No Pavilhão das Peónias, uma rapariga de 16 anos escolhe o seu destino, preferindo morrer a viver uma existência que não deseja. Foi a primeira peça de ficção chinesa que retratou uma mulher pensante e revoltada contra os preceitos tradicionais, tendo fascinado as mulheres da época, que podiam ler a ópera mas não estavam autorizadas a vê-la ou ouvi-la.
Uma tendência começou, então, a aparecer: Tal como a protagonista da história, raparigas cultas e abastadas, geralmente entre os 13 e os 16 anos, com casamentos combinados, padeciam de mal de amor, deixando de comer e acabando por morrer. A esperança destas adolescentes era poder escolher o seu destino após a morte, como fizera o fantasma de Liniang. Moribundas, muitas escreveram poemas de amor, publicados após a sua morte, nomeadamente Xiaoqing e Yu Niang.
Esta é uma história de ficção passada no Terraço Panorâmico onde os mortos espreitam os vivos. Fala no Espelho da Retribuição, no tribunal dos juízes infernais e nos ritos do culto dos antepassados. Mas fala sobretudo nos sonhos e esperanças de uma menina que ainda quer ser noiva fantasma. Mais do que tudo, que não quer acreditar que morreu em vão.
10 de Março 1655
Vivo através dos vivos. No Terraço Panorâmico, vejo as vidas deles, a vida que não desejei.
Morri de mal de amor, deixando de comer enquanto ouvia a minha mãe ler O Pavilhão das Peónias, nos aposentos das mulheres. Eu sou uma flor que tu fizeste desabrochar na escuridão da noite, ouvia minha mãe dizer, como se Liniang fosse. Esperei por ti. Esperei que a morte me salvasse da vida cruel que o meu pai me guardava. Não queria cumprir o destino que ele traçara, casando com um qualquer oficial, velho ainda por cima, como ouvi a minha segunda Tia dizer à minha primeira Tia.
Ouvia Liniang e sabia que ali estava a minha felicidade. Se morresse, encontrar-te – ia em sonhos, saberias quem eu era, pedirias ao meu pai a minha mão de noiva fantasma, trar-me-ias de volta à vida, como Meng-mei trouxe Liniang.
11 de Março 1655
Nunca pensei que o meu pai me traísse assim, após a minha morte.
Era um homem distante, sim. Pouco ligava à minha mãe, muito mais às concubinas. Nunca falou comigo como um pai, nunca me fez um carinho. Mas não o esperava tão cruel. Vejo a minha tábua de antepassada esquecida atrás da porta da biblioteca. Sem o ponto. Sem o ponto, não sou mais que um fantasma faminto, vagueando pelos céus, à espera de ser lembrada.
Quarenta e nove dias após a minha morte, alguém devia ter pegado no pincel, molhado no sangue de galo e feito o ponto na minha tábua. Havia de ter sido um erudito, alguém letrado. Mas já passaram três anos e a minha mãe serviria bem.
12 de Março 1655
Sempre achei que os fantasmas famintos eram entes nojentos, fracos, pequenos. Agora, sou um deles. Muitos estão aqui por terem morrido longe de casa. Sem uma sepultura condigna, vagueiam como fantasmas até ao fim dos tempos.
Eu, sou um fantasma faminto porque sou mulher. E por ter morrido sem casar. Sempre soube que o meu pai teria preferido um rapaz, mas nasci eu. O mal poderia ter sido remendado com um bom casamento, mas morri antes de tempo.
Ninguém respeita uma rapariga morta sem marido. Três meses após a minha morte, ouvi a minha mãe pedir ao esposo pela tábua, que já era tempo de a colocar no seu devido lugar. Ele logo lhe respondeu que seria uma afronta para com os antepassados da família. E ela nada pôde. É mulher.
Fez o que conseguiu. Sepultou-me com roupa acolchoada para eu não ter frio no Inverno, e teve o cuidado de não me colocar nada que tivesse pele, para eu não renascer na forma de um animal. Mal sabe ela que estou presa entre dois mundos, agarrada à balaustrada deste Terraço Panorâmico, com vista para os vivos mas sem nunca mais poder ser um deles.
13 de Março 1655
Ainda me lembro do medo que tive na fila da Ponte da Pesagem. Pouco tempo passara da minha morte e nada sabia do que me esperava. A balança era controlada por demónios burocratas, e descia ou subia conforme as acções em vida.
Que alegria senti ao ver que era leve como uma pena! Depois passei para a Aldeia dos Cães Maus, onde os bons são bem recebidos e os maus são dilacerados. Saí ilesa.
Quando cheguei ao Espelho da Retribuição vinha ansiosa para ver no que me tornaria quando renascesse. Esperava poder ver a minha vida ao lado do meu Mengmei. Mas não vi nada. Uma mera imagem difusa.
Só entendi que era um fantasma faminto muito mais tarde, talvez um ano após a minha morte, quando duas raparigas, também mortas de mal de amor, me disseram. Não poderás subir ao Tribunal dos Juízes Infernais e ser julgada. Não poderás sair do Terraço Panorâmico das Almas Perdidas.
O choque foi grande no início. Senti-me desesperada. Mas depois lembrei-me que o meu Mengmei poderia salvar-me. Se eu o encontrasse em sonhos, ele poderia acordar e pedir ao meu pai para casar comigo. Logo o meu pai iria buscar a minha tábua atrás da porta da biblioteca, daria a tábua ao meu noivo, faríamos um casamento fantasma, usando a tábua no meu lugar, e seria ele a colocar o ponto, pois eu passaria a fazer parte da sua família. Mas já passaram três anos e ainda aqui estou.
14 de Março 1655
Não há esperança para mim. Quem me aceitará como noiva fantasma? Se não cheguei a conhecer o meu Mengmei, se nunca fui uma Liniang.
Já andei por tantos sonhos, de tantos homens, e nunca te encontrei. Será que existes realmente? Será que o meu pai tinha razão ao dizer que o Pavilhão das Peónias só assombrava a cabeça de meninas ingénuas? Será que é tudo mentira? Que morri por nada?
Quantas vezes sonhei fazer nuvens e chuva1 contigo, meu Mengmei. Como dizia Liniang, um fantasma pode ser iludido pela paixão, uma mulher tem de prestar atenção aos rituais. E agora que sou eu? Um fantasma, ou uma mulher? Ainda sinto as Sete Emoções2, ainda quero acreditar que sou humana. Mas como fantasma, faria nuvens e chuva contigo. Se pelo menos te encontrasse.
15 de Março 1655
Hoje deixei fluir o qing3 com um homem que encontrei no Pavilhão da Primavera. Não é o primeiro. Já o fiz algumas vezes. Quando encontro alguém aberto ao qing renasce a esperança de ter encontrado o meu Mengmei.
Mas de manhã, este, como outros, foi logo contar à mãe que me vira em sonhos. O li4 é demasiado forte nele, como já foi noutros. Toda a gente sabe que, se os vivos contarem que viram um espírito em sonhos, nunca mais poderão ser visitados.
A mãe colocou folhas de samambaia no portão para me afastar. Diz-se que cegam os espíritos, mas não é verdade. Não o voltarei a ver porque relatou a minha visita, mas a minha vista está perfeita.
16 de Março 1655
Ai, como tenho saudades de ouvir os escritos de Xiaoqing e Yu Niang. Valiam-me agora para consolar o desespero que é estar entre dois mundos, o desespero de sentir que a morte afinal foi em vão. O medo de admitir que o meu Mengmei não existe.
17 de Março 1655
Tenho fome, e a festa dos Fantasmas Famintos5 ainda demora.No ano passado, passei fome. Não consegui chegar às oferendas que os vivos deixaram para nós. Morri muito fraca e a minha família não me faz oferendas, ainda mais fraca estou. Tentei ser tão forte quanto eles, empurrei, dei cotoveladas, mas os meus pezinhos de lírio doíam-me e só consegui chegar a uns poucos bolos de arroz.
18 de Março 1655
Já me cansei de seguir o meu pai, de visitar o Pavilhão de Ver a Lua, o Lago do Poente, ou de tentar passear pelas ruas. Não consigo dobrar esquinas apertadas e tenho de fazer tantos desvios que acabo por me cansar. Os meus pés de lírio ainda estão pouco habituados a andarem tanto.
Gostava tanto de lhes mudar as faixas, mas os vivos não pensam nisso. Preciso de enfaixar os pés de novo. Estes panos estão sujos e soltos.
Andam aqui tantas mulheres de pés grandes, agricultoras ou manchus, por certo. E que orgulho tenho agora de mostrar os meus pezinhos minúsculos! Deslizo perante elas com a graça da minha condição, e agradeço à minha mãe todo o empenho que pôs no meu enfaixamento.
Pouco me lembro das dores que provocou no início. Recordo as lascas de osso que me dilaceravam a pele, dos dedos a tentar erguer-se, enquanto eram obrigados a colar-se à planta do pé. Mas o resultado valeu a pena por aqueles meses (terão sido anos?) de sacrifício.
Aqui a vida continua como lá, e eu continuo orgulhosa dos meus pés de lírio e a abominar as mulheres de pés grandes.
19 de Março 1655
Receio, sim, ter sido tudo em vão, mas valem-me as reflexões e sonhos, escritos por outras mãos. Vivo através deles. E através deste Terraço onde vejo os vivos esquecerem que eu morri.
Todas as manhãs, Tze escrevia o que Chen Tong lhe ditava em sonhos. Tze tinha 15 anos, a mesma idade de Chen Tong quando morrera. Estávamos em 1655, na cidade de Hangzhou, China.
Notas do texto:
1: Fazer nuvens e chuva significa ter relações sexuais
2: As Sete Emoções são a Alegria, a Cólera, o Desejo, o Amor, a Tristeza, o Medo e o Ódio
3: O qing são as emoções profundas e o amor sentimental
4: Li é a sensatez e a razão
5: Entre Agosto e Setembro
Duas Visões
Yao Jingming, poeta, professor na Universidade de Macau (UM) e tradutor de Eugénio de Andrade, entre outros poetas:
“O Pavilhão das Peónias teve impacto porque descreveu, com coragem, a curiosidade da mulher pelo sexo, o que foi sempre um tabu numa sociedade regida rigorosamente pelo confucionismo. O imperador podia ter três mil concubinas mas as pessoas comuns não podiam namorar livremente.
O autor da ópera, Tang Xianzu (1550-1616), é dos maiores dramaturgos da China, tendo passado por Macau. Na minha opinião, esta ópera tem mais importância na literatura do que na vida real da mulher chinesa”.
Esta história foi renovada através da adaptação do escritor de Taiwan, Bai Xianyong, estando na moda nos últimos anos.
Tam Mei Leng, docente do departamento de Chinês, da UM:
“Tang Xian-zu acabou o Pavilhão das Peónias em Agosto de 1598, pouco depois de se demitir do cargo público que ocupava. Preferiu demitir-se por não suportar mais a burocracia da dinastia Ming, e nem esperou pela autorização imperial, limitando-se a abandonar as suas funções e regressar à sua cidade natal, LinChuan.
A burocracia e o comportamento dos académicos era muito estranha durante a maior parte da dinastia Ming. A maioria dos académicos e dos políticos era muito decente e honrada no trabalho, mas tinha uma vida dupla, indo a bordéis e adorando ver imagens pornográficas.
A hipocrisia das pessoas transformou o fim da dinastia Ming numa situação intolerável. Foi por isso que Tang escreveu esta história: Para exaltar o amor verdadeiro e mostrar que este sentimento tem o poder de fazer renascer as pessoas.
Tang quis mostrar a obra como um sonho entre um casal de namorados, ou seja uma história de amor para intelectuais. Este álibi conseguiu convencer os académicos da dinastia Ming que adoraram a ópera, mas o verdadeiro objectivo do autor foi de mostrar a perda do amor, ou melhor, o coração real das pessoas.
O Pavilhão das Peónias foi banido no fim da Dinastia Qing, em 1868, com o Imperador Tongzhi. Mas não por muito tempo, já que os imperadores da dinastia Qing não desgostavam da obra. Aliás, só a baniram para mostrar a sua autoridade ao povo.
Nos anos 60, a ópera foi de novo banida na Revolução Cultural por razões políticas. Considerava-se que a obra representava o passado que se queria esquecer para reformar o país, para além de ser considerada demasiado lasciva.
Actualmente, a juventude não tem grande paciência para ler ópera chinesa, e não apreciam ouvir a ópera tradicional.
Mas quando se interessam por esta obra, conseguem sentir a vitalidade da peça. Conseguem rever-se naquelas palavras, e entender que a vida tem mais do que os bens materiais.
Há uns anos, um dos meus alunos disse-me que o Pavilhão das Peónias transmite realmente o que é a vida, e é isso que a juventude de Macau procura”.
A peça ‘O Pavilhão das Peónias’
A longa peça de 55 cenas, de Tang Xianzu (1550-1616), fala no amor de Liu Mengmei (cujo nome significa ameixoeira), um jovem estudante, e Tu Liniang, a filha de um alto oficial em Nan-an, na província de Kiangsi.
No jardim familiar, Tu Liniang adormece e sonha com um rapaz com quem acaba por ter relações sexuais no Pavilhão das Peónias. Ao acordar, não consegue esquecer o seu amado. Infeliz, deixa de comer e é-lhe diagnosticado mal de amor. Antes de morrer, Liniang pinta um auto-retrato e enterra-o debaixo de uma árvore do jardim, uma ameixoeira, onde mais tarde os seus restos são sepultados.
Pouco depois, o governador Tu, seu pai, é transferido para um posto militar no norte de Kiangsu.
Liu Mengmei está a caminho de Kwangtung, onde vai fazer o exame imperial em Hangchow. Mas adoece e a sua recuperação faz-se na casa de Verão do jardim da família Tu.
Debaixo da árvore, Meng-mei encontra o retrato de Liniang, que encontrou em sonhos, e deseja revê-la. Os seus desejos são concedidos. Uma noite Liniang aparece-lhe e pede-lhe para abrir o caixão. Liniang é encontrada viva, tão fresca e bonita como sempre.
O casal vai então para Hangchow, onde Mengmei completa o exame, mas o anúncio do resultado da prova é atrasado pela crise nacional, provocada pela invasão de um líder rebelde. Preocupada com o seu pai, Liniang pede ao marido que procure o governador, levando o seu auto-retrato para se identificar.
Por essa altura, o governador Tu já calara a rebelião. A vitória era celebrada com um banquete no seu escritório, quando chega Liu Meng-mei, clamando ser o genro do convidado de honra da festa.
O governador Tu, já informado da violação da sepultura da filha, suspeita tratar-se de um impostor. Prende-o e leva-lo sob escolta para Hangchow, onde pede uma audiência ao imperador.
Chegado a Hangchow, Liu Mengmei é salvo por um oficial, procurando o académico com honras de excelência no exame imperial. Por fim, numa audiência em frente do trono, Liu Mengmei prova a sua inocência com a ajuda da sua mulher ressuscitada. A peça termina, como era habitual nestas obras, com uma promoção do oficial e uma reconciliação familiar.