Texto Nicole Kuong | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro
É difícil imaginar Macau como um lugar onde as ruas estão a abarrotar de pessoas à procura de abrigo, roupa, alimento e cuidados de saúde. No entanto, foi exactamente isso que aconteceu na primeira metade do século XX, com particular incidência durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa e a Segunda Guerra Mundial. Apesar de Macau não ter tido envolvimento directo nos conflitos, um grande número de refugiados acorreu à região em busca de segurança. A população saltou de 160 mil habitantes em meados da década de 1920, para 500 mil em 1943. Foi um momento devastador, com milhares de pessoas a lutar pela sobrevivência, mas ainda assim gratas por terem chegado a um local onde puderam encontrar refúgio. E apoio, nomeadamente o que foi prestado de forma incansável pelas associações de solidariedade da cidade.
Lugar de gente boa
Os registos de acções de beneficência em Macau remontam ao século XVI. Durante a administração portuguesa, em 1568, o bispo Belchior Carneiro fundou a Santa Casa da Misericórdia da cidade. A sua assistência médica e social beneficia os mais desfavorecidos desde então, mas sempre sentiu dificuldades em chegar à comunidade chinesa, devido às barreiras linguísticas e religiosas. A mudança só aconteceu no século XIX, quando nascem duas entidades de base chinesa para apoiar quem mais precisa: a Associação de Beneficência Tung Sin Tong (ABTST) e a Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu.
A ABTST é hoje uma das mais activas entidades solidárias de Macau, possuindo uma história antiga, que se cruza com a da cidade. A poucos passos da famosa Casa de Penhores Tak Seng On, no cruzamento da Avenida de Almeida Ribeiro com a Rua de Camilo Pessanha, fica o complexo de edifícios Tung Sin Tong. É composto por uma clínica, a funcionar no edifício verde claro de estilo colonial que domina o espaço, no lado oposto da farmácia chinesa Tung Sin Tong e da escola primária com o mesmo nome.
A ABTST foi criada em 1892, inspirada pelo espírito de entreajuda da classe mais pobre da comunidade chinesa local. Entre os seus 407 fundadores destacam-se os abastados comerciantes Lou Kau, Ho Lin Vong e Cheung Ging Tong. A primeira sede era no Largo do Senado, ao lado da clínica de Sun Yat-Sen, tendo mais tarde sido mudada para a Rua da Caldeira. Em 1924 estabeleceu-se finalmente no local onde está hoje, crescendo até à dimensão actual. “O nosso princípio central – ‘Servirmos o mundo unidos e com todo o coração, para todos recebermos com benevolência’ – nunca mudou”, realça Chui Sai Peng, vice-presidente.
A ABTST tem conseguido cumprir o seu lema. Ao longo de já mais de 120 anos, assumiu a responsabilidade de ajudar pobres, doentes e aqueles que perderam os entes queridos. E o seu desenvolvimento enquanto associação acompanhou sempre as mudanças sociais de Macau. “Fomos atendendo às necessidades que surgiram, sabendo sempre ajustar-nos às mais específicas, que a comunidade de Macau tem em determinadas alturas.” A acção positiva foi aplaudida desde cedo, pois já em 1893, apenas um ano depois da fundação da ABTST, o jornal Hao Jing Cong Bao dava eco da satisfação dos habitantes de Macau em relação ao trabalho desenvolvido. “Uma associação como a Tung Sin Tong actua como uma ponte de comunicação entre a população e o Governo. Partilha responsabilidades sociais e permite que o Governo forme relações mais estreitas com chineses de diferentes origens”, referia então jornal.
Apoio em várias áreas
O primeiro serviço posto em prática pela associação foi o apoio médico, oferecendo consultas e medicamentos de forma gratuita. Mais tarde disponibilizou outros serviços também sem nada cobrar aos utentes: obstetrícia, funerais e escolaridade. Durante as décadas de 1930 e 1940, especialmente na época da Segunda Guerra Sino-japonesa, ampliou a capacidade de ensino a uma escola primária, em 1937, e passou a aceitar estudantes do sexo feminino. Foi também nesta época que angariou fundos para distribuir sopa de arroz diariamente, tendo o número de refeições atingido um pico de 8000 por dia. Este apoio estendeu-se por vários anos, tendo sido precioso durante a grande fome de 1942, que fez 16 mil vítimas em Macau. Aliás, sempre que houve catástrofes a atingir a cidade, a ABTST esteve presente para ajudar, como por exemplo no grande incêndio na Ilha Verde, em 1950. Com a industrialização na década de 1970, muitas mulheres começaram a trabalhar fora de casa, pelo que a associação, atenta ao esforço que lhes era exigido, abriu a sua primeira creche em 1976.
A recolha de fundos anual da ABTST, com os seus membros a virem para a rua e, em conjunto, pedirem donativos às lojas, é uma tradição que a actual direcção quis manter. “Lembro-me bem do nosso anterior presidente, já com 90 anos e com dificuldades para caminhar, insistir em liderar-nos pela rua”, recorda Chui Sai Peng, que é filho de Chui Tak Kei, o ex-presidente da associação. “É um exemplo que mostra bem a dedicação dos nossos membros.”
Hoje, a ABTST mantém as suas áreas de influência na saúde e no ensino, mas vai além disso, nomeadamente na preservação da história e no apoio generalizado a quem quer que precise. Está focada em particular nas consequências do envelhecimento da população e na cada vez mais necessária assistência à infância. “Estamos a planear mais um centro de dia para idosos, na Rua da Alegria, assim como queremos realizar ajustes nos nossos estabelecimentos de ensino, para haver uma adaptação aos novos métodos educacionais. No futuro, queremos identificar e prestar apoio aos grupos de pessoas em risco de serem marginalizadas pela sociedade.”
Chegar aos mais novos
A educação sempre foi uma prioridade para a ABTST, lado a lado com os valores éticos. Confúcio é a referência, com ênfase nos conceitos “cultivar” (yeung) e “ensinar” (gaau). Logo após a sua fundação e nos primeiros anos do século XX, a associação organizou palestras públicas louvando os valores confucianos de harmonia e solidariedade. Na época, os membros da ABTST sentiram que os valores éticos estavam a decair na região, em particular pelo crescimento do jogo e pelas tensões latentes com o elevado número de refugiados que chegava a Macau.
Agora, especialmente tendo em conta a grande prosperidade ocorrida nas últimas duas décadas, faz sentido perguntar se as novas gerações de Macau compreendem a importância da ABTST para lá do seu valor histórico. “Estamos cientes dessa questão”, confirma Chui Sai Peng. “Desde 2006 que temos um programa escolar específico para promover os valores básicos da nossa associação aos mais novos. Todos os anos fazemos um seminário de 40 minutos em diferentes escolas primárias e secundárias. Queremos que as crianças compreendam a necessidade de ter um coração generoso e uma forma cívica de estar na vida, o que é ainda mais importante numa cidade densamente povoada como Macau.” A ABTST também aceita jovens voluntários dispostos a participar nas suas actividades, para assim irem ainda mais fundo na apreensão de uma cultura de solidariedade.
Sala de exposições
Com uma história tão rica, fazia sentido que a ABTST tivesse um lugar digno para mostrar o que tem sido o seu papel na sociedade de Macau. O objectivo foi concretizado em 2012, nas celebrações do 120.º aniversário da associação, com a inauguração da Sala de Exposição do Arquivo Histórico da Tung Sin Tong. O espaço tem estado aberto ao público desde então, ficando situado no edifício da clínica, no complexo da associação (o local escolhido para o arquivo histórico era anteriormente a sala de espera da clínica de medicina chinesa).
A sala de exposições utiliza tecnologia multimédia integrada na arquitectura original, para apresentar cinco ecrãs touch screen, onde os visitantes podem conhecer a história da associação de forma interactiva. “Reformulámos todo o edifício para que incorporasse a sala de exposições, porque queríamos mostrar a excelente arquitectura original e as memórias colectivas que aqui estão enraizadas”, conta Chui Sai Peng, falando como vice-presidente da associação, mas também com a voz de quem é engenheiro civil. “Ao ver elementos arquitectónicos do edifício como as colunas de gesso de Xangai em estilo italiano, as vigas de madeira e os azulejos hexagonais com padrão chinês (um símbolo de boa sorte), o visitante é levado até 1920.”
Na sala pode ser também visto um conjunto de fotos em molduras de porcelana, com todos os grandes doadores de fundos à associação, começando em 1924, e um altar dedicado a Confúcio. Para os visitantes que quiserem ter uma visão mais abrangente da história da ABTST, sem demorar muito tempo, há a possibilidade de assistirem a um documentário animado, intitulado A vida é como uma canção. Uma história tocante, à boa maneira tradicional chinesa, com lágrimas de emoção garantidas.
Relação de confiança
Graças ao contributo dos seus membros, a ABTST tornou-se parte indispensável da Macau dos dias de hoje. Chui Tak Kei (1912-2007), figura da cidade conhecida pela sua filantropia, foi eleito presidente da associação em 1953 e esteve à frente do cargo durante mais de 50 anos. Entre inúmeros avanços que trouxe à instituição de solidariedade, para benefício de Macau, conta-se a eliminação da quota de pacientes atendidos por dia, a expansão da creche e o desenvolvimento dos serviços escolares. Acima de tudo, fez com que a ABTST estivesse sempre pronta a responder às necessidades da sociedade local.
A intervenção solidária de Chui Tak Kei mantém-se hoje bem viva através do seu legado na associação, mas também nos seus familiares. O filho mais velho, Chui Sai Cheong, foi director do liceu Tung Sin Tong; o mais novo, Chui Sai Peng, é o actual vice-presidente da ABTST; e o sobrinho, o Chefe do Executivo de Macau, Chui Sai On, esteve à frente do departamento médico da associação.
Chui Sai Peng recorda que na década de 1990, quando Macau atravessou uma recessão económica, o número de utentes dos serviços da ABTST passou de 700 para 1000 por dia. “A situação era preocupante, receámos não ter recursos suficientes. Tentámos arranjar soluções, mas o nosso presidente disse-nos para pormos um aviso na porta de entrada a dizer ‘Nós, na Tung Sin Tong, só ajudamos as pessoas necessitadas’.” A eficácia do “plano” era duvidosa, mas a direcção ficou estupefacta, porque o número de utentes voltou logo ao normal. Chui diz que se apercebeu então de como a comunidade de Macau era justa, pois mostrou que não iria aproveitar-se dos que realmente necessitam de apoio. “Acredito que quem nos procura é porque precisa mesmo de ajuda. A nossa relação é baseada na confiança, não apenas num contexto de dar e receber.”
A ABTST garante que formou laços de proximidade não só com a comunidade, como também com os seus colaboradores. O médico Kung Shu Bing, que está na clínica da associação desde 1973, afirma-se um orgulhoso exemplo disso. “Trabalhar aqui tem um grande significado para mim. Esta é uma associação que não apenas presta serviços gratuitos, como também assume responsabilidades perante a sociedade. Sinto-me honrado por fazer parte dela.”