São mais de 20 mil artefactos históricos e um número ainda maior de documentos, não só sobre a implementação da Igreja Católica no Oriente, mas também acerca do desenvolvimento de Macau. No espólio da Diocese de Macau, há muitos tesouros para descobrir, que, de forma gradual, começam a ser disponibilizados ao público
Texto Cherry Chan
Fotografia Cheong Kam Ka
Todos os dias, são dezenas os turistas que se fazem fotografar em frente do Paço Episcopal de Macau, junto da Sé Catedral. O que poucos desses visitantes parecem saber é que, para lá das vetustas paredes amarelas do edifício histórico construído em meados de 1835, se escondem tesouros de valor incalculável, contando vidas de há vários séculos.
Para chegar ao âmago desse espólio, é necessário atravessar um longo corredor. O Departamento Diocesano de Arquivos Históricos e Património Cultural de Macau é ainda um projecto em desenvolvimento, mas é já possível ao público aceder a serviços – embora limitados – de pesquisa e consulta de informação, disponíveis através de inscrição prévia.
O guardião-mor dos arquivos e património da Igreja Católica local é Benedict Keith Ip Ka Kei, que dirige o departamento. É pelas suas mãos – e da equipa que lidera – que passa a responsabilidade de catalogar e valorizar os mais de 20 mil objectos e uma quantidade ainda maior de documentos históricos que estão na posse da Diocese de Macau, dispersos em várias localizações.
O responsável assinala que os artigos em causa ajudam a explicar e compreender a relação – com mais de quatro séculos – entre o desenvolvimento da Igreja Católica em Macau e a evolução da cidade. “Queremos que o público veja que a Igreja Católica esteve sempre presente nas suas vidas”, diz. “Temos avançado lado a lado com a população de forma silenciosa.”
Valor universal
O espólio da Diocese de Macau, fundada em 1576, conta estórias sobre a história do território. Mas não só. Benedict Keith Ip sublinha que a importância destes arquivos e património extravasa as fronteiras da cidade. Quem queira traçar uma historiografia da expansão da Igreja Católica no Oriente dificilmente o pode fazer sem examinar os documentos guardados em Macau.
O responsável dá o exemplo de uma equipa de investigadores sul-coreanos que recentemente consultou os arquivos para recolher informação sobre André Kim Taegon, considerado o primeiro sacerdote católico coreano e mártir declarado santo, que estudou teologia em Macau. “Ele viveu na área perto do Jardim Luís de Camões [onde hoje existe uma estátua em sua homenagem], numa pequena habitação”, diz Benedict Keith Ip. “Algumas equipas coreanas estão de facto curiosas sobre a vida deste santo em Macau, gostariam de visitar o local onde viveu, o que também nos permite saber mais sobre ele.”
Os arquivos da Diocese de Macau mostram-se relevantes mesmo para quem procura traçar historiografias privadas de âmbito familiar. “De vez em quando, somos contactados por estrangeiros que buscam informações sobre antepassados seus que viveram em Macau há muito tempo”, afirma o director.
Um dos objectivos do estabelecimento do departamento em 2020 foi assegurar a preservação, de forma sistematizada, dos valiosos arquivos históricos e património cultural da Igreja Católica de Macau. O trabalho inclui a catalogação, tratamento e gestão dos artefactos e documentos na posse da Diocese, de forma a facilitar a sua disponibilização e consulta. Também são realizados trabalhos de conservação e restauro. O departamento está sob a alçada directa do bispo.
O projecto de criação de uma unidade dedicada aos arquivos e património cultural da Igreja local surgiu no seguimento da inclusão, em 2010, de uma colecção de arquivos da Diocese de Macau no registo “Memória do Mundo” da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Os documentos em causa, em português e latim, reportam-se à presença dos jesuítas no território entre 1550 e 1800: tratam-se, entre outros, de diários de missionários, correspondência de bispos de Macau trocada com homólogos das regiões vizinhas e com Roma, bem como material didáctico desenvolvido por jesuítas, como um dicionário mandarim-português.
“A UNESCO considerou que os dados sobre os nossos missionários estavam relativamente bem preservados e podiam efectivamente reflectir a linha temporal do desenvolvimento da Igreja e da sociedade no Extremo Oriente”, explica Benedict Keith Ip. Nesse seguimento, a Diocese decidiu criar um grupo de trabalho para se debruçar sobre o seu espólio, liderado pelo padre Luís Lei Xavier, que viria a falecer em 2016. “Desde então, temos continuado o seu trabalho de catalogação e apresentação dos arquivos ao público, de uma forma eficaz”, diz o director do Departamento Diocesano de Arquivos Históricos e Património Cultural.
Proteger e partilhar
Benedict Keith Ip considera que uma porção cada vez maior da sociedade entende a importância de valorizar os arquivos históricos de uma comunidade e de proteger o seu património. “Isto não é possível se apenas depender de alguns, é uma tarefa de todos”, afirma.
“A nossa Igreja colocou esperança no futuro ao preservar estes artefactos”, acrescenta o responsável, considerando ser crucial perceber o passado para compreender o futuro. O director do departamento sublinha que, caso a Diocese tivesse apenas conservado os objectos e documentos de maior relevo, guardando-os em cofres e longe do acesso público, teria havido uma perda irreparável para a herança histórica e cultural da sociedade.
– LER MAIS | A arte de bem restaurar –
Espelhando o esforço de partilhar o seu espólio com a comunidade, uma parte da colecção da Diocese de Macau está disponível em três salas de exposição na área reservada da ala velha do Seminário de São José. Estas estão abertas ao público, mediante marcação prévia. Além disso, o Tesouro de Arte Sacra do Seminário de São José, espaço museológico de entrada gratuita, também acolhe documentos e objectos da Diocese.
Embora o seu foco seja o passado e a sua preservação, o Departamento Diocesano de Arquivos Históricos e Património Cultural tem os pés bem assentes no presente, fazendo uso de métodos e tecnologias modernos para levar a cabo o seu trabalho. Uma das apostas é a formação de talento local para os seus quadros, em particular na área do arquivismo, até porque a natureza do espólio da Diocese está muito ligada às idiossincrasias do território. Quando necessário, há recurso a especialistas externos – sejam de Macau, do Interior da China ou do estrangeiro – para projectos de conservação mais complexos. “Embora a capacidade técnica seja importante, não é tão importante como o conhecimento e a compreensão especializada que o nosso pessoal possui, em particular dos nossos valores”, diz o director.
E é com um sorriso nos lábios que Benedict Keith Ip fala do seu dia-a-dia mergulhado no espólio histórico da Diocese. “Cada vez que nos deparamos com um artefacto, é um reencontro. Mas, da mesma forma que, embora possamos ver a mesma pessoa todos os dias, ela é diferente de dia para dia, o mesmo acontece aqui”, diz. “Como é que vemos a diferença na mesma coisa dia após dia? Essa é a parte mais interessante do nosso trabalho.”
Alguns tesouros da Diocese de Macau O espólio da Diocese de Macau é rico em diversidade e valor. Muitas peças, além de simbolismo religioso, possuem forte ligação a Macau. |
---|
– Retratos dos bispos de Macau Ao entrar na sala de conferências do Paço Episcopal, o visitante é saudado por 23 pinturas a óleo penduradas nas paredes: são retratos dos vários bispos de Macau. As pinturas, de diferentes períodos, estilos e por artistas distintos, estão a ser alvo de restauro por grupos. Os retratos permitem compreender a paisagem religiosa de Macau em diferentes momentos. Por exemplo, o retrato de D. Jerónimo José da Mata, bispo entre 1845 e 1862, apresenta o religioso segurando um conjunto de plantas arquitectónicas, em referência à reconstrução da Sé Catedral, que ocorreu durante o seu mandato. Já o retrato de D. Manuel Bernardo de Sousa Enes, cujo bispado decorreu entre 1873 e 1883, tem a curiosidade de ter sido realizado no Japão, utilizando tintas e técnicas japonesas, algo que só foi revelado durante o processo de restauro. |
– Bastão do governador Nos tempos da administração portuguesa de Macau, quando um novo governador tomava posse, recebia um bastão – também conhecido como “bastão do governador” ou “bastão de comando” – como sinal da transferência de poder. De seguida, o novo governador depositava-o na Sé Catedral, aos pés da Nossa Senhora da Conceição. Um dos artefactos de grande valor simbólico na posse da Diocese de Macau é um bastão do governador com as insígnias reais portuguesas. O valioso objecto, entretanto restaurado, terá sido oferecido pela comunidade portuguesa de Xangai em 1865 ao então Governador de Macau José Rodrigues Coelho do Amaral. |
– Estátua de Nossa Senhora da Imaculada Conceição Esta representação em madeira foi inteiramente esculpida em Portugal no século passado e enviada para Macau. Colocada na Igreja do Seminário de São José, acabou por ser removida e substituída por uma réplica, devido à falta de estabilidade do original. No entanto, para assegurar a durabilidade da réplica, foram utilizados materiais modernos, ao invés do recurso a madeira. Enquanto a réplica mantém intacto o simbolismo religioso, o original – e o seu valor histórico – estão protegidos. |