A obra poética de Camilo Pessanha transcendeu os muros de Macau, elevou a pequena cidade à universalidade, consagrou-a em Clepsidra. Para Pessanha tudo era frágil e efémero. 150 anos após o seu nascimento, será também assim a memória que a cidade tem deste homem?
Texto Catarina Domingues | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro
Macau, Travessa da Misericórdia. Quando se entra em casa de Ana Maria Jorge é impossível não procurar Camilo. Nos objectos, nas paredes tom bege, cantos da pequena sala, móveis repletos de luz natural. Procura-se qualquer coisa que nos leve ao poeta, no cheiro até. Mas nada, só uma brisa que anuncia a Primavera, aroma do café que Ana Maria serve pela tarde e que vem acompanhado de bolo de chocolate, receita de um amigo da família. “Foi o meu amigo José Cabral que fez, sabe quem é?”, pergunta o filho, Victor Jorge. “Ah, sim, Cabral”, assente a mãe.
Nesta casa, Camilo Pessanha, bisavô de Ana Maria, trisavô de Victor Jorge, não tem lugar nas molduras, que revelam outros homens e mulheres bem vestidos, penteados, cabelos negros, olhos de quem nasceu com Portugal e China no sangue. Ana Maria teve em tempos fotografias do bisavô – numa aparecia de bengala ao pé do mar ao lado de Arminho, o cão de estimação – mas jornalistas que por cá passaram, levaram-nas, não devolveram. Ana Maria tem 84 anos, não se lembra quem eram.
Camilo Pessanha morreu há 91 anos, foi ele que fez dos Pessanha uma família macaense. Da origem do poeta e da família de Coimbra, onde nasceu, Ana Maria nada sabe. Conta que há muitos anos, 20 talvez, a mãe recebeu em casa “um tenente de óculos e muito parecido com o Pessanha”. “Quem era?”, pergunta agora o filho, como se estivesse a ouvir a história pela primeira vez. “Não sei, dizia ter o apelido Pessanha, depois foi embora”, responde.
Ana Maria já pouco sai de casa, movimenta-se com a ajuda de uma bengala de quatro pontas, mas arranjou-se para nos receber. As unhas, tons rosa, combinam com a camisola, destoam das fotografias a preto e branco. É a familiar com vida mais próxima do poeta, pelo menos em Macau, depois vêm os trinetos: dos 11, dois morreram, cinco vivem cá, quatro estão fora, e representam, mesmo sem saberem, a universalidade do trisavô. “Noni e Zé estão na Figueira da Foz; o António na América; a Maria no Canadá”, diz. E quando volta ao bisavô, estica as vogais e as palavras para falar dele, assim acentua ideias. “Era um homem muuuuito forte, muuuuuito inteligente”, nota. “Forte no estudo”, acrescenta.
“A minha mãe é que contou a história de Camilo Pessanha”, vai referir mais do que uma vez. A mãe, Maria do Espírito Santo Manhão, neta do poeta, morreu em 1996, 70 anos depois do avô Camilo. E Ana Maria volta sempre à mãe, porque só por ela sabe quem foi o bisavô. A mãe, conta, também voltou em espírito quando esteve internada com uma “doença de nervos”. Aqui Victor Jorge volta à conversa: “Isso é efeito do medicamento”. E logo se vira para mim: “A minha mãe viu espíritos, a minha avó também, até a minha mulher, mas eu nunca vi espíritos”, depois bate com a mão na mesa. “Não diga assim tão forte”, avisa Ana Maria, para quem este é um assunto sério. É também por isso que enquanto estiver viva, a trasladação do corpo do bisavô Camilo para Portugal é um assunto encerrado. “Sou de Macau, tenho um pouco o pensamento chinês, não pode levantar o cadáver, não se pode mexer, pelo menos até eu morrer.”
Descendentes em Macau
Foi por volta dos 30 anos que Victor Jorge, agora com 67, soube quem era o trisavô. “Estava a trabalhar e um colega pegou numa nota de 100 patacas que tinha a cara de Camilo Pessanha e disse [a outras pessoas]: este é o trisavô dele. Eu fiquei…[novamente sem palavras]”. Victor admite sentir orgulho, “mas não aquele orgulho de ter a cabeça no alto”, vinca o macaense.
Poeta, professor, advogado, juiz, Camilo Pessanha pertencia à maçonaria, era viciado em ópio. Victor Jorge pouco mais tem a acrescentar à vida do trisavô, de quem diz guardar duas biografias, uma edição de Clepsidra e o mesmo gosto pela colecção de antiguidades. “E por que razão o apelido Pessanha se perdeu na vossa família?”, pergunto. É Ana Maria que vai explicar, conserva uma das mãos no topo da bengala, recua até ao avô João, filho de Camilo.
João Manuel Pessanha nasceu em 1896, fruto da relação do pai com Lei Ngoi Long, concubina que comprou a um corrector – o poeta viria a relacionar-se até ao fim da vida com a filha desta, conhecida como Águia de Prata. O filho de Camilo é criado por uma família chinesa, mantém com o pai uma ligação conflituosa. Antes de se casar, João relaciona-se com Francisca do Rosário do Espírito Santo e é desse encontro que nasce Maria do Espírito Santo Manhão, mãe de Ana Maria. “Sabe como chamávamos a isso? Filho atrás da porta”, conta Ana Maria.
Numa entrevista que deu em 1990 ao investigador Daniel Pires, Maria do Espírito Santo conta que quando nasceu, o pai, João Pessanha, capitão da marinha mercante, fugiu para Cantão. “Tinha receio que o meu avô, quando voltasse de licença [estava em Portugal por motivos de saúde], lhe desse uma carga de porrada. A minha mãe era menor.”
Maria do Espírito Santo conheceu o pai só depois de se casar, mas conviveu com o avô Camilo até aos 11 anos. “Ia todos os meses vê-lo e recebia uma mensalidade de 20 patacas. Era muito dinheiro na altura”, referiu ainda a Daniel Pires. Também Ana Maria fala hoje do tempo que passou com João Pessanha. O avô vivia na Rua de São Domingos, centro da cidade, “numa casa muuuito graaande”, lembra-se que fumava ópio, que tinha sido preso pelos japoneses, lembra-se também de João abraçado a um pepino grande – “porque era fresco e ele estava doente”. Nessa casa vivia ainda a mulher Lok Ku, o filho dos dois, Camilo João de Almeida Pessanha, e a criada. Aninha, como era chamada pelo avô, com quem falava meio português, meio cantonês, trepava à goiabeira do quintal, brincava à volta do poço, andava entre as “louças” que João Pessanha vendia, ditava os preços a quem entrava.
Poeta fora das escolas
Alexandra Domingues abraça dois volumes antigos, são livros de sempre e vêm assinalados com marcadores: o primeiro e único número da Centauro, revista literária lançada em 1916, representativa do movimento modernista português com 15 poemas da autoria de Camilo Pessanha; e a Clepsidra, obra única do poeta, publicada em 1920 por Ana de Castro Osório, escritora e proprietária da Editora Lusitânia. A professora da Escola Portuguesa de Macau diz-se uma “mera transmissora” do que os poetas têm para dar, mas quem a ouve falar, reconhece veneração, dedicação ao poeta, expoente máximo do simbolismo em Portugal. Alexandra recua precisamente um século, a outra Era poética, a uma novidade metafórica, rítmica, abre a Clepsidra – “aquilo que ele oferece neste caderninho é retumbante”, afirma. “O simbolismo oferece à poesia aquilo que é uma preocupação humana de sempre, a transitoriedade, e eu penso que Camilo é mestre em chamar-nos à atenção para esse factor”, continua. “Nós não temos nada, o tempo é nada, o tempo encarrega-se de nos traduzir em pó.”
Macau, diz a professora, está em Clepsidra, está aqui no poema “Viola Chinesa”, que o poeta dedicou ao amigo Wenceslau de Moraes. Alexandra lê, interrompe para falar dos versos e com a mão direita segura a obra, a esquerda acompanha as imagens que se vêem, ouvem, sentem: a abulia do ser, o adormecimento, as ruas de Macau, a captação da viola, dos instrumentos, das arcadas. Se por um lado, esta cidade “vem acrescentar matéria a um homem de sensações”, por outro, “ele sente Macau [como] uma província longínqua de Portugal, com um nível cultural muito aquém das suas expectativas”, explica a docente. E não é difícil imaginá-la numa sala de aulas a falar de Camilo Pessanha. Agora, acontece com menos frequência, desde que o poeta deixou de integrar o currículo do ensino português. “É uma das grandes mágoas que tenho”, lamenta.
Alexandra Domingues admite que, ainda assim, faz questão de levar Pessanha até à sala de aula, de fazer a relação do poeta com os jovens de Orpheu. Todos os anos, a um de Março, dia em que se assinala a morte do autor, leva também os alunos a Pessanha, numa “singela homenagem em nome da escola” no cemitério S. Miguel Arcanjo, onde está sepultado. Já o faz há cerca de 25 anos, umas vezes sozinha, outras na companhia dos alunos. “Declamamos alguns poemas, eu falo um pouco, no fundo é uma aula, não é nada lúgubre, nada funéreo.” A professora admite que esta é uma forma de “desfiar o novelo”, de despertar a curiosidade dos mais jovens para Pessanha. De outra forma, dificilmente se relacionariam com o poeta que, como diz Alexandra, ensinou Fernando Pessoa “que para falar do coração, não é preciso ter o coração nas mãos”.
O paradigma cívico
Mas foi apenas há algumas décadas que se voltou a Camilo Pessanha. O investigador Daniel Pires, que trabalha há vários anos a obra e a biografia do autor, admite que em termos de popularidade, Pessanha esteve esquecido desde que morreu até finais dos anos 1980. Da parte de Macau pouco se fez, assume. Basta relembrar que, 40 anos após a morte de Pessanha, no auge da Revolução Cultural, em 1966, quando ocorreram tumultos em Macau – conhecidos por Movimento 1-2-3 – o edifício do Leal Senado foi invadido, a mobília destruída e numa secretária antiga foi encontrado o Caderno Poético de Camilo Pessanha, cujo rasto se perdera há vários anos. O caderno, constituído por poemas manuscritos, impressos com correcções à mão do escritor, tinha sido a base do poeta para Clepsidra. “Isso é uma coisa impressionante, é incrível e era um caderno poético que se sabia que existia, acho que Luís Gonzaga Gomes saberia de certeza, mas então isso estava ali, ninguém viu durante 40 anos?”, interroga Daniel Pires.
O investigador refere que, “em termos de comunidade portuguesa, Camilo Pessanha era muito incómodo, não era uma pessoa que as pessoas fizessem força para recordar, a parte conservadora da comunidade não gostava dele, porque estava fora daqueles parâmetros”. Também o prefácio que Pessanha preparou para a obra do médico José António Filipe de Morais Palha, Esboço Crítico da Civilização Chinesa, foi mal recebido pelo lado chinês. “Há na realidade uma parte da comunidade chinesa que vê aquilo como um ataque à China, o que não é, é um ataque ao regime que existia antes da implantação da república”, considera o estudioso.
Daniel Pires, que trabalhou em Macau entre 1987 e 1990, é autor de várias obras sobre o poeta. Mais recentemente, lançou Correspondência, dedicatórias e outros textos obra que reúne uma cronologia de 67 páginas, 19 cartas parcial ou integralmente inéditas do poeta e outras 59 difundidas por livros ou jornais de difícil acesso. No livro estão disponíveis cartas que escreveu a Ana de Castro Osório, a quem se confessou apaixonado, ou ao pai Francisco António de Almeida Pessanha. O investigador admite que em breve irá acrescentar novos dados sobre a vida escolar de Pessanha.
“Onde há uma grande lacuna é relativamente à família de Macau”, comenta ainda. E esta lacuna poderá, segundo o investigador, ser resultado da relação entre Camilo Pessanha e a mãe de João Manuel Pessanha. “Nasce um pouco torta, era o que os portugueses faziam na altura, compravam concubinas, relacionavam-se assim porque tinham uma posição de destaque. Fez aquilo que os outros também fizeram, não foi pior nem melhor, acabavam por encontrar uma pessoa, mas muito à revelia dos afectos.”
Na opinião deste investigador, tem sido feito pouco na divulgação do “paradigma cívico” que foi Pessanha. Além de poeta, ensaísta, sinólogo, foi também juiz, advogado, desenvolveu um trabalho importante no domínio dos direitos humanos. Era uma pessoa “muito recta e interventiva”. Durante a investigação, Daniel Pires encontrou no Arquivo Histórico de Macau aquela que provavelmente será a maior prova disso mesmo: uma acta secreta do Governo de Macau, redigida em 1904, em que Camilo Pessanha se mostra contra a extradição de um alto dignitário chinês, Lam-Kua-Si, perseguido pelo vice-rei de Cantão. Todas as personalidades portuguesas convocadas a aconselhar o governador se colocaram a favor da extradição. Pessanha foi excepção.