Texto Patrícia Lemos
Fotos Paulo Cordeiro, em Portugal
Os famosos pastéis de nata de Macau criados por Andrew Stow, na pequena ilha de Coloane, há duas décadas, são hoje um fenómeno da gastronomia e do marketing na Ásia. Mas não foi aí que começou a história da internacionalização deste bolo que, em Portugal, muitos políticos vêem agora como a galinha dos ovos de ouro lusa. A fama do pastel de nata remonta ao século XVI, bem antes do bolo ser popular em Portugal. Tudo por causa da Infanta D. Maria que deu a conhecer o “pai” pastel de leite às cortes europeias. Mas, ainda que sem crédito para Portugal, a verdade é que foi na China que conquistou as massas.
Se há histórias improváveis, a do pastel de nata de Macau é uma delas. Na era da desconstrução das tradições gastronómicas, como é que um farmacêutico inglês na distante ilha de Coloane passa a perna aos chefs portugueses e conquista os chineses com pastéis de nata de Portugal, ainda por cima numa padaria onde mal cabem dois alfinetes? As perguntas sucedem-se: qual é relação entre a farmácia e a doçaria? E como é que os chineses que visitam Macau e os casinos foram dar àquela padaria minúscula? Apesar de apenas conhecer Macau enquanto visitante e de ter dado a primeira dentada no pou-tat em 2008, Vicente Themudo de Castro arrisca nas respostas com bom-senso e alguma inteligência.
Para o confrade de Lisboa, é perfeitamente aceitável pensar que um farmacêutico consiga dar a volta à receita tradicional de pastel de nata. Afinal, “a doçaria é pura química, não é como a cozinha tradicional. Não se podem fazer variações. Tem de se respeitar o processo e as dosagens. Caso se falha o ponto, adultera-se a receita”. Ou seja, Andrew Stow não se enganou na confecção, habituado que estava a lidar com as dosagens rigorosas dos medicamentos. Mas, na opinião de Castro, Stow “adulterou muito a receita do pastel de nata”: “Esse pode ser o pastel de nata mais popular mas não é o melhor”. Aliás, Castro nem lhe chamaria pastel de nata.
Há pelo menos duas grandes diferenças entre o pastel de Macau e o de nata tradicional. Uma “é o tamanho”: “O nosso nunca foi assim tão grande. Por uma questão cultural, eles gostam de bolos maiores”. A outra, adianta, é a introdução de frutas cristalizadas numa das versões, “o que não faz parte da receita original”. É muito provavelmente o toque britânico que Stow pôs na receita.
Marketing de génio
Mas será que a popularidade destes pastéis sem película queimada e canela se deve única e exclusivamente à fórmula de Stow? Quando criou a receita, o inglês nunca pensou que iria conquistar os asiáticos. Aliás, consta que as criou para turistas ingleses de Hong Kong e para os portugueses que residiam em Macau. Mas quando as filas começaram a crescer à porta da pequena padaria de Coloane Lord Stow, no arranque dos anos 1990, o inglês ficou ainda mais surpreendido. Infelizmente, não assistiu à explosão deste sabor na Ásia, já que faleceu em 2006.
A sua irmã Eillen gere, hoje em dia, o seu legado, tendo aberto várias padarias noutras zonas da Ásia. A sua ex-mulher, Margaret Zeyi, também tirou proveito ao abrir o seu próprio Café & Nata, situado bem no coração de Macau, e ao vender a receita à cadeia de fast food Kentucky Fried Chicken (KFC). Foi um negócio da China. E consta até que esta cadeia americana serve mais de 300 milhões de pastéis de nata por ano, mas Castro lamenta que a empresa americana “não deixe claro à sua clientela que aquela sobremesa é de origem portuguesa. Isso destrói a raiz que é Portugal”.
Quem viveu em Macau antes desse acordo milionário, sabe muito bem que o pastel à Stow já atraía muita gente. Por isso, é ao autor da receita e à forma como comercializou o seu produto que se deve provavelmente este fenómeno de popularidade. E isso, conforme sublinha o confrade, até tem um nome nos compêndios de marketing. Chama-se Herd Behaviour ou, se preferirem, Comportamento de Rebanho.
Castro acredita mesmo que na base do fenómeno do sucesso do Lord Stow está uma “grande lição de gestão estratégica” e adianta que o mesmo “aconteceu dois anos depois em Newark”, nos Estados Unidos, com a pastelaria Countinho’s, também por ser pequena, atraiu muita clientela. O confrade explica que, “tanto na padaria de Macau, como na pastelaria de Newark, só cabiam duas ou três pessoas. Por isso, fazia-se fila à porta para comer o pastel de nata”. As filas foram crescendo e muitas das pessoas que aguardavam a vez nem sabiam bem ao que iam, mas eram atraídas pela popularidade. Compravam os pastéis de nata, gostavam e tornavam-se habitués.
Infanta da nata
O pastel de nata está recheado de mitos, como o da sua recente internacionalização. Castro explica que antes de ser popular em Portugal, o pastel de nata já agradava além-fronteiras. “Era comido nas cortes inglesas”, no século XVI. E é exactamente por essa altura que começa a história do pastel de nata. A protagonista é a nossa Infanta D. Maria que o deu a provar à nobreza europeia. O confrade admite que “não existe nenhum documento oficial sobre o surgimento do pastel de nata e é por isso que a história varia até entre gastrónomos”. Contudo, “todos dão importância aos livros da Infanta D. Maria na história do pastel de nata”. Concluindo assim que “este bolo vem da receita do pastel de leite que constava desses manuscritos. É igual à do pastel de nata mas sem a massa folhada. O pastel de leite evoluiu depois para dois bolos: o bom bocado e o nata, cuja diferença é a massa, que no primeiro caso é tenra”.
Castro tem ideias muito próprias em relação à comercialização do pastel de nata. Primeiro, considera “importante que seja conhecido como um produto genuinamente português. Seria ainda fundamental que existisse uma espécie de selo de garantia para aqueles que respeitam a receita”.
Acredita ainda que “o problema da internacionalização do pastel de nata é o facto de este ser um produto que tem uma longevidade muito curta. A única forma era criar uma fábrica como a dos pastéis de Belém e que depois tivesse vários pólos espalhados pelo mundo, onde a receita era respeitada”. Refere-se a um franchising de pastéis de nata? “Não gosto dessa palavra…”
Mas, por outro lado, manifesta pouco apreço pelos famosos pastéis da Confraria de Belém, onde popularmente se acredita estar a origem do pastel de nata. Para Castro, “o pastel de Belém é apenas uma marca do pastel de nata”. Aliás, diz que o único segredo dessa receita é o microchip que põem nos bolos: “Mal saímos da pastelaria o pastel é destruído”. Essa característica é, segundo Castro, um defeito e não uma qualidade: “O bom pastel de nata é para ser comido a qualquer hora do dia e dura um ou dois dias.”
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O bolo dos 1001 nomes
Na cadeia de restaurantes McDonald’s chamam-lhe Portuguese style cakes, mas há quem prefira apelidar o pastel de nata de custard tart ou mesmo cream custard. Porém, é muito provável que o nome mais interessante dado à coqueluche da pastelaria portuguesa seja pu-shi dan-ta. É mandarim e significa “tarte de ovo”. Em cantonês, a designação surge simplificada para pou-tat, segundo o investigador Cheong Kin Man, licenciado em Estudos Portugueses: “Perde o dan de ovo. Mas muitos chineses de Macau sabem que há os pou-tat de Macau e os de Portugal, e que são diferentes!”
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A Confraria pelo convívio
A ideia de criar a Confraria do Pastel de Nata surgiu por causa das viagens que Vicente Themudo de Castro fez pela Europa e pelo mundo. “Descobri que temos imensos pasteleiros fora de Portugal a fazer pastéis de nata, em França, em Itália, em Angola, no Brasil, no Canadá”, e por aí fora. Inclusivamente, “quase todas as pessoas das comunidades portuguesas iam a esses estabelecimentos comer pastéis de nata e beber café, que normalmente eram da marca Delta”. Por isso quando Castro criou a confraria com José António Silva e Sousa – actual presidente – “não foi só pelo pastel de nata, mas também pela socialização que o bolo provoca lá fora. Era a reunião dos portugueses à volta do pastel de nata. É daí que nasce a ideia”.
Os deveres do Nata
- Não deve ser muito doce nem cítrico
- Deve ter uma massa folhada e crocante
- Não deve estar muito queimado nem demasiado claro
- Deve ter mais creme do que massa
- Não deve haver grandes fissuras no creme
- Deve comer-se morno, a 40 graus
Pastéis com sabor “Chique”
Se há coisa que um português sabe é onde se come um bom pastel de nata. De Macau ao Canadá, este bolo faz as delícias do mundo, nas suas boas e más versões. Une portugueses dentro e fora do país, porque não há povo que ligue assim tanto a memória aos sabores, assegura Vicente Themudo de Castro, um dos fundadores da Confraria do Pastel de Nata que nos deu a provar os melhores pastéis de Lisboa, os da Chique de Belém.
Só há dois tipos de pastéis de Belém: o bom e o mau. “E o da Pastelaria Chique de Belém é bom.” Não é só Castro a meter a mão no fogo por esta pastelaria que foi galardoada por ter O Melhor Pastel de Nata 2011, concurso incluído no festival Peixe em Lisboa. É o caso de Maria Carmo Pires que conhece os pastéis da Chique de ginjeira. “Todas as semanas venho cá”, garante, enquanto aguarda pela dúzia que vai levar para casa. Como as irmãs Maria Luísa Martins e Maria Augusta Ventura, que vão conversando à mesa com dois pastéis de nata regadinhos por um carioca, Maria Carmo Pires acredita que os pastéis de Belém não chegam aos calcanhares dos da Chique: “Gosto mais destes do que dos famosos”, até porque engordam menos. A médica das irmãs Luísa e Augusta até diz que o pastel de nata é um mal menor na pastelaria portuguesa para diabéticos.
Mas o sócio gerente da Chique, Fernando Ferreira, acredita que se algo fez cair a venda do pastel de nata nos últimos anos – como a crise em Portugal – foi “a mania das dietas”. Mas este comerciante admite também que as pessoas procuram mais a pastelaria que faz frente ao novo Museu dos Coches, “por causa da vitória no concurso do festival Peixe” e que “continuam a levar muitos pastéis para casa”, dando muito trabalho aos quatro pasteleiros.
Apesar de fama local e desta casa já ter celebrado as bodas de ouro, ainda há quem lá vá dar sem saber que a Chique tem os louros do pastel de nata. É o caso da espanhola Lorena que está em Lisboa numas mini-férias com o marido. Estão sentados na pequena esplanada da Chique, onde não tardam a chegar dois belos pastéis de nata da última fornada. “Não fazia ideia que estes eram os melhores”, afiança, enquanto um pombo arrasta a asa à massa folhada que cai como a neve na calçada. Vicente Themudo Castro está noutra mesa a dizer que não é fã dos pastéis servidos em Espanha e diz que mesmo que “70 por cento dos que são vendidos em Portugal são produzidos industrialmente e vêm de uma fábrica espanhola situada no Carregado”. Ainda bem que Castro não ouve Lorena, que está a comparar o nosso nata ao pastel de arroz espanhol.
Mas afinal o que faz do pastel de nata da Chique uma referência em Portugal? Primeiro não são industrializados. Segundo “para ser bom, o pastel de nata tem de falar connosco mal o apertamos”, explica o especialista Castro. Ou seja, tem de fazer aquele barulho típico da massa folhada fresca. Caso contrário, “parece de borracha”.
Depois, vira-se o pastel ao contrário e “pela base vemos logo se foi manufacturado ou se foi produzido industrialmente”, porque se é caseiro tem um aspecto mais tosco. Se o recheio cair é porque levou gato por lebre, ou um pastel de Belém em vez do de nata, que é mais amanteigado.
O visual do pastel de nata também conta, assegura Castro antes mesmo de empurrar o resto do pastel de nata com uma bica. “Não pode estar queimado, nem ser demasiado claro. A camada de massa folhada não pode ser muita. Tem de ter um tamanho que, com duas três dentadas, despachamos sem enjoar. É um petit gâteau para o pequeno-almoço.”