Dos jardins do infortúnio às vielas da redenção

Descobriu cedo o gosto pelo desenho, mas só mais tarde a paixão de Fortes Pakeong Sequeira se tornou numa carreira artística bem-sucedida. Pelo meio ficaram memórias de uma Macau marcada por uma vivência profundamente pessoal, experiências que o obrigaram a crescer rápido demais

Texto  Marco Carvalho

De todas as histórias de resiliência que se escutam nas travessas e nas esquinas de Macau, a de Fortes Pakeong Sequeira é das mais extraordinárias. O designer gráfico e vocalista da banda rock “Blademark” tem, aos 43 anos, uma carreira artística bem-sucedida, mas uma juventude atribulada e uma família disfuncional quase o empurraram para as margens da sociedade. 

Aos 13 anos, desavindo com um pai demasiado rigoroso, saiu de casa, abandonou a escola e mergulhou numa sombria espiral de prostração que atingiu o fundo do poço cinco anos depois, numa insalubre prisão de Hong Kong. Lá pelo meio, dormiu em jardins públicos sob o olhar estagnado de heróis há muito esquecidos e envolveu-se com gangues criminosos.

A redenção chegou, primeiro, sob a forma de uma bola de basquetebol e, depois, de pincéis e lápis de cor, numa vivência profundamente pessoal de Macau que escapa ao paradigma das referências turísticas e que é um hino ao triunfo perante a adversidade.


As estrelas como tecto

“O meu lugar favorito em Macau talvez seja o Jardim Vasco da Gama”, adianta Fortes Pakeong Sequeira, com a convicção de quem aponta o caminho menos convencional e a incómoda nostalgia de quem recorda os cantos a uma antiga casa. O pitoresco jardim, hoje situado entre os arranha-céus do Tap Siac, foi durante um ano o lar que Pakeong Sequeira nunca desejou ter: “Quando saí de casa e abandonei a escola, tornei-me um sem-abrigo. Tinha 13 anos na altura. Estávamos no início da década de 90 e eu trabalhava durante o dia num restaurante, mas quando chegava à noite não tinha onde ficar e dormia na rua, o mais das vezes no Jardim Vasco da Gama”, recorda o designer gráfico. 

A experiência – numa cidade com o destino traçado – prolongou-se por cerca de um ano e obrigou-o a despedir-se depressa demais dos verdes anos da infância: “Vi e vivi momentos totalmente inesperados. Conheci todo o tipo de pessoas. Foi uma experiência que me mostrou que o mundo nem sempre é como o concebemos e que mudou por completo a minha vida, mudou a minha adolescência”, assume Pakeong Sequeira.


Onde o amor floresce

O primeiro grande momento de ruptura na vida de Pakeong Sequeira é, no entanto, anterior às noites de sobressalto vividas sob o olhar estagnado de Vasco da Gama. Quando tinha apenas seis anos, os pais decidiram seguir caminhos diferentes, colocando um ponto final numa relação tumultuosa: “Eu tinha seis anos, mais coisa, menos coisa, e os meus pais decidiram separar-se. Eu fiquei a viver com o meu pai. Não tive a oportunidade de crescer com a minha mãe”, lamenta o músico, de raízes macaenses. 

O afecto em falta, Pakeong Sequeira encontrou-o num lugar improvável, a Escola Luso-Chinesa Luís Gonzaga Gomes. Foi lá que se cruzou com um anjo da guarda, encarnado na professora que primeiro o incentivou à prática das artes plásticas.

“Eu era um miúdo calado, não falava muito quando era pequeno. Era magro e enfezado e essa professora fez-me uma série de perguntas. Veio ter comigo depois de uma das aulas e perguntou-me qual era a actividade de que eu gostava mais. E eu disse: ‘Desenhar’. Ela trouxe-me folhas brancas e lápis de cor e eu debulhei-me em lágrimas”, recorda Pakeong Sequeira. “Esta professora, que agora é a minha madrinha, teve um grande impacto na minha vida”, esclarece.


Demanda pelo tempo perdido

Pakeong Sequeira só se volta a cruzar com a mãe aos 18 anos. E é pela mão da mãe que parte à procura do tempo perdido. Regressa à escola, redescobre o entusiasmo pelo desenho e pela arte, encontra no basquetebol e na música novas paixões.

“Entre os meus 19 e os meus 23 anos, passei muito tempo nas instalações da YMCA (Associação dos Jovens Cristãos de Macau) a tocar e a ensaiar a minha música. Era um espaço bastante barato e os músicos e as bandas locais tinham a oportunidade de ensaiar lá. A YMCA foi um espaço muito importante para mim, porque me ajudou a ter uma mente mais aberta”, assume o agora vocalista da banda “Blademark”.

Mas foi um detalhe, mais do que um espaço, que o ajudou a manter o foco numa carreira artística que é hoje consensual e multifacetada. O painel de azulejos que ilustra a fachada do antigo Hotel Estoril – e que retrata Fortuna, a deusa romana da ventura e da felicidade – foi e é para Pakeong Sequeira uma fonte contínua de inspiração. “Quando era pequeno, aquele painel gerava em mim o desejo de desenhar, de fazer algo com a mesma beleza. Sentia esta necessidade quase todos os dias. Não sei muito bem porquê, mas adoro aquele mural”, assume o artista plástico.


A Macau mais genuína

Na longa caminhada para a redenção, a obtenção de uma licenciatura em design gráfico na Escola de Artes do Instituto Politécnico de Macau pautou um virar de página no percurso de vida de Pakeong Sequeira. Em 2005, o artista inaugurou a sua primeira exposição a solo e, desde então, deu a conhecer o seu trabalho em Pequim, Xangai, Tóquio, Singapura, Lisboa e Nova Iorque, entre vários outros locais. À actividade artística, acrescentou nos últimos anos um mergulho nos meandros do empreendedorismo, com a criação de uma agência de produção de espectáculos culturais e do espaço “A Porta da Arte”, no coração da Rua dos Ervanários, uma das poucas zonas da cidade que, no seu entender, preserva o verdadeiro espírito de Macau. 

“Quando alguém passeia um pouco por esta área, apercebe-se de que este é um dos poucos locais de Macau onde o estilo de vida original da cidade está preservado. As pessoas que aqui moram, sobretudo os mais velhos, quando lhes dizemos ‘bom dia’, acolhem-nos e abrem-nos o coração. Quando eu era pequeno, Macau era uma cidade muito pacífica. Esta área conseguiu manter essa paz. É aqui que está a Macau mais genuína”, diz Pakeong Sequeira.