Manuel Vicente em discurso directo

A ideia de fazer a biografia de Manuel Vicente foi uma sugestão de um ex-aluno do arquitecto e amigo da escritora Raquel Ochoa. Objectivo: revelar o homem que existe dentro do arquitecto. A autora portuguesa aceitou o desafio de passar para o papel a vida de um homem "fascinante" e "com uma voz muito grande", embora soubesse desde logo que não seria fácil "isolá-lo da arquitectura, a sua língua-mãe".

 

Texto Catarina Domingues | Foto Gonçalo Lobo Pinheiro

 

“Fiquei maravilhada, mas apercebi-me rapidamente que seria uma biografia complicadíssima de escrever, pelo seu carácter dispersante e porque era uma vida nada linear”, recorda a autora, que marcou presença no Festival Literário de Macau, onde lançou A desmontagem do desconhecido. “Manuel Vicente tinha este vício de desmontar as coisas e de as explicar na sua visão muito própria”, refere a biógrafa.

Manuel Vicente nasceu em 1934 e trabalhou em Lisboa, Funchal, Goa e Macau. Era um homem do mundo, um viajante, diz Ochoa. “Tinha uma interpretação do mundo já do alto dos seus 70 e muitos anos e era uma visão que a mim me interessava, tínhamos esse ponto de contacto”, revela.

Foi em Macau, onde viveu e trabalhou mais de 30 anos, que Manuel Vicente desenvolveu grande parte da sua obra. A demolição do bairro social do Fai Chi Kei, projectado pelo arquitecto em 1977 e premiado pela organização de arquitectura ARCASIA, é um dos episódios abordados na obra. “A reacção dele foi exímia”, recorda a autora, que recua a um outro episódio passado muitos anos antes em Macau, quando um dos seus projectos foi alterado. “Referiu que a tensão arterial voou para níveis de onde nunca mais saiu. E ele disse assim: ‘Nessa altura entendi que as minhas obras eram as minhas obras e eu era eu e, hoje em dia, perante a notícia do Fai Chi Kei, não me envolvo emocionalmente com isso, estou triste, gostava que não acontecesse, mas também não contem comigo para fazer qualquer tipo de oposição à decisão’”.

Com a morte do arquitecto, em 2013, Raquel Ochoa, que estava a meio do projecto, acabou por optar por um ensaio biográfico em vez de uma biografia, recorrendo ao discurso directo como forma de “ressuscitar a voz” de um homem que deixou saudades. “Temos saudades daquela gargalhada, da maneira como ele conseguia orientar ou destruir uma conversa, tentei ao máximo que essa personalidade vibrante aparecesse em discurso directo.”