Responsável pela cantina da Associação dos Macaenses, Marina de Senna Fernandes quer recuperar pratos e sabores há muito votados ao esquecimento e ajudar a consolidar um futuro mais risonho para a gastronomia macaense
Texto Marco Carvalho
“Estava mais do que na altura de me dedicar àquilo que gosto de fazer.” É assim, de forma sucinta, mas firme, que Marina de Senna Fernandes, 63 anos, se reporta ao que diz ser uma das decisões mais fáceis que alguma vez tomou.
Em 2019, trocou um emprego estável no departamento jurídico de uma empresa local pela gestão da cantina da Associação dos Macaenses (ADM) e é, desde então, uma mulher com uma missão: a de resgatar pratos e sabores macaenses que há muito sucumbiram à voragem do tempo.
Antiga empresária, Marina de Senna Fernandes transformou, ao longo dos últimos três anos, as instalações da ADM num incontornável centro de irradiação da cultura gastronómica macaense. A associação promove com frequência workshops e acções de formação centrados em aspectos muito específicos do sabor e do saber fazer culinário da comunidade macaense.
“A gastronomia macaense não se resume ao minchi, ao tacho e à capela. O nosso cardápio não é assim tão pequeno”, esclarece em entrevista à Revista Macau. “O que eu fiz foi pegar numa série de receitas, todas elas antigas, tiradas do baú, e comecei a ensinar como se preparam. São receitas que, hoje em dia, muito pouca gente confecciona. É nesta gastronomia que eu tenho andado focada, que tento resgatar desde há oito, nove anos”, ilustra a cozinheira.
Estratégia de sobrevivência
A grande adesão às iniciativas surpreendeu tudo e todos. O interesse manifestado pela comunidade chinesa nos segredos da gastronomia macaense abre, no entender de Marina de Senna Fernandes, novas perspectivas de futuro para um repositório de práticas e conhecimentos há muito enredados num véu de incerteza. “Há um interesse não só da parte dos macaenses, mas também dos chineses locais. O que me parece é que eles acham que a nossa gastronomia também faz parte deles. Há um sentido de pertença e este aspecto é muito bom”, assume a responsável pela cozinha da ADM.
“Com a quantidade de pessoas que tivemos a participar nos workshops, fico com a sensação de que a nossa cozinha não vai morrer, porque eles lhe vão dar continuidade. Agora, o que nós temos que fazer é ensinar a cozinha correctamente”, defende Marina de Senna Fernandes.
Mais do que uma estratégia de sobrevivência, a divulgação de receitas e técnicas é uma responsabilidade a que aqueles que melhor conhecem os sabores macaenses não se podem furtar. Marina de Senna Fernandes desdenha do estatuto de guardiã do conjunto das práticas e dos saberes que dão forma à culinária macaense, mas admite que a comunidade tem pela frente uma corrida contra o tempo, se é que quer salvaguardar o seu legado gastronómico.
“É importante partilhar os nossos conhecimentos para não os deixar morrer. Se guardarmos agora o que sabemos, esta cozinha desaparece mesmo. Não há outra forma”, alerta.
O desafio da consolidação
Um dos desafios mais prementes passa por fazer com que a “cuzinhaçám di Macau” – que é, por natureza, caseira, variada e complexa – adquira uma dimensão mais comercial. No final de Fevereiro e no início de Março, Marina de Senna Fernandes foi convidada para ministrar uma acção de formação no restaurante-escola do Instituto de Formação Turística de Macau (IFTM).
“Fui dar formação àqueles que cozinham neste momento no restaurante-escola do IFTM e foi uma experiência muito boa. Eu espero que ali possa ter deixado uma sementinha e que ela possa germinar”, salienta. “Estou também a ajudar algumas pessoas com os seus restaurantes. Estas pessoas estão a tentar colocar algumas coisas minhas [no menu], a experimentar e vamos ver se pega. A nossa cozinha, eu diria, pode estar em pé de igualdade com qualquer outra”, afiança.
A designação de Macau como Cidade Criativa da UNESCO na área da Gastronomia e a inclusão da culinária macaense no acervo do Património Cultural Intangível da China ajudaram a projectar a gastronomia junto da comunidade chinesa, mas os sabores de Macau sempre fascinaram o mundo. Considerada por muitos como a primeira cozinha de fusão verdadeiramente global, a gastronomia macaense é, sustenta Marina de Senna Fernandes, o resultado de um caudal de influências que se foram apurando até emergir um património único.
É este carácter cosmopolita e eclético que justifica, no entender da responsável pela cozinha da ADM, o interesse que a culinária macaense sempre suscitou junto de chefs e de curiosos de todo o mundo. Na qualidade de consultora ou de colaboradora, Marina de Senna Fernandes ajudou a dar corpo a livros que se tornaram obras de referência, como “The Adventures of Fat Rice”, de Abraham Conlon e Adrienne Lo, ou “Taste of Macau”, da britânica Annabel Jackson. Por concretizar, mas ainda entre os planos, está o lançamento de uma obra em nome próprio que possa dar um contributo fundamental para a preservação da cultura gastronómica da comunidade macaense. “As pessoas para poderem aprender a cozinhar, para conhecerem a cozinha, têm de aprender a sua história também. E é isso que estou a tentar fazer”, adianta Marina de Senna Fernandes.