Os longos anos passados entre tachos e panelas apetrecharam Pedro e Mauro Almeida com as técnicas e a sensibilidade necessárias para não desrespeitar as nuances da gastronomia portuguesa, mas não os prepararam para o desafio que lhes caiu nos braços: o de criar um projecto com características únicas em Macau
Texto Marco Carvalho
Fotografia Oswald Vas
De portas abertas desde 1 de Junho de 2024 num dos cinco edifícios que integram o complexo patrimonial das Casas-Museu da Taipa, o restaurante “Casa Maquista” alia identidade, memória e paladar. O projecto surgiu com a ousada ambição de oferecer exclusivamente especialidades macaenses, num cenário em que o peso da história se faz palpável.
“Há alguns anos, pré-designámos alguns conceitos com os quais gostaríamos, eventualmente, de trabalhar e entre eles estava a gastronomia macaense. Mais tarde, quando surgiu a oportunidade de fazer algo com esta casa, que é uma casa com bastante história, a conclusão a que chegámos é que não fazia sentido abrirmos aqui mais um restaurante português. Fazia muito mais sentido termos um projecto diferente, com cozinha macaense”, assinala Pedro Almeida.
O primeiro bosquejo do projecto pressupunha que os jovens chefs, nascidos em Trás-os Montes, contassem com aconselhamento e assessoria por parte de quem melhor conhece a singularidade da gastronomia macaense. Quando a hipótese caiu por terra, os dois irmãos arregaçaram as mangas. Durante meses desenterraram receitas e procedimentos de livros, compêndios culinários e cadernos manuscritos, compararam medidas e ingredientes e adequaram termos e temperos à linguagem gastronómica contemporânea. O objectivo? Encontrar o paladar que mais se adequasse à memória gustativa de quem reivindica como seu o património gastronómico macaense.
“Começámos pela base e a base na gastronomia macaense é o balichão. Começámos por preparar o balichão e não foi das missões mais difíceis”, sustenta Pedro Almeida. “Nem sempre corre tão bem. O que nos vale, por vezes, é o apoio que nos tem sido dado por algumas pessoas, que nos têm ajudado nas pequenas técnicas e nos pequenos detalhes. Há tempos, tivemos aqui uma pessoa que nos veio ensinar a fazer a massa para a empada de peixe, uma receita em que nos estava a faltar um pequeno pormenor. Muitas vezes são esses pequenos pormenores que fazem a diferença. Não nascemos em Macau, não possuímos o palato e a memória gustativa de quem cresceu com estes pratos e, por vezes, é necessário que alguém nos coloque no caminho certo”, assume o jovem chef transmontano.
Quando essa orientação não existe, pouco mais resta que tentar, falhar, tentar de novo e falhar melhor. Para preparar o menu com que a “Casa Maquista” se deu a conhecer, Mauro Almeida investiu, durante quatro intensos meses, a maior parte do seu tempo no labor, quase arqueológico, de resgatar técnicas e sabores, com o propósito de garantir a fórmula mais adequada e as proporções mais certeiras.
“Quando não estamos na posse de todos os dados, a única abordagem que nos resta é experimentar muitas vezes, tentar muitas vezes. É recolher receitas diferentes e testar o maior número possível. Há certos pratos em que, se pegarmos em 20 livros, vamos encontrar outras tantas receitas diferentes. Não há propriamente um consenso”, sustenta o mais velho dos irmãos Almeida. “Essa é, porventura, a maior fragilidade da gastronomia macaense: por não haver um consenso geral, é muito difícil pegar numa receita e adaptá-la à realidade de um restaurante”, complementa.
Reinventar a tradição
Os desafios, porém, não se ficaram por aí. Com uma natureza demarcadamente doméstica, a gastronomia maquista contempla métodos e práticas nem sempre compatíveis com o modo de operar da indústria da restauração.
“Cabe-nos a nós arranjar forma de providenciar os mesmos sabores, as mesmas texturas, num prato concebido para um restaurante, ainda que respeitando sempre os sabores originais”, acrescenta Pedro Almeida.
A necessária adaptação dos pratos ao conceito e ao cardápio idealizados para a “Casa Maquista” pressupôs a simplificação de processos, o recurso a inovações tecnológicas e uma escolha mais criteriosa dos ingredientes utilizados. Deliberada, a abordagem tem a si inerente a reinvenção e modernização das tradições gastronómicas macaenses, desfecho que Mauro e Pedro Almeida consideram inevitável.

“Muitas vezes temos de entrar por campos mais práticos para alcançar os resultados que consideramos mais satisfatórios. O porco bafassá foi durante décadas feito com lombo de porco, corte que, se calhar, não corresponde à escolha mais feliz. O lombo é uma peça que seca muito rápido. Em termos de textura, em termos de sabor, a carne do cachaço funciona bem melhor”, defende Pedro Almeida.
Ilustre desconhecida
Apostados em demonstrar a viabilidade comercial da gastronomia macaense, os chefs transmontanos – ambos formados na Escola Profissional de Chaves – conceberam um cardápio onde pontificam pesos pesados da cozinha macaense, mas também iguarias que, muito provavelmente, integram pela primeira vez o menu de um restaurante. Ao tacho, à capela, à galinha chau-chau parida ou ao porco bafassá, os irmãos Almeida juntaram pratos menos conhecidos, como o bife panado em bolacha maria, o bacalhau enrolado em couve ou o minchi de peixe.
Em pouco mais de meio ano de funcionamento, o estabelecimento aparenta ter conquistado a confiança da comunidade macaense, por entre reparos e sugestões. “Não foi necessário muito tempo para que começassem a surgir comentários, uns mais construtivos do que outros, por parte da comunidade macaense. Mas em termos gerais tem sido positivo. Temos clientes, macaenses, que aqui vêm três vezes por semana. Isso quer dizer que gostaram”, assume Pedro Almeida.
A sedutora vivenda que acolhe o restaurante foi concessionada ao grupo Portuguese Restaurants & Retail Concepts – que também explora em Macau os restaurantes Albergue 1601, Portucau e Três Sardinhas – por um período de quatro anos. É esse o tempo de que Mauro e Pedro Almeida dispõem para completar uma missão tão ou mais exigente: a de retirar a cozinha macaense da sombra da gastronomia portuguesa.
“A grande maioria dos clientes de fora de Macau que recebemos nos nossos restaurantes pensam que a cozinha macaense e a cozinha portuguesa são uma e a mesma coisa”, esclarece Pedro Almeida. “Do ponto de vista comercial, este desconhecimento coloca-nos em situação de desvantagem. Se um cliente não sabe o que é a gastronomia macaense, não vai pedir num hotel que lhe indiquem um restaurante macaense”, argumenta.