Jiu-jitsu

Um banho de confiança, no tatami e na vida

O jiu-jitsu é uma arte marcial de autodefesa
Foi das últimas artes marciais a fincar pé no território, mas o jiu-jitsu é das modalidades de combate e autodefesa que mais se tem expandido. Em menos de duas décadas, o número de praticantes passou para mais de uma centena. E são cada vez mais os atletas de Macau a lutar por medalhas em competições internacionais

Texto Marco Carvalho
Fotografia John Mak

Não há arte marcial que não tenha a si inerente uma certa sabedoria, mas são poucas as que têm um poder metafórico tão expressivo como o jiu-jitsu, ou ju-jitsu, como por vezes é referido. O veredicto é traçado por Alexandre Magno Jorge, que sustenta que nenhuma modalidade marcial ou de autodefesa prepara melhor quem a pratica para as adversidades com que a vida nos confronta.

“Muitas vezes estamos num lugar menos vantajoso, mas no jiu-jitsu, mesmo numa posição menos vantajosa, é possível derrotar o nosso adversário. É uma boa metáfora para o que nos acontece na vida, para o que acontece fora do tatami. A vida nunca é um mar de rosas”, sustenta o dirigente. 

Fundador e presidente em exercício da Federação de Ju-Jitsu de Macau China, Alexandre Jorge argumenta que o contributo que o jiu-jitsu dá para o fortalecimento do carácter e da personalidade é um dos atractivos fundamentais da modalidade, mas não é o único. O facto de ser um desporto acessível a praticantes de todas as idades e de oferecer garantias tangíveis em termos de autodefesa explica o crescimento rápido, quase exponencial, que a modalidade tem vindo a conhecer tanto em Macau, como no resto do mundo.

“Há várias razões pelas quais as pessoas optam pelo jiu-jitsu. Uma delas é, desde logo, a acessibilidade. Se uma pessoa já com uma certa idade quisesse começar a praticar judo, seria muito difícil, porque, para se ser ágil no judo, é necessário começar cedo. O jiu-jitsu, que em grande medida se disputa no chão, implica menos mobilidade, é mais acessível e, como tal, é mais fácil começar a aprender, quando comparado com o judo”, salienta Alexandre Jorge. “Por outro lado, há outra coisa que joga a favor do jiu-jitsu: o facto ser uma modalidade muito prática, porque se concentra no controlo das articulações, no estrangulamento. Em suma, é uma boa modalidade em termos de autodefesa”, salienta. 


“O jiu-jitsu […] é uma boa metáfora para o que nos acontece na vida, para o que acontece fora do tatami”

ALEXANDRE JORGE
FUNDADOR E PRESIDENTE DA FEDERAÇÃO DE JU-JITSU DE MACAU CHINA

Tiago Afonso afina pelo mesmo diapasão. Responsável, com Luís Serafim, pelo capítulo local da Atos – uma das grandes linhagens internacionais do jiu-jitsu brasileiro –, Tiago Afonso foi um dos primeiros praticantes a alcançar, em Macau, o estatuto de faixa negra e a atingir o topo de um percurso que premeia a experiência e a dedicação. 

A modalidade contempla cinco faixas principais: branca, azul, roxa, castanha e preta. Todos começam no branco e muito poucos chegam ao cinturão preto, mas, pelo caminho, há proveitos bem mais importantes que se colhem.

“O jiu-jitsu dá coordenação motora, autoconfiança e disciplina. Por outro lado, quem aprende jiu-jitsu, sejam crianças ou adultos, aprende a conviver com os outros e, aos poucos, vai também aprendendo a estar em situações desconfortáveis no treino. Há imensas posições que são desconfortáveis e, ao ultrapassar essas posições, ganha-se imensa autoconfiança. Eu acho que este é o aspecto principal”, afiança Tiago Afonso à Revista Macau.

“Ganhar, por vezes, só implica conquistar o medo. O jiu-jitsu consegue ser super técnico. Muitos dos melhores do mundo são atletas sem grande aptidão física, principalmente nos pesos leves, mas são pessoas com uma grande capacidade de treino e de vontade de perceber como é que as coisas funcionam, como é que a alavancagem funciona. E se eles se dedicarem, se investirem o seu tempo – seja em Macau, seja em qualquer parte do mundo –, têm todas as possibilidades de se distinguirem em termos competitivos”, defende o faixa preta, que hoje se dedica por inteiro ao ensino da modalidade.

Duas décadas de conquistas

Responsáveis, actualmente, por dois projectos distintos, Alexandre Jorge e Tiago Afonso integraram, há cerca de duas décadas, a primeira geração de praticantes de jiu-jitsu no território. 

Antigo jogador de basquetebol, Alexandre Jorge cruzou-se com a modalidade em Honolulu, no Havai, onde foi aluno de Relson Gracie, membro da família brasileira a quem é traçada a fundação e sistematização do jiu-jitsu brasileiro. “Fiquei a conhecer o jiu-jitsu no Havai, quando estava a fazer o meu curso superior. Foi em Honolulu que vi os primeiros combates do UFC [Ultimate Fighting Championship]. Eu via o UFC e fiquei muito impressionado com a família Gracie. Tive a felicidade de estar em Honolulu quando um dos membros da família Gracie, o Relson Gracie, lá vivia. Eu fui aluno dele e ganhei uma medalha de prata no primeiro campeonato Gracie de jiu-jitsu”, explica Alexandre Jorge, em declarações à Revista Macau. 

“Esse desempenho deixou-me muito motivado, com muita vontade de continuar neste desporto. Quando regressei a Macau, não havia praticamente jiu-jitsu. A modalidade mais próxima do jiu-jitsu era o judo. Comecei a praticar judo em 1996 e, em muito pouco tempo, fui seleccionado para a selecção de Macau”, acrescenta o dirigente.

O fascínio crescente que as artes marciais mistas e que competições como o UFC ou os Pride Fighting Championships, no Japão, começaram a exercer nos entusiastas dos desportos de combate dos quatro cantos do mundo não deixaram Macau incólume, mas foi um acontecimento insuspeito – a liberalização da indústria do jogo, em 2002 – que ajudou a alavancar e a autonomizar a prática do jiu-jitsu no território. 

Entre os muitos executivos de topo que se fixaram no território estava Walter Power, praticante de jiu-jitsu, e que anos mais tarde ocupou o cargo de vice-presidente do empreendimento Venetian Macao.

“Em 2003, Walter Power veio para Macau e ele também era um grande adepto de jiu-jitsu. Na altura, a Las Vegas Sands tinha um ginásio no edifício Golden Dragon. Através do Walter Power conseguimos usar o ginásio daquela zona, adquirimos dez tatamis para começar o nosso grupo de actividade e foi assim que a modalidade de jiu-jitsu se emancipou”, recorda Alexandre Jorge.

O gesto de Walter Power é tido, quase de forma unânime, como um dos momentos cruciais no percurso do jiu-jitsu em Macau, mas a modalidade deve a sua actual projecção a uma decisão, tomada alguns anos depois, por Tiago Afonso e Luís Serafim. A dupla, actualmente responsável pela academia Atos Macau, trouxe para o território o brasileiro Daniel Charles Pereira, cinturão preto da modalidade, a quem foi confiada a missão de fortalecer a prática do jiu-jitsu no território.


“Ganhar, por vezes, só implica conquistar o medo. O jiu-jitsu consegue ser super técnico”

TIAGO AFONSO
UM DOS RESPONSÁVEIS PELA ACADEMIA ATOS MACAU

“Sempre estive envolvido nas artes marciais, mas só comecei a praticar jiu-jitsu aos 34 anos. Sempre gostei de UFC, conheci um amigo cá em Macau com quem partilhava esse interesse e ele disse-me, a determinada altura, que havia um pequeno grupo que praticava jiu-jitsu. Na altura havia um [membro] faixa azul que dava aulas, eu fui experimentar e gostei. Nunca mais parei”, salienta Tiago Afonso. “Quando comecei só havia esse [membro] faixa azul e treinávamos num espaço emprestado. Eu e o Luís Serafim começámos à procura de alguém que nos pudesse ensinar. A comunidade brasileira era, na altura, relativamente grande cá em Macau e encontrámos, por coincidência, alguém cujo vizinho tinha sido campeão no Brasil e que queria sair de lá, experimentar novas paragens. Nós trouxemo-lo para cá, arranjámos um sítio para ele morar e o ginásio começou a crescer”, recorda o agora instrutor.

Resultados além-fronteiras

A aposta não tardou a dar frutos e a modalidade ainda hoje tira proveito da estratégia, gizada há mais de uma década. Dos pouco mais de meia dúzia de pioneiros que introduziram o jiu-jitsu no território, a comunidade de praticantes cresceu para cerca de uma centena de atletas, de ambos os sexos e de todas as idades.

“Fomos dos primeiros a ter um faixa preta a trabalhar connosco. Nem em Hong Kong havia um faixa preta brasileiro a tempo inteiro. Quando o Daniel chegou, o nosso nível aumentou logo, porque ele vinha de um outro mundo. No Brasil, em todas as esquinas, há uma academia de jiu-jitsu. Há outra cultura. Fomos expostos a essa cultura e o jiu-jitsu cresceu logo um pouco”, sustenta Tiago Afonso.

O crescimento da modalidade traduz-se por ganhos quantitativos, mas também qualitativos, com um número crescente de atletas locais a garantirem bons resultados em provas e competições internacionais. É o caso de Elsa Sousa, atleta que venceu uma medalha de bronze na categoria de faixa azul, na mais recente edição do AFG Open, disputado no final de Maio, em Banguecoque, na Tailândia. O desempenho garantiu-lhe o apuramento para o Abu Dhabi Combat Club Submission Fighting Championship, um dos torneios mais prestigiados do universo dos desportos de combate.

“Quando comecei com o jiu-jitsu, não sabia bem o que era. Agora sei que o jiu-jitsu é algo que me dá estrutura na vida”, sublinha Elsa Sousa. “Aquilo de que eu gosto no jiu-jitsu é o facto de que é infinito. É impossível aprender tudo. Por outro lado, como o meu mestre costuma dizer, é a única arte marcial em que as mulheres podem bater os homens. Eu sou pequena em termos de estatura. Sinto que posso derrotar qualquer pessoa, qualquer que seja o físico do meu adversário. Posso sempre usar os meus atributos como uma vantagem, posso usar a minha técnica. Uma pessoa mais pequena, por exemplo, vai ter um jogo completamente diferente do que aquele pelo qual opta alguém com maior estatura”, ilustra a atleta. 

O sucesso alcançado por Elsa Sousa está longe de ser caso único. Uma outra atleta da linhagem da Atos Macau conquistou em Tóquio, no Japão, o título asiático e, na esfera da Federação de Ju-Jitsu de Macau China, também há vários resultados dignos de registo.

Nas academias de Macau, há cada vez mais jovens a praticar a modalidade

“Na última edição do Campeonato Asiático, o nosso atleta Vincent Choi conseguiu disputar quatro lutas: ganhou duas lutas e perdeu as outras duas. O atleta de Macau derrotou um tailandês e um outro atleta do Bahrain, com submissão, num espaço de alguns segundos. Foi um dos melhores resultados obtidos por um atleta de Macau até à presente data num Campeonato Asiático”, sustenta Alexandre Jorge. “Em 2018, a nossa atleta Un Si Man conseguiu uma medalha de prata no Balkan Invitational, ao derrotar uma atleta da Rússia. Continuam a pertencer à classe feminina os melhores resultados”, acrescenta o presidente e fundador da Federação de Ju-Jitsu de Macau China. 

A competição a nível internacional tornou-se, para os praticantes de jiu-jitsu de Macau, algo comum, mas há portas que continuam por abrir. Se a participação no Campeonato Nacional da China, em torneios internacionais ou até no Campeonato Asiático se tornou uma prática normal, a presença no torneio de jiu-jitsu dos Jogos Asiáticos ainda está vedada aos atletas do território. 

“Por agora, o nível mais elevado ao qual nós conseguimos chegar é o Campeonato Asiático. Nós somos reconhecidos pela União Internacional de Jiu-Jitsu, mas acontece que, para competir nos Jogos Asiáticos, é necessário também ser-se reconhecido pelo Comité Olímpico de Macau e esse é um passo que ainda não conseguimos concretizar. Ainda falta essa etapa”, lamenta Alexandre Jorge.