A que sabe um copo de xarope de figo? Aos longuíssimos dias da infância, a fartas celebrações em família, ao amor e à memória com um travo agridoce. Para Florita Morais Alves, a comida macaense é comida que fala ao coração
Texto Marco Carvalho
“A comida macaense tem um sabor nostálgico.” O veredicto, curto e incisivo, é traçado por Florita Morais Alves defronte de uma mesa guarnecida com algumas das iguarias mais emblemáticas do universo dos paladares de Macau. Subtil, uma dose de minchi ombreia com a nebulosa fragilidade de uma casquinha de caranguejo e com o dourado resplendor de um prato de galinha à portuguesa, num claro contraste com o minimalismo que se apoderou das cozinhas modernas.
A mesa macaense é abundante, vibrante e foi aprimorada ao longo de séculos de improvável convívio, mas, mais do que a fusão de ingredientes oriundos de margens desavindas do globo – a curcuma e a folha de louro, a malagueta e o gengibre –, aquilo que distingue a gastronomia macaense é, no entender de Florita Morais Alves, a capacidade com que fala ao coração. Antiga funcionária dos Correios de Macau e do já extinto Instituto Emissor, a agora responsável pela gestão da cozinha do restaurante “La Famiglia”, na ilha da Taipa, defende que uma das características que mais contribuem para a singularidade da cozinha macaense é a memória afectiva associada a iguarias como o tacho, a capela, o ladu, o aluá ou mesmo o xarope de figo.
“No seio da comunidade, quando associamos a comida macaense a alguma coisa, normalmente associamos a festas, o que é, realmente, muito positivo. Associamos a celebrações, a festas familiares, casamentos, baptizados”, salienta Florita Morais Alves. “As iguarias macaenses são iguarias que evocam certas memórias. As pessoas quando consomem pratos macaenses é essas memórias, em grande medida, que procuram. A cozinha macaense ajuda a apagar o fogo da saudade”, complementa a também dirigente da Confraria da Gastronomia Macaense.
A natureza vincadamente familiar de pratos como o porco balichão tamarindo, a sopa de lacassá ou o diabo é referenciada com frequência como o maior obstáculo à viabilidade económica de projectos de restauração que apostem no potencial da gastronomia macaense, mas para Florita Morais Alves o estereótipo está, em grande medida, ultrapassado. A cozinheira exemplifica com o relativo sucesso que o seu espaço conseguiu alcançar, graças a uma mudança de rumo, após um período inicial um tanto ou quanto atribulado.
“Em 2017, o meu filho juntou-se com uns amigos e decidiu abrir um restaurante de comida portuguesa e italiana, mas o projecto parecia desde cedo condenado ao fracasso, ao ponto de ele pensar fechar o restaurante ao fim de oito meses. Decidi envolver-me no processo e sugeri que, em vez do italiano, fosse feita uma aposta na comida macaense”, revela Florita Morais Alves.
“As pessoas querem saber, querem conhecer aquilo que Macau tem de bom para oferecer e foi essa curiosidade que nos abriu muitas portas. Mesmo com a pandemia, nunca tivemos tantos clientes chineses como agora, sobretudo entre a comunidade chinesa local”, sustenta.
Inovar sem desvirtuar
Para a viabilidade económica do “La Famiglia” contribuiu, em grande medida, a maior visibilidade institucional ganha pela gastronomia macaense ao longo dos últimos anos, mas também o acerto e a ousadia de algumas das decisões tomadas por Florita Morais Alves desde que assumiu a gestão da cozinha do restaurante.
A designação de Macau, em 2017, como Cidade Criativa da UNESCO na área da Gastronomia e a inclusão, no ano passado, da culinária macaense no acervo do Património Cultural Intangível da China proporcionaram à cozinha macaense uma proeminência inédita, reconhece a dirigente da Confraria da Gastronomia Macaense. “Se a gastronomia macaense não tivesse ganho uma maior visibilidade como património nacional, acho que ninguém teria interesse em saber o que é isto da comida macaense. Por um lado, porque é um tipo de comida muito caseira, muitos simples. Por outro, por ser uma gastronomia que ainda não tem um grande impacto comercial”, reconhece.
Mas fama e proveito não são necessariamente sinónimos e se o projecto do “La Famiglia” conseguiu vingar comercialmente e ser bem-sucedido foi porque Florita Morais Alves optou, por um lado, por descomplicar e, por outro, por inovar sem trair a essência da “cozinhaçam di Macau”. Entre os pratos macaenses que pontificam no menu estão, sobretudo, os grandes clássicos da gastronomia autóctone de Macau, por vezes com um ou outro aspecto vanguardista.
Para além de batata cortada em cubos e de carne moída regada com sutate, o minchi, tal como é confeccionado por Florita Morais Alves, conta ainda com uma cama de batata palha, que, para além de acrescentar textura ao prato, absorve o excesso de gordura. O acrescento, defende a cozinheira, é um bom exemplo de que é possível inovar sem trair a essência secular da cozinha macaense. “Eu tenho a minha própria versão da galinha chau chau parida. Tradicionalmente, este prato é feito com açafrão-da-Índia, com gengibre, com vinho chinês. Aquilo que eu acrescento ao prato são tâmaras chinesas. Historicamente, este prato era consumido pelas parturientes depois de terem dado à luz. E porque é que eu acrescentei as tâmaras? Porque na medicina tradicional chinesa são um alimento que revitaliza, que ajuda a renovar o sangue”, sustenta a cozinheira macaense. “A essência está nos condimentos. Está no equilíbrio dos condimentos”, remata.