A falta de sangue para transfusões é um problema recorrente em todo o mundo. Em Macau, o número de dadores até cresceu em anos recentes, mas é ainda preciso fazer mais para consciencializar um maior número de pessoas e ajudar a ultrapassar o medo e o desconhecimento sobre a dádiva de sangue. Para já, o mais importante é não desperdiçar nem uma gota
Texto Nelson Moura
Quando o Centro de Transfusões de Sangue de Macau abriu portas, em 1988, Paulo Rodrigues foi uma das primeiras pessoas a estender o braço para uma doação. E assim tem feito todos os anos com a precisão de um relógio e com uma dedicação que já lhe granjeou a denominação de um dos principais dadores da história do centro.
“Eu fui logo no início, o meu número de registo de dador é o 42, um dos mais baixos, considerando que [o número de registados] já vai actualmente em 60.000 ou 70.000”, conta Paulo Rodrigues à Revista Macau. “Eu tinha um amigo nos Serviços de Saúde que, na altura, me telefonou e perguntou se queria ir com ele doar sangue. Fui e tornou-se num hábito. Depois, a minha secretária já tinha na agenda cada vez que chegava a altura de ir doar sangue”, acrescenta.
Mesmo com esse início mais casual, o dador aponta a relevância pessoal que este hábito tem para ele, considerando a importância que o sangue – “a única coisa que a tecnologia não consegue substituir” – tem para as pessoas que precisam de receber uma transfusão.
“Eu recebi o dom da vida, não pedi para aqui vir. Não tive qualquer influência nessa situação. Se eu posso também dar vida aos outros, por que não fazê-lo?”, questiona Paulo Rodrigues. “Se estamos bem de saúde e estamos numa situação de poder ajudar alguém, não há muitas razões para não o fazer. Não custa nada.”
Seria difícil ser mais regular do que Paulo Rodrigues no que toca à dádiva de sangue, visto que todos os anos faz questão de passar pelo centro tantas vezes como permitido.
“Os homens podem dar um máximo de quatro vezes por ano e as mulheres três vezes. Eu dou sempre quatro vezes por ano com a excepção de duas vezes, por ter níveis de ferritina muito baixos”, explica o residente de Macau. “De cada vez dou cerca de 450 ml de sangue – considerando que fui lá já 146 vezes é só fazer as contas. Também fui um dos primeiros a dar plasma.” Contas feitas, Paulo Rodrigues já doou mais de 65 mil ml de sangue ao longo de mais de 30 anos.
O residente aponta também que se o limite de idade máximo para dadores de sangue no território não fosse os 70 anos, faria questão de continuar a doar em Macau. Mas não coloca de parte a possibilidade de o fazer noutras regiões que o permitam.
E as boas memórias têm-se acumulado com o passar dos anos. Paulo Rodrigues conta como uma das recordações mais marcantes da sua história como dador aconteceu no dia em que três crianças o surpreenderam com um ramo de flores quando foi premiado como o principal dador masculino do Centro de Transfusões de Sangue de Macau.
“Ofereceram-no a mim e a uma senhora premiada como a principal dadora feminina e disseram-nos que não estariam vivos se não fosse por nós”, relembra.
Aprender a doar
Embora a maioria das pessoas seja potencial dador de sangue, poderá, em alguns casos, não ser assim. Há uma variedade de razões pelas quais alguém não poderá dar sangue. Em primeiro lugar, razões que ponham em causa a segurança do dador; em segundo, razões em que a dádiva de sangue possa provocar potenciais problemas no receptor.
De acordo com dados do Centro de Transfusões de Sangue de Macau, no primeiro ano de operação, em 1988, cerca de 1000 pessoas voluntariaram-se para doar sangue. Um número que cresceu exponencialmente nos 34 anos seguintes para cerca de 14.000 actualmente.
Doar sangue é hoje em dia fácil e rápido, com os voluntários a terem apenas que seguir os seguintes requisitos: ter entre 17 e 69 anos de idade e um peso igual ou superior a 45 quilos.
Wong Ka Cheng, uma residente de 33 anos, considera doar sangue uma espécie de “cerimónia” que já executa como um ritual. “Comecei a doar sangue quando tinha 18 anos, com amigos, como que a marcar o início da minha vida adulta, e também como forma de provar que sou madura o suficiente para ter mais responsabilidades para com a sociedade”, conta à Revista Macau.
Desde então doou sangue mais de dez vezes e assim pretende continuar a fazer regularmente desde que a sua saúde o permita. “Doar sangue a alguém em necessidade é como um certificado de corpo saudável. Sinto-me honrada por ter condições de saúde que me permitiram doar sangue ao longo destes anos”, acrescenta.
“O centro continua a promover que a doação de sangue é uma acção ‘para mim e para os outros’. Isto é uma boa maneira de incentivar os cidadãos a fazerem isso voluntariamente ao invés de atrair doações com pagamentos, enfatizando a responsabilidade dos cidadãos e não do dinheiro nesta questão de vida ou morte”, diz Wong Ka Cheng.
A jovem residente também se registou como dadora para um possível transplante de medula óssea/células estaminais, um serviço que o centro passou a disponibilizar desde 2012.
Os residentes que queiram tornar-se dadores de medula óssea devem ter idade compreendida entre os 18 e os 60 anos, com um peso superior a 50 quilos.
Os Serviços de Saúde de Macau e a Autoridade Hospitalar de Hong Kong celebraram um memorando que veio permitir aos residentes de Macau efectuarem o seu registo no Centro de Transfusões de Sangue local, para as suas informações serem processadas e conservadas na base de dados de medula óssea da região vizinha.
Contudo, no caso de existir um dador compatível, os procedimentos terão de ser realizados em Hong Kong. “Macau é tão pequeno que dificilmente se conseguiria implementar esse tipo de transplante ou construir um banco de dados de transplante de órgãos. Assim, Macau juntou este sistema ao de Hong Kong há alguns anos”, refere Wong Ka Cheng. “Os médicos do centro explicam bem todos os detalhes sobre as operações e o significado deste programa. Isto deixa as pessoas mais interessadas em participar nesta iniciativa.”
Maior consciencialização
Em 2021, cerca de 14.100 pessoas passaram pelo centro para doar sangue, com 17.664 unidades de sangue recolhidas e 3557 pacientes a beneficiar deste acto voluntário crucial. Actualmente, em média, 16 pessoas passam diariamente pelo centro para doar sangue, sendo 70 por cento dadores regulares.
De acordo com a directora do Centro de Transfusões de Sangue de Macau, a médica Hui Ping, nos primeiros anos de operação do organismo, o hábito de doar sangue era mais prevalecente na comunidade portuguesa do que na chinesa. Contudo, e com o contributo das chefias na função pública local, esbateu-se alguma da desconfiança junto dos dadores chineses.
“A comunidade chinesa tinha alguns preconceitos sobre doar sangue. Acreditavam que não era bom para a saúde, algo que era muito complexo”, diz Hui Ping à Revista Macau. “No entanto, tínhamos várias pessoas portuguesas em cargos de chefia que faziam dádivas de sangue e convenciam mais pessoas a fazê-lo”, acrescenta.
Depois da transferência de administração, em 1999, o centro lançou várias campanhas educacionais e promocionais, com vista a atrair mais dadores chineses. De acordo com a directora, antes do estabelecimento do centro, as doações de sangue eram geridas pelos hospitais locais separadamente e as doações eram geralmente pagas, uma prática que poderia acarretar “muitos riscos”. Muito do sangue para tratamento médico era também importado de Hong Kong, do Interior da China ou doado por membros da família do próprio paciente.
Em 1989, os dois hospitais da cidade foram proibidos de realizar doações pagas e uma política de doações anónimas, voluntárias e não remuneradas, foi estabelecida em Macau. Esta mudança foi um passo importante para garantir que a doação de sangue em Macau conseguiria estar de acordo com padrões de segurança internacionais.
Certificação internacional
Em 1999, o centro mudou-se também da sua antiga sede na Avenida Sidónio Pais para a sua localização actual na Alameda Dr. Carlos D’Assumpção, ganhando uma casa cinco vezes maior e estabelecida de raiz para este tipo de operações.
As melhorias no serviço permitiram ao Centro de Transfusões de Sangue de Macau receber certificados operacionais de qualidade em 2003 e 2009, respectivamente. Hui Ping revela que o centro está também a proceder à candidatura para a obtenção de um outro certificado, um requisito da Organização Internacional de Normalização (ISO, na sigla em inglês) para laboratórios, “para garantir que todos os processos no laboratório e na cadeia de hemocomponentes possam estar sob controlo”.
“Uma equipa da ISO vai visitar o centro para assegurar que seguimos os nossos procedimentos operacionais e verificar as nossas práticas de trabalho”, acrescenta a dirigente.
A qualidade dos produtos sanguíneos do centro segue também padrões estabelecidos pela Comissão de Especialistas Responsáveis pela Qualidade dos Serviços de Transfusão de Sangue, ao abrigo do Conselho Europeu. “Nós temos que ter uma boa imagem, não pode haver erro nos procedimentos de transfusão de sangue, desde o cadastro do dador até ao fornecimento de sangue para os hospitais; essa cadeia não pode ter falhas”, sublinha a responsável.
“Também temos um sistema de verificação de erros”, refere a directora. “Se algum erro afectar a nossa qualidade de serviços, a equipa elabora um relatório para enviar ao gerente de qualidade, que investiga o caso de maneira a estabelecer uma rede de segurança que garanta que esses erros não se repitam ou aconteçam de todo.”
Ao mesmo tempo, os laboratórios associados ao Centro de Transfusões de Sangue de Macau têm participado em Programas de Controlo de Laboratórios Externos do Reino Unido e da Austrália, para garantir que as suas técnicas laboratoriais se mantêm a um nível elevado.
Assegurar a qualidade do serviço de atendimento dos trabalhadores da linha da frente foi também definido como um elemento crucial para aumentar o número de voluntários. “Nós envidámos muitos esforços para treinar a nossa equipa e prestar o melhor serviço possível aos dadores de sangue, com respeito e afecto”, realça a directora do centro. “Além disso, estamos também a melhorar os nossos sistemas informáticos e a digitalização, de maneira a suavizar todo o processo e garantir que tudo esteja devidamente registado.”
De acordo com a dirigente, o actual sistema operativo está em uso há cerca de 13 anos e a sua actualização é uma das grandes prioridades, considerando que é este sistema que mantém os registos dos dadores e a compatibilidade dos tipos de sangue para transfusões.
Entranhado no sangue
A dádiva de sangue é um acto de solidariedade. Todos os anos, no dia 14 de Junho, a comunidade mundial celebra o “Dia Mundial do Dador de Sangue”, com destaque para os dadores voluntários cujo gesto permite salvar inúmeras vidas em todo o mundo.
Em Macau, além da necessidade de modernizar o sistema operativo, o Centro de Transfusões de Sangue tem lidado com alguns desafios, nomeadamente o envelhecimento dos dadores mais frequentes. “Em 2012, cerca de 80 por cento dos dadores tinham menos de 40 anos, mas esse número desceu para 68 por cento em 2021. Temos que arranjar maneira de motivar mais jovens a doar sangue regularmente”, salienta a médica.
Alguns desses esforços incluem oferecer bilhetes de cinema a alunos do secundário e estudantes universitários, para doarem sangue pelo menos duas vezes por ano; organizar excursões de estudantes ao centro; e oferecer materiais promocionais às escolas.
Outro desafio envolve lidar com a redução da percentagem de dadores masculinos, que passou de 61 por cento do total, em 2001, para 41 por cento em 2021.
“O plasma das mulheres tende a ter anticorpos de glóbulos brancos, e em Macau só usamos plasma de dadores masculinos. Se o número de dadores do sexo masculino continuar a cair podemos ter que recorrer ao plasma feminino. Ainda estamos a tentar encontrar uma solução sobre como resolver este problema”, nota a directora do centro.
Se, por um lado, a pandemia da COVID-19 trouxe vários obstáculos a Macau, por outro, reflectiu-se também num aumento do número de pessoas que se comprometeram com a dádiva de sangue.
“Temos mais dadores do que antes da pandemia, o que é realmente estranho. Eu sei que outras regiões têm registado uma redução de 20 por cento na colheita de sangue, mas para nós é exactamente o oposto, temos um crescimento de 20 por cento no número de dadores”, refere Hui Ping. “Eu acho que é porque o nosso serviço é muito bom e as pessoas como não podem ir para o exterior têm mais tempo livre para nos visitar e doar sangue. Alguns deles queriam fazer isso antes, mas não tinham tempo”, acrescenta.