Leonor Seabra está com pressa. Leonor Seabra está sempre com pressa. Entre as aulas de História na Universidade de Macau (UM), as teses de mestrado que acompanha e os trabalhos de investigação que vai fazendo quando as horas parecem esticar, ainda é directora do Centro de Investigação de Estudos Luso-Asiáticos, vice-presidente da Associação para o Intercâmbio entre Macau e a América Latina e sócia de diversas associações académicas. O tempo nunca chega.
Conhece o passado do território como poucos e no entanto nem aqui nasceu. Mais. Só aqui passou cerca de um terço da sua vida.
Leonor Seabra é portuguesa. Mas nunca se sentiu bem em Portugal. África era a sua terra. A então África portuguesa de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, onde cresceu e se fez mulher, de onde nunca pensou sair até chegar o dia 25 de Abril de 1974. Em 1975 estava num Portugal que só lhe era familiar nas férias que ali passava. Portugal não era a sua terra. África era a sua terra. Tinha 25 anos.
Ainda perdida num país estranho, Leonor acabou por decidir seguir engenharia química. “Sempre fui boa a ciências. Acabei por ir para letras, nem me pergunte porquê. Decidi simplesmente mudar de curso e fui para história. Mas ainda hoje sou muito objectiva e concisa na escrita, na oralidade e no pensamento”.
Os anos foram passando e Portugal continuava a ser um desconhecido. Para África não pensava voltar. Sabia que o passado nunca regressaria e o que lhe restava na sua terra eram meros despojos. “Nunca me adaptei a Portugal. Mas acabei por me conformar a lá viver”.
Em 1987 abriu uma vaga no, então, Instituto Cultural de Macau. Leonor e o marido concorreram. Sem razão. Concorreram simplesmente. E a resposta veio positiva. O que não veio nada a calhar.
“Tinha muito medo de não me adaptar a Macau. Já me tinha sido muito difícil resignar-me a viver em Portugal e receava sentir o mesmo cá. Estivemos dias e dias para dar uma resposta”. Passaram-se 21 anos. Leonor esteve nove anos no Instituto onde fez investigação e depois passou a coordenar a biblioteca. De lá passou para a UM. Até hoje. E hoje Leonor ri-se dos seus medos passados. Pois encontrou em Macau o que amava em África.
“Até à liberalização do jogo no território, em 2004, Macau era fantástico. Conhecíamo-nos todos, íamos às nossas lojinhas habituais, onde todos nos conheciam, tínhamos os nossos pontos de encontro. Hoje há gente a mais, lojas a mais, carros a mais, prédios a mais. Tenho muitas saudades do ‘nosso Macau’, mas mesmo assim, prefiro este Macau a Portugal”.
História perdida
Em meados deste ano, Leonor Seabra vai publicar o seu próximo livro. Desta vez, é a tese de doutoramento, feita através da Universidade do Porto, com o apoio da Universidade de Macau, sob o nome A Misericórdia de Macau (Séculos XVI a XIX) Irmandade, Poder e Caridade na Idade do Comércio. “Foi a UM que se mostrou interessada em publicar a minha tese. Terminei-a no ano passado e estamos neste momento a fazer revisões para publicá-la”. Hoje, Leonor Seabra fala das misericórdias como se no tema tivesse nascido, mas na verdade, nem era assunto sobre o qual se quisesse debruçar. Até falar com Ivo Carneiro de Sousa, na altura professor da Universidade do Porto, hoje vice-reitor do Instituto Inter-Universitário de Macau. “Ele disse-me que não havia nada sobre a Misericórdia de Macau e que estaria muito interessado em publicar um trabalho sobre o tema. Eu fiz alguma investigação, porque só tinha noções básicas sobre a Santa Casa, e acabei por aceitar, alguns meses mais tarde”.
Investigação é o que Leonor Seabra mais gosta de fazer. Estar nos arquivos, procurar, descobrir, escrever. Mas nem sempre é fácil porque o passado nem sempre é bem tratado. Em Goa, o arquivo ainda não está microfilmado. As pesquisas são feitas sobre os documentos originais que não estão minimamente protegidos da humidade, nem do calor. As salas não têm ar condicionado e as páginas dos livros centenários são viradas pela força das ventoinhas. As páginas, miseráveis, vão-se desfazendo nas mãos de quem as quer conhecer. “Ficam sempre pedacinhos dos livros nas mesas. Eu junto-os e deixo-os dentro no meio das páginas. Se um dia forem recuperados, todos os bocadinhos serão importantes”.
O arquivo de Macau está melhor acondicionado, já que muitos documentos são consultados em microfilme e os livros originais estão guardados. Mas aqui a falha é outra. Quando Leonor Seabra fez a sua tese de mestrado, consultou o fundo da Santa Casa da Misericórdia e o Fundo da Marinha. Este trabalho terminou em 1995. Em 2001, já estes espólios não estavam no Arquivo Histórico de Macau. Simplesmente desapareceram. O fundo da Santa Casa ainda se encontra em microfilme. Do da Marinha nada ficou.
Por isso a tese de Leonor Seabra se torna tão importante para o entendimento histórico da influência da instituição em Macau. “A Santa Casa da Misericórdia teve a mesma estrutura em todos os locais onde foi implementada, mas sempre se adaptou às características de cada local. Em Macau por exemplo, foi muito importante a nível económico, político e social”. Era a Santa Casa que emprestava dinheiro, em empréstimos de risco de mar, para viagens de comércio marítimo, e de terra, para investimentos em terras. Foi a Misericórdia que tomou conta das centenas, milhares de órfãos que pareciam nascer e morrer a cada esquina, filhos das escravas e prostitutas de Macau. Também o Hospital dos pobres, mais conhecido como o Hospital de São Rafael, só desactivado em 1975 e hoje ocupado pelo Consulado-geral de Portugal, foi obra desta instituição. “A partir do século XVIII, a Misericórdia foi perdendo a sua influência mas ainda hoje apoia alunos carenciados, tem uma creche e um lar da terceira idade”.
Como o tempo nunca pára, o próximo trabalho de Leonor Seabra terá o título de Historial Demography of Macau and Luso-Asian Population. Com o apoio da UM, deverá estar pronto dentro de três anos e estudará as vivências das mulheres asiáticas que vieram para a Macau, nomeadamente de Goa, Timor e Malaca.