Tradição

Persistência e património: Kam In promove sabores macaenses

Com raízes num negócio artesanal caseiro, a empresa Alua e Comidas Portuguesa Kam In ambiciona ser mais do que um retalhista de doçaria típica macaense. O objectivo é funcionar como uma montra das tradições gastronómicas únicas do território, ajudando à sua promoção

Texto Cherry Chan
Fotografia Cheong Kam Ka

Se, para a comunidade de Macau de etnia chinesa, o Ano Novo Lunar é a principal celebração do calendário de festividades tradicionais, para os macaenses, esse papel cabe ao Natal, fruto do forte significado religioso da quadra. Em ambos os casos, a gastronomia desempenha um papel essencial, a pretexto das típicas reuniões familiares, onde é obrigatória uma mesa farta.

Nas casas macaenses, o “alua” (ou “aluá”, bolo à base de manteiga) ou as empadas são exemplos de pastelaria e doçaria que devem marcar presença durante o período natalício. No entanto, graças ao esforço de Ho Choi Dai, também conhecida como Ho Kam In, fundadora da empresa de comércio a retalho Alua e Comidas Portuguesa Kam In, estas iguarias estão agora disponíveis durante todo o ano, para locais e turistas.

A empresa foi lançada em 2011, mas as raízes remontam à primeira metade do século passado. Segundo explica a responsável, as lojas da Alua e Comidas Portuguesa Kam In são os únicos locais em Macau onde é possível comprar alua – doce também conhecido como “colchão do menino Jesus” – produzido de forma artesanal.

A confecção envolve um moroso processo de três dias. Trata-se de um procedimento fisicamente exigente, já que a fase de cozedura requer que os ingredientes – que incluem manteiga, amêndoas, pinhões, açúcar, leite de coco e farinha – sejam misturados manualmente de forma contínua durante largas horas, em lume brando, e, no caso da Alua e Comidas Portuguesa Kam In, em panelas industriais com capacidade para 100 quilos.

Origens macaenses

As receitas usadas pela empresa remontam a uma macaense, Celeste Araújo de Rodrigues, que, durante a altura do Natal, confeccionava doçaria para vender para fora, por encomenda. A tia do marido de Ho Choi Dai, empregada da mulher macaense, ajudava-a, acabando por “herdar” o negócio, a par do livro de receitas de Celeste Araújo de Rodrigues.

Passados alguns anos, coube a Ho Choi Dai tomar as rédeas da empreitada, apesar de inicialmente não o querer e até ter sugerido à tia que vendesse as receitas. Só aceitou a tarefa após a tia, já idosa, mas firme no empenho em manter a produção activa, ter desmaiado, extenuada, enquanto misturava o preparado para mais uma encomenda de alua. Seria pela mão de Ho Choi Dai, guiada pela intenção de preservar a doçaria tradicional macaense e torná-la acessível a todos, que o negócio seria institucionalizado, transformando aquilo que era uma actividade caseira e sazonal numa empresa de sucesso.

O alua é um dos produtos icónicos da Kam In

A Alua e Comidas Portuguesa Kam In abriu a primeira loja na Rua Central, no coração do Centro Histórico de Macau. Disponibilizava inicialmente três tipos de produtos, segundo as receitas da macaense Celeste Araújo de Rodrigues: “alua”, “bicho-bicho” (variedade de biscoitos de fécula de milho, ovos e manteiga, em forma de lagarta e conhecidos pela facilidade com que se desfazem na boca) e biscoitos variados de base portuguesa.

Passado algum tempo, uma nonagenária macaense, cliente do negócio de alua por mais de meio século, partilhou com Ho Choi Dai algumas das suas próprias receitas – de empadas a rebuçados de ovos. Isto porque a idade já não permitia à mulher cozinhar as iguarias e também não as encontrava à venda. Foi então assim que a Alua e Comidas Portuguesa Kam In alargou o seu portfólio de produtos macaenses.

“A senhora queria divulgar este tipo de doçaria, queria que todas as pessoas em Macau a pudessem conhecer”, recorda Ho Choi Dai.

A Alua e Comidas Portuguesa Kam In não se ficou por aqui. Passou eventualmente a produzir artigos de doçaria tradicional chinesa, além de ter apostado em algumas criações próprias. A expansão no que toca à gama de produtos encontrou eco na abertura de mais duas lojas em zonas turísticas da cidade, nomeadamente na Rua do Cunha e junto das Ruínas de São Paulo.

Passo a passo

O caminho não foi fácil, recorda Ho Choi Dai. O alua não era algo conhecido da maioria da população e visitantes. “Alguns transeuntes duvidavam do que vendíamos: tínhamos feições chinesas, mas estávamos a vender doçaria de origem portuguesa”, lembra. Apesar do acumular de prejuízos e da pressão familiar para encerrar o negócio, Ho Choi Dai manteve-se firme, apostada em não deixar cair o projecto.

A persistência foi essencial, diz. “Tive a sorte de a gastronomia macaense ter sido considerada, em 2012, um item do património intangível de Macau”, afirma, acrescentando que isso fez aumentar em muito o interesse pelos seus produtos. “Agradeço à comunicação social pelas entrevistas organizadas na altura. Passo a passo, tornámo-nos mais conhecidos.”

Numa etapa posterior, em 2017, a denominada “cozinhaçam maquista” foi oficialmente inscrita no “Inventário do Património Cultural Intangível” de Macau, passando a ser reconhecida e protegida por lei. Em 2020, foi o próprio processo de confecção do alua que passou a figurar no inventário, enquanto item independente. No ano seguinte, a gastronomia macaense foi incluída na lista de bens do património cultural intangível a nível nacional.

Os biscoitos “bicho-bicho”, bem como os restantes produtos da Kam In, são produzidos de forma artesanal

Fruto do maior reconhecimento da gastronomia macaense, as lojas da Alua e Comidas Portuguesa Kam In começaram a integrar o roteiro de muitos turistas, refere a empresária. Através dos esforços da Direcção dos Serviços de Turismo para promover Macau e a sua cultura, os produtos da empresa passaram a ter menção em guias de viagem em diferentes línguas.

A Alua e Comidas Portuguesa Kam In também se esforçou por elevar o seu perfil comercial, através da participação em diversos eventos e exposições em Macau e no exterior, incluindo a Feira Internacional de Macau e a Exposição de Franquia de Macau. A este respeito, Ho Choi Dai sublinha o apoio proporcionado pelas autoridades do território, em particular o Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau (IPIM) e a Direcção dos Serviços de Economia e Desenvolvimento Tecnológico (DSEDT), que auxiliaram a empresa na penetração junto do mercado do Interior da China.

Apoio governamental

A Alua e Comidas Portuguesa Kam In tem beneficiado de várias medidas implementadas pelo Governo de Macau para auxiliar as pequenas e médias empresas locais. É uma das participantes no projecto “Macao Ideas”, que disponibiliza uma plataforma comercial de exposição com o objectivo de publicitar e promover produtos de Macau. Também faz parte do “Plano das Lojas com Características Próprias”, lançado pela DSEDT (então Direcção dos Serviços de Economia) em 2020, com vista a apoiar empresas com características singulares a operar nos sectores da restauração e do comércio a retalho.

O surgimento da pandemia da COVID-19 trouxe vários desafios à Alua e Comidas Portuguesa Kam In, a começar pela diminuição no fluxo de turistas que visitam Macau, reconhece Ho Choi Dai. Embora este seja um período complexo, a responsável sublinha que “os serviços do Governo têm vindo a fornecer ajuda, para que as pequenas e médias empresas possam ultrapassar os obstáculos”.


“Acredito que haverá alguém que valorize esta tradição, estes sabores, e tenha vontade de continuar com esta confecção artesanal”

HO CHOI DAI
FUNDADORA DA ALUA E COMIDAS PORTUGUESA KAM IN

Ho Choi Dai garante que a missão primordial da Alua e Comidas Portuguesa Kam In continua a ser promover a doçaria macaense. “Queremos agora entrar no mercado de gama alta”, refere. “Para alcançar este objectivo, precisávamos de ter a nossa própria fábrica e certificações para os nossos produtos.”

A fábrica abriu portas em 2021, de forma a assegurar um aumento da produção. A certificação no âmbito da norma ISO 22000, ligada aos sistemas de gestão da segurança alimentar, também já foi concluída.

A empresa tem vindo igualmente a investir nas novas tecnologias e no comércio electrónico. Uma das apostas é o chamado “live commerce”, através do qual influenciadores digitais ou lojistas divulgam e vendem produtos através de transmissões de vídeo ao vivo, ou “live streaming”, em diferentes plataformas de comércio electrónico ou redes sociais.

Apesar dos planos de crescimento, Ho Choi Dai desabafa que é assomada por uma outra preocupação, mais complexa: encontrar quem a suceda aos comandos da Alua e Comidas Portuguesa Kam In. A própria admite que o trabalho pesado ligado aos processos de confecção tradicional afasta potenciais candidatos. “Mas acredito que haverá alguém que valorize esta tradição, estes sabores, e tenha vontade de continuar com esta confecção artesanal”, assegura, optimista.