Demorou anos a ser preparado, mas o Código Fiscal é agora uma realidade, entrando plenamente em vigor no início do próximo ano. Para além de estabelecer normas sistemáticas e claras relativamente às leis avulsas vigentes, o novo Código vem implementar um regime fiscal moderno adequado aos padrões tributários internacionais e ao desenvolvimento económico a longo prazo da RAEM, diz o Governo
Texto Marta Melo
“Imprescindível.” Foi desta forma que o Governo da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) classificou, aquando da apresentação, a proposta de lei de aprovação do Código Fiscal. Era Novembro de 2021 e o Código estava previsto designar-se, na versão portuguesa, de Código Tributário. Passados mais de três anos de trabalhos no seio da Assembleia Legislativa, a votação favorável do diploma na especialidade deu-se em Dezembro passado. Embora algumas matérias contempladas na lei já tenham entrado em vigor, as grandes alterações só serão sentidas a partir do início do próximo ano.
Com o Código Fiscal, o Governo “vem proceder a uma reforma profunda da legislação fiscal vigente” e formular um conjunto de normas “uniformizado e coerente que abrange toda a relação jurídica fiscal”, considera a Direcção dos Serviços de Finanças (DSF). É estabelecido “um regime fiscal moderno, correspondente aos padrões tributários internacionais, para fazer face ao desenvolvimento económico da RAEM a longo prazo”, acrescenta organismo.
A produção do Código Fiscal visou unificar normas da legislação fiscal anteriormente avulsas.Segundo a DSF, são estipulados “os direitos e deveres das relações jurídicas fiscais, os procedimentos e o processo judicial fiscal e, ainda, os princípios e os trâmites a cumprir no processo de execução fiscal”. Tudo para, é acrescentado, “assegurar as receitas fiscais da RAEM e defender os direitos e interesses legítimos dos contribuintes”.
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A iniciativa legislativa teve como ojectivo modernizar um regime, com a sua génese na década de 1970, cujas leis tributárias tinham sido elaboradas, sob a forma de legislação avulsa, consoante as necessidades tributárias, como informa a nota justificativa da respectiva proposta de lei. Em resultado, não havia normas gerais que abrangessem toda a relação jurídica tributária, “com um conceito, princípios e procedimentos de tributação uniformizados”, o que já não correspondia às necessidades do desenvolvimento socioeconómico de Macau, de acordo com as autoridades locais.
O diploma surge dividido em duas partes: a lei que aprova o Código Fiscal, que modifica o regime dos impostos actualmente em vigor, disciplinados por leis avulsas; e o Código Fiscal propriamente dito, com um total de 312 artigos.
Maior transparência
Para o economista António Félix Pontes, a importância do Código Fiscal para Macau deriva da unificação de normas e da incorporação de padrões internacionais ligados à área da fiscalidade. Segundo diz, a sua aprovação foi uma “excelente” notícia. “O Código Fiscal passou a constituir o pilar nuclear do regime fiscal da RAEM”, afirma.
De acordo com a DSF, o Código “vem proceder a importantes alterações às leis fiscais vigentes”, entre elas a clarificação do princípio da territorialidade no âmbito fiscal e a fixação do prazo máximo de 15 anos para créditos fiscais. Ao mesmo tempo, “vem introduzir uma série de disposições novas”, como a promoção do uso de plataformas fiscais electrónicas, a introdução do pagamento de juros indemnizatórios aos contribuintes ou a designação de um representante fiscal para contribuintes que não se encontrem em Macau.

O advogado Nuno Sardinha da Mata refere que o Código Fiscal é “um passo à frente” para a RAEM, ao codificar o direito fiscal local de forma sistematizada, algo que ainda não tinha sido feito. “É a modernização do direito e da forma de actuar da administração fiscal”, diz. “É a criação de um quadro de regras dentro das quais se movem a administração fiscal e os contribuintes na sua relação com a mesma”, acrescenta. Em resultado, acredita o advogado, vai ser gerado um clima de “maior transparência” e de facilidade no contacto com a máquina fiscal da RAEM.
Essa maior clareza terá impacto positivo, considera o jurista João Janela. Com a nova legislação, passa a ser mais fácil explicar a entidades de jurisdições terceiras o regime vigente em Macau. Para o especialista, “nada é mais claro” do que uma norma traduzível para outra língua. “Traz [impacto], de certeza, pelo menos, na confiança dos agentes económicos.”
Nuno Sardinha da Mata concorda que o Código Fiscal é importante para a promoção de Macau como um destino de investimento, “no sentido de apresentar um quadro legislativo e regulatório, em termos fiscais, que se aproxima das jurisdições mais modernas”.
Modernizar para melhorar
O Código Fiscal vem proceder a uma consolidação e modernização da legislação sobre o procedimento e processo judicial fiscal. Uma matéria que estava incompleta e desactualizada, de acordo com alguns especialistas, e que obrigava a usar como referência o Código das Execuções Fiscais de Portugal, da década de 1950. Neste campo, a nova legislação vem determinar o processo de execução fiscal, bem como os meios de execução da lei a recorrer para satisfazer tributos e outros créditos, incluindo a realização de penhoras dos imóveis dos devedores à RAEM.
Um dos aspectos destacados por Nuno Sardinha da Mata prende-se com a questão da denominada “reversão”. O advogado observa que o Código Fiscal estabelece agora quem é o responsável pelo pagamento dos impostos, “não só da responsabilidade fiscal do sujeito passivo em si, que é aquele sobre o qual o imposto incide, mas sobretudo dos responsáveis subsidiários”.
Carlos Cid Álvares, presidente da delegação de Macau da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Chinesa (CCILC-Macau), destaca igualmente as alterações no procedimento administrativo fiscal. A administração fiscal, justifica, “passa a saber exactamente as regras que deve seguir nas liquidações e cobranças, ou seja, nas execuções fiscais”. Por outro lado, os contribuintes “passam a saber exactamente a que regras a administração está vinculada e como reagir se entenderem que houve algum desvio”, defende.

De acordo com o Governo, as mudanças contribuem para “fortalecer a confiança da comunidade internacional e dos investidores de todo o mundo no regime tributário” de Macau, “reforçando assim a competitividade e atractividade do ambiente de negócios”, é referido na respectiva nota justificativa da lei de aprovação do Código Fiscal.
O Código desempenha, deste modo, um papel na estratégia de diversificação da economia de Macau, na opinião de Carlos Cid Álvares. “À medida que a economia da RAEM se diversifica, o mesmo acontecerá às suas fontes de rendimento tributário e a administração fiscal necessitará de cobrar taxas e impostos a um número crescente de contribuintes. Esta iniciativa legislativa é, portanto, necessária e benéfica para o caminho que a RAEM tem vindo a percorrer”, conclui.
É ainda introduzido, pelo pacote legislativo, um mecanismo de eliminação da dupla tributação, através de uma alteração ao Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos. Assim, se sobre os rendimentos obtidos noutras jurisdições tiverem sido pagos impostos com natureza idêntica, o valor pode ser utilizado como crédito de imposto em Macau.
Novos conceitos
O Código Fiscal vem clarificar o princípio da territorialidade ao prever que “as normas fiscais aplicam-se aos factos fiscais que ocorram na RAEM, sem prejuízo do disposto nos acordos internacionais ou inter-regionais em matéria fiscal em vigor na RAEM ou de disposição legal em contrário”.
João Janela explica que, até agora, “era absolutamente indiferente onde é que o rendimento era gerado e pago”. Desse ponto de vista, qualquer tipo de rendimento posto à disposição de um residente de Macau podia ser tributado na RAEM. “Era o chamado ‘conceito globalista de tributação’, que já poucas jurisdições têm”, observa.
Outro conceito novo é o de domicílio fiscal, que deve ser comunicado às autoridades fiscais. No caso das pessoas singulares, é o local de residência habitual. Para as pessoas colectivas, trata-se da sua sede ou direcção efectiva. Na falta destas, considera-se o seu “estabelecimento estável” na RAEM – isto é, em termos gerais, “qualquer instalação fixa através da qual seja exercida uma actividade de natureza comercial ou industrial”.
Outra novidade é o conceito de residente fiscal. A norma não existia em Macau. O Código Fiscal, segundo o advogado Nuno Sardinha da Mata, vem agora dizer, à semelhança de outras leis fiscais noutras jurisdições, que quem reunir determinados requisitos é considerado residente fiscal pela administração, e, portanto, “é sujeito a tributação em Macau”. Na sua opinião, o conceito, como definido no Código Fiscal, pretende “englobar o máximo de residentes fiscais possível” e não eliminar ninguém.
No caso das pessoas singulares, são considerados residentes fiscais aqueles que, no ano civil a que respeitam os rendimentos, tenham permanecido na RAEM por um período igual ou superior a 183 dias, seguidos ou interpolados. Quem não cumpra esse requisito, mas que disponha, “a 31 de Dezembro desse ano, de residência em condições que façam supor a intenção de a manter e ocupar como residência habitual”, cai também no âmbito de residente fiscal da RAEM.

Para as pessoas colectivas, a residência fiscal é reconhecida para quem tenha sede ou direcção efectiva na RAEM.
O Código Fiscal prevê ainda a obrigação de nomeação de um representante fiscal, sempre que a ausência dos contribuintes da RAEM seja superior a 183 dias. Tal pode ser dispensado caso se opte por receber as notificações em forma electrónica.
É ainda regulado o pagamento de juros compensatórios quando, por exemplo, ocorram atrasos na liquidação, total ou parcial, do imposto devido. Em sentido inverso, é regulamentado o regime de juros indemnizatórios a pagar pela administração fiscal quando a restituição de imposto não seja feita dentro do prazo.
O não pagamento de impostos dentro do período fixado por lei fica sujeito a juros de mora, a uma taxa geral de 1 por cento ao mês. O Código Fiscal estipula ainda a cobrança de um valor adicional equivalente a 3 por cento do valor da dívida fiscal em caso de não pagamento de imposto no prazo legal.
Exclusão do dever de sigilo
No âmbito do procedimento fiscal, o Código Fiscal prevê a exclusão do dever de sigilo quando a administração solicitar, “de forma devidamente fundamentada”, elementos fiscais. Entre os grupos profissionais a que se aplica a norma contam-se advogados, contabilistas e agentes imobiliários.
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Esta foi uma das questões alvo de especial atenção na análise do diploma por parte dos deputados. O parecer da 3.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa assinala que “o Código Fiscal reforça os deveres de colaboração das entidades privadas com a administração fiscal” e opta “por afastar de forma genérica o regime de sigilo bancário e também vários sigilos profissionais, que actualmente limitam a informação que possa ser exigida”.
O Código Fiscal estabelece ainda normas sobre as notificações fiscais, estipulando que podem ser efectuadas sob registo postal ou em forma electrónica. O tema foi alvo de especial atenção na análise em sede de Comissão da Assembleia Legislativa, lendo-se no respectivo parecer que esta possibilidade “reflecte, em larga medida, os novos impulsos promovidos recentemente no que diz respeito à governação electrónica”.