócios não devem estar demasiado concentrados numa só zona ou região”.
De resto, a política de circulação de veículos particulares de Macau em Guangdong pode também ser utilizada em prol das empresas da RAEM, para promover a sua expansão para o Interior da China, considera Aeson Lei. Muitas PME locais, sublinha, estão atentas às oportunidades de investimento em Zhuhai, uma zona central no âmbito da circulação dos veículos de matrícula única de Macau e de Hong Kong no Interior da China, uma vez que estes são obrigados a entrar por essa cidade, através da Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau.
“Zhuhai tem zonas comerciais mais desenvolvidas e temos agora, em Hengqin, o projecto residencial do Novo Bairro de Macau, que está na fase de recrutamento de lojistas e retalhistas”, enumera o dirigente da Associação da Indústria de Restauração. “Tal constitui uma oportunidade para as PME de Macau.” O responsável acrescenta que tanto as autoridades como os proprietários dos centros comerciais de Zhuhai estão também “mais proactivos” na atracção de empresas de Macau.
Jack Lei, director da agência e consultora imobiliária Centaline, confirma que o sistema de circulação de veículos particulares de Macau em Guangdong está a introduzir mudanças no ambiente comercial regional. Isso, explica, reflecte-se no mercado imobiliário: de acordo com a Centaline, se as projecções para a valorização dos espaços comerciais em alguns bairros comunitários de Macau são actualmente mais conservadoras, já para Zhuhai a perspectiva é oposta, fruto da maior integração regional.
Elevada procura
Para a entrada em Guangdong dos veículos de matrícula única de Macau, foi estabelecido um sistema de pré-marcação, com quotas limitadas, cujo número tem gradualmente vindo a aumentar. Lao Ngai Leong, delegado da RAEM à Assembleia Popular Nacional (APN), diz à Revista Macau que as autoridades de ambos os lados devem melhorar a coordenação do fluxo de trânsito entre as regiões e optimizar o sistema de atribuição de quotas.
O também empresário de Macau com vários investimentos em Zhuhai entende que, de uma forma geral, a medida de circulação no Interior da China teve “um evidente significado positivo para o desenvolvimento regional”, tendo sido “acolhida e apoiada, de forma activa, pela maioria dos residentes de Macau”. Contudo, em matéria económica, Lao Ngai Leong admite que há lugar a um ajustamento face às mudanças geradas. Assim, “deve haver uma maior coordenação com a regulamentação existente no mercado”.
De qualquer forma, Lao Ngai Leong entende que é necessário olhar para o tema com uma perspectiva alargada. A promoção das políticas do Governo Central a favor de Macau não deve ser afectada por eventuais consequências localizadas e de curto prazo, “sob pena de comprometer os frutos já obtidos por um grande número de residentes de Macau e, mais importante, a própria participação da RAEM no processo de cooperação regional”, nota.
Oportunidades para o negócio
O empresário Alex Mo, proprietário de vários espaços de restauração em Hong Kong, Macau e Zhuhai e de uma consultora especializada na área, é um dos vários homens de negócios apostados em aproveitar as oportunidades criadas pela circulação de veículos particulares de Macau e Hong Kong em Guangdong, nomeadamente em Zhuhai. O negócio das PME em várias zonas da cidade chinesa sofreu uma grande melhoria, denota o empresário.
Alex Mo afirma que há cada vez mais empresas de Macau e Hong Kong de olho em Zhuhai. A sua consultora disponibiliza apoio e ferramentas a quem queira abrir um negócio no Interior da China na área da restauração. “Zhuhai está a tornar-se num destino para a expansão de empresas sediadas em Macau e Hong Kong”, assegura.
Alex Mo recorda que as fronteiras entre o Interior da China e Hong Kong estiveram fechadas durante cerca de três anos, devido à COVID-19, o que originou uma desconexão na partilha e acesso a informações. Assim, grande parte dos consumidores de Hong Kong desconhecem as tendências de negócio em voga no Interior da China neste momento. “Nasceram boas marcas na área da restauração e os residentes de Hong Kong não tiveram oportunidade de as experimentar. Nesse sentido, penso que é agora oportuno estabelecer uma nova ligação”, remata.