Culturismo

Em busca do corpo perfeito

Iao Chong Wa já conquistou o título de “Senhor Culturista de Macau”, principal galardão da modalidade a nível local, por dez vezes
Os físicos trabalhados escondem uma rotina cuidada, dividida entre horas de treino no ginásio e muita atenção ao que se come, tudo em busca de um corpo esculpido ao milímetro. Para os praticantes de Macau de culturismo de competição, são sacrifícios que valem a pena e que já renderam glória internacional

Texto Cherry Chan

Uma vez, duas vezes, três vezes, quatro mil vezes… As repetições de exercícios com pesos, associadas a uma disciplina férrea e uma alimentação planeada ao pormenor, são a fórmula de sucesso para qualquer praticante de culturismo. O desporto, também conhecido por “bodybuilding” ou fisioculturismo, conta com mais de meio século de história em Macau e já valeu várias medalhas internacionais ao território.

Iao Chong Wa é, provavelmente, uma das caras mais (re)conhecidas da modalidade a nível local. Em Setembro, conquistou pela décima vez o título de “Senhor Culturista de Macau”, durante o Campeonato Aberto de Culturismo do território. No currículo, conta também com uma medalha de ouro obtida no 48.º Campeonato Asiático de Culturismo, realizado em Macau.

O atleta recorda que começou a praticar musculação no final da década de 1990, para ganhar massa corporal, por se considerar demasiado magro. Os bíceps, tríceps e afins começaram a ficar cada vez mais tonificados, ganhando definição, pelo que, mais de uma década depois de ter entrado pela primeira vez num ginásio, Iao Chong Wa achou que era o momento certo para participar numa competição de culturismo. “Não tinha qualquer experiência de apresentação em palco, por isso a minha primeira vez não foi fácil”, admite. “Mas ‘um bom começo é metade do caminho’”, acrescenta, citando o filósofo grego Aristóteles. “O mais importante foi começar a competir.”

Desde então, Iao Chong Wa nunca mais parou, somando sucesso atrás de sucesso. O veterano atleta nota uma evolução da percepção pública do culturismo: “Com cada vez mais promoção e competições, as pessoas já conhecem este desporto, o que é muito positivo”.

Sio Wai Ian é um dos novos talentos da modalidade e sonha em estar presente num campeonato asiático

Treinar o “músculo” da confiança

Lau Si Hang é outro veterano da modalidade, também premiado em diversas edições do Campeonato Aberto de Culturismo de Macau – arrecadou mais dois títulos este ano. Começou a praticar musculação há cerca de uma década, com o objectivo inicial de ganhar maior confiança através do desenvolvimento de uma boa forma física. Em 2016, participou na primeira competição de culturismo. “Tive muita sorte por ter ganho um prémio no meu primeiro concurso, o que me deu a oportunidade de integrar a selecção de Macau. Isto fez de mim quem sou hoje”, diz.

O atleta sublinha a importância da consistência ao nível do treino para qualquer culturista. “É necessário ter uma meta estabelecida e trabalhar para isso, encontrando aí motivação para caminhar em frente”, resume.

Ao contrário dos consagrados Iao Chong Wa e Lau Si Hang, o jovem Sio Wai Ian está a iniciar o seu caminho no mundo do culturismo: em Setembro, conquistou um dos títulos do Campeonato Aberto de Culturismo de Macau na categoria de júnior. Com apenas 18 anos, já conta com duas participações na principal competição local da modalidade e tem como objectivo marcar presença num campeonato asiático. Faz parte de uma fornada de novos talentos em ascensão.

“Anteriormente, não praticava qualquer desporto”, admite. “Inicialmente, comecei a fazer musculação só porque queria melhorar a minha saúde e aumentar a minha autoconfiança.”

Culturismo no feminino

A questão da autoconfiança é recorrente no discurso dos culturistas locais. As competições de culturismo exigem aos participantes a exibição em público dos seus corpos, envergando apenas fato de banho. Numa sociedade conservadora como a de Macau, é preciso ser particularmente extrovertido, sublinham alguns atletas, nomeadamente do sector feminino.

Liu Hoi I venceu duas das categorias no sector feminino na mais recente edição do Campeonato Aberto de Culturismo de Macau

Inês Yeung Sai Ip, presidente da Associação de Culturismo e Fitness de Macau, admite que, no passado, algumas mulheres se afastaram da modalidade por serem tímidas e terem dificuldade em expor o corpo de forma mais pública. “Mas desde que uma atleta feminina de Macau ganhou uma medalha de ouro numa competição internacional [ver caixa], o reconhecimento da sociedade face ao culturismo melhorou”, afirma, acrescentando que tal contribuiu para esbater a visão estereotipada da modalidade como um mundo masculino. 

Por outro lado, o próprio desporto tem vindo a evoluir, com a adição da vertente “fitness”. Foram criadas novas categorias, em que se pedem corpos trabalhados, mas com traços menos vincados e menor massa muscular. Tal serviu para atrair outros públicos à modalidade, particularmente entre o sexo feminino.

Ngo Tuyet Nhi faz parte da nova geração de mulheres que decidiu aderir à musculação como forma de melhorar a aparência física. Iniciou-se no desporto há dois anos e, em Setembro, participou pela primeira vez no campeonato anual local de culturismo, conquistando um segundo e um terceiro lugares. “Ao atingir esse objectivo, ganhei força para continuar a treinar”, diz, falando numa enorme satisfação e sentimento de afirmação pessoal.

Já Liu Hoi I passou do público para o palco em apenas um ano. Após ter assistido à edição de 2021 do Campeonato Aberto de Culturismo de Macau, decidiu que queria experimentar a modalidade. “Achei que todos os atletas mostravam enorme força de vontade, pelo que queria saber até onde poderia ir no espaço de um ano”, recorda. A resposta obtida em Setembro não podia ter sido mais satisfatória: duas vitórias e dois segundos lugares em categorias diferentes. Porém, Liu Hoi I diz que o melhor prémio foi a oportunidade de ter a sua filha de cinco anos na assistência, orgulhosa em ver a mãe em palco, demonstrando tamanha autoconfiança. “Quero ser um exemplo para ela, por isso tenho de continuar a melhorar”, diz a atleta.

Meio século de halteres

O culturismo, enquanto prática desportiva, é uma actividade milenar, com registos que remontam pelo menos à Grécia Antiga. Na sua vertente moderna, a modalidade surgiu no final do século XIX, embora tenha começado a ganhar maior popularidade só a partir dos anos 1950.

O desporto assenta na prática de levantamento de pesos e outros exercícios, para moldar o desenvolvimento de grupos musculares específicos, para fins estéticos. Distingue-se de actividades como o halterofilismo, porque se concentra na aparência física em vez da força. No culturismo de competição, os atletas realizam um conjunto de poses em grupo e de forma individual perante um painel de juízes, que avalia cada participante com base em diversos parâmetros, como simetria muscular e tamanho e definição de cada grupo de músculos, bem como apresentação em palco. Existem diversas categorias, segmentadas por peso ou altura.

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O culturismo moderno chegou a Macau na década de 1960. Inicialmente, a prática estava mais focada na musculação pura, como meio de melhorar o desempenho de atletas locais noutro tipo de desportos, como a natação ou o karaté. Porém, desde cedo houve quem demonstrasse interesse na vertente estética, procurando entrar nas competições de culturismo que se começavam a realizar a nível asiático. “Por causa disso, pensámos em criar uma plataforma através da qual os atletas pudessem participar em campeonatos no exterior em representação de Macau”, diz Che Kuong Hon, dirigente histórico do culturismo local.

A introdução de novas categorias – incluindo ligadas ao “fitness” – tem ajudado a atrair mais mulheres para o desporto

Numa primeira fase, surgiram várias organizações ligadas ao desporto. Em 1990, nasceu a Associação de Culturismo e Fitness de Macau, chamando a si a participação de diversos grupos já existentes. A associação é hoje a entidade reconhecida pelo Instituto do Desporto de Macau para questões relacionadas com a modalidade, sendo responsável por organizar delegações oficiais do território a competições internacionais.

Che Kuong Hon, que desempenha actualmente o papel de presidente da assembleia-geral da Associação de Culturismo e Fitness, explica que a implementação do culturismo em Macau encontrou inicialmente alguns obstáculos, devido à existência de uma atmosfera social conservadora. “Os atletas queriam praticar e treinar, mas não queriam mostrar o corpo em público”, recorda. Os preconceitos foram caindo e, hoje em dia, “há cada vez mais competições e mais participantes ligados ao desporto”.

Práticas saudáveis

Olhando para o futuro da modalidade, o dirigente considera que tal passa por uma maior profissionalização. A Associação de Culturismo e Fitness está a trabalhar na certificação dos técnicos locais, através da emissão de documentos que sejam reconhecidos internacionalmente, revela.

Já a presidente Inês Yeung Sai Ip destaca a importância de promover práticas desportivas saudáveis. No passado, a nível internacional, o culturismo surgiu muitas vezes ligado à utilização de substâncias ilícitas e perigosas, para ganhos rápidos de massa muscular. A dirigente associativa sublinha que os culturistas de Macau gozam de boa reputação fora de portas, não estando associados a esse tipo de comportamentos. “Temos o sentido de compromisso de promover o desporto e respeitar o espírito olímpico”, garante a responsável. “Insistimos em fazer ‘jogo limpo’ e proibimos os nossos atletas de utilizarem substâncias dopantes.”

A mais recente edição do campeonato anual de culturismo de Macau decorreu em Setembro

Os líderes da Associação de Culturismo e Fitness acrescentam que o seu trabalho se foca cada vez mais na divulgação da modalidade, quer ao nível amador, quer competitivo. Beneficiando de uma imagem positiva junto do grande público e de bons resultados a nível internacional, a presidente da organização espera que o culturismo em Macau “possa ser ainda mais promovido, como forma de estimular o ‘desporto para todos’ e o ‘desporto ao longo da vida’”.

Apesar de mais popular, o culturismo, nomeadamente na vertente de alta competição, continua a ser uma modalidade que requer uma autodisciplina forte, sublinha Che Kuong Hon. “A determinação é crucial”, refere. “Para estar um minuto no palco em competição, são necessários dez anos de prática fora dos holofotes.”