Texto Catarina Domingues
Giorgio Sinedino traz à conversa um artigo que acabou de ler no Wall Street Journal e que abordava a oferta curricular de uma universidade norte-americana. Isto porque falávamos da leitura de obras clássicas, que Sinedino lamenta estarem cada vez menos presentes no ensino superior. “Uma pessoa que hoje em dia se interesse pelos clássicos, por idiomas antigos e pela cultura desses idiomas, está um pouco fadada a viver num porão”, comenta.
Ora, os clássicos chineses são o caminho que este brasileiro de 40 anos, natural de Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte, escolheu seguir.
Encontro-o num café, centro de Macau. Sinedino está ao computador, em cima da mesa uma obra do filósofo chinês Zhuang Zi, cuja versão portuguesa está neste momento a preparar. No currículo tem ainda outras traduções: o Dao De Jing, colectânea de provérbios chineses atribuída a Laozi, e Os Analectos, aforismos de Confúcio e outros mestres confucianos.
O trabalho de passar estes clássicos da língua chinesa para o português não foi fácil. O equilíbrio, refere, encontrou no estudo da própria cultura chinesa, que “convida o indivíduo a encontrar um equilíbrio da vida entre as exigências da sociedade e as exigências do crescimento psicológico, espiritual, intelectual”. Confúcio, diz o sinólogo, é “um grande porta-voz” dessa filosofia.
Mas já lá vamos aos Analectos. Sobre a língua chinesa: “É um projecto de vida”, tal como são todas as outras línguas que estuda, o japonês, o latim e o grego, ou mesmo o sânscrito que ainda quer aprender. A China: Macau, onde reside e trabalha, não foi a primeira paragem deste brasileiro no país. Antes disso passou ainda por Pequim, onde completou o mestrado em Filosofia Chinesa e trabalhou na embaixada brasileira. “Uma experiência de imersão absoluta”, lembra agora. Sinedino estudava dia e noite, só falava mandarim, atingiu um nível avançado em cerca de três anos. Pouco mais saberemos sobre a vida do autor, que não gosta de falar de si.
Os Analectos
“O Mestre disse: ‘Não se entristeça com o fato de os outros não reconhecerem você. Preocupe-se, sim, em não poder reconhecer as pessoas’”. Esta é uma das passagens d’Os Analectos, traduzida para o português do Brasil por Giorgio Sinedino, e que faz parte do primeiro capítulo do primeiro rolo da obra. Num comentário que se lê a seguir, o tradutor explica a citação: “(…) É razoável sucumbir à tentação de se ver uma pessoa injustiçada, possuidora de talento e valores que a sociedade como um todo não reconhece. Daí a advertência do Mestre. Aquele que consegue reconhecer a grandeza dos outros, reconhece suas próprias limitações. Sabendo-se imperfeito, será capaz de aceitar que não sabe necessariamente o que é certo e errado”.
Os Analectos, uma espécie de Bíblia chinesa, é um dos poucos registos existentes sobre os ensinamentos de Confúcio. Trata-se de uma selecção de declarações feitas por grandes mestres de três gerações confucianas, incluindo o próprio Confúcio, e compiladas por pessoas que mantiveram um vínculo aos ensinamentos originais do mestre chinês.
Com 20 capítulos, a obra é geralmente lida pelos chineses de forma aleatória e permite conhecer e entender temas relacionados com a cultura chinesa, como a tradição, a importância do estudo, da autoridade, a questão da hierarquia e dos valores familiares. “A cultura chinesa orbita em torno desses textos”, salienta Sinedino, referindo que uma das suas maiores influências é sentida na forma como a própria sociedade se organiza. “O confucionismo funciona em dois níveis: num plano de erudição, busca do conhecimento, leituras dos textos clássicos e, num outro plano, ele organiza a sociedade. No que diz respeito aos valores e à forma de tratar problemas, em termos de visão de mundo, o confucionismo obviamente aí nunca deixou de ter uma certa influência.”
Ao longo dos tempos, porém, o legado confuciano contou com adeptos, mas também forte oposição. Após as Guerras do Ópio, contextualiza o tradutor, “a China iniciou um debate muito importante sobre a modernização do país e um grupo, uma parte dos intelectuais, afirmou que o legado confuciano era nocivo à modernização”.
Processo de tradução
Esta versão d’Os Analectos, lançada em 2012 pela editora da Universidade Estadual Paulista (UNESP), tem 608 páginas e é a primeira tradução directa da obra para o português. Para levar a cabo este trabalho, Giorgio Sinedino consultou um “grupo bastante reduzido” de versões chinesas comentadas d’Os Analectos. “O mais importante é o comentário de Zhu Xi, um dos grandes pensadores chineses, talvez seja a segunda pessoa mais influente depois de Confúcio”, diz.
Na tradução para o português, Sinedino foi acrescentando uma série de informações, que aparecem no texto entre parênteses rectos. “A língua chinesa arcaica é extremamente subtil e dúbia e é tolerada a supressão de uma série de termos que seria impensável em português.”
As dificuldades de tradução foram de vários níveis, continua o especialista. Resume assim: “Aquele livro em vez de suor tem sangue”. Além da gestão das diferenças sintácticas entre idiomas, Sinedino procurou imergir num outro tempo. “Você não sabe nada, você está chegando 2500 anos atrasado, então tem de muito humildemente dar a mão a um desses grandes comentaristas. (….) Essa é uma outra dificuldade: a relação de confiança – mais que confiança, é um tipo de confidência – que você mantém com essas pessoas totalmente estranhas, de um mundo que não existe mais, que você não consegue quanto mais compreender, aceitar nem se fala.”
Sinedino realça que, para produzir um texto equilibrado, foi necessário deixar de lado emoções, valores, formas de pensar. “Tive que represar as emoções e, muitas vezes, em respeito à cultura, tive de me abster de julgar, que é uma coisa muito difícil para qualquer pessoa.”