A qualidade do ensino de português em Macau continua a crescer, mas é necessária uma maior aposta na investigação para valorizar ainda mais a língua e expandir a rede de contactos, tanto no Interior da China como noutros pontos do globo, sublinha João Veloso, director do Departamento de Português da Faculdade de Letras da Universidade de Macau (UM)
Texto Nelson Moura
Fotografia Oswald Vas
Está há cerca de dois anos à frente do Departamento de Português da Faculdade de Letras da UM. Qual o balanço que faz e que objectivos estão por concretizar?
Falar de planos é sempre um pouco arriscado, por uma razão que eu gostava de deixar clara desde o início. Eu sei que na China e em Macau existe muito a ideia de que a pessoa que está à frente de um organismo ou de uma instituição é a dona dos planos e eu não posso esconder que senti um pouco isso quando aqui cheguei, mas os planos não são só meus. Os planos de desenvolvimento e os planos de funcionamento diário do departamento são planos decididos a nível da faculdade e a nível da universidade. Fui informado sobre esses planos, obviamente, sendo-me sempre pedido o contributo para a definição dos mesmos.
Cheguei [a Macau] numa altura em que ainda havia quarentena e passei os dez dias de quarentena a escrever um plano para o departamento. Foi um dos primeiros pedidos que me fizeram explicitamente. A principal linha condutora desta acção imediata era contrabalançar a vertente de ensino com a vertente de investigação.
O nosso departamento é muito conhecido e penso que muito reputado enquanto escola avançada de português. Nós formamos alunos que têm, na sua maioria, o chinês como língua materna. Portanto, damos a formação linguística e a comprovação da qualidade dessa formação, o sucesso dessa formação tem a ver com o sucesso em colocações profissionais que esses alunos têm. Mas, depois, há uma parte também de investigação na área da linguística, da literatura, da didáctica e da tradução – que são as quatro componentes principais da investigação aqui, que têm, e esperemos que continuem a ter cada vez mais, alguma visibilidade –, mas que não era feita de forma conectada com as principais universidades onde se faz investigação em português.
Pode-se então assumir que o ensino e a investigação são as prioridades para o departamento?
Essas têm sido as duas vias de actuação principais. Por um lado, reforçar a componente pedagógica do departamento, tentar melhorar o mais possível a qualidade do ensino, que é uma qualidade que me surpreendeu pela positiva quando aqui cheguei.
Por outro lado, no plano da investigação, tornar a nossa investigação mais integrada em redes internacionais e em contactos com universidades. Os contactos que temos com as universidades do Interior da China são muito bons, são muito produtivos, mas, talvez devido à distância e também fruto da situação política internacional, esses contactos são ainda limitados no exterior. Nós temos incentivado o estabelecimento de redes informais de investigação nestas áreas com universidades de Portugal e do Brasil, sobretudo, mas também com algumas universidades da Europa e dos Estados Unidos.
Talvez o resultado mais visível de todos é que temos recebido com grande regularidade académicos dessas partes do mundo e, até ao final deste ano, estamos à espera da visita de vários professores de universidades portuguesas e também de algumas universidades brasileiras. Estamos a tentar reforçar também os protocolos de intercâmbio com cursos de doutoramento nesses países, porque a investigação pós-graduada, o ensino pós-graduado, está muito conectado com a investigação.
E em termos do número de alunos e de professores, o que mudou nos últimos dois anos?
O corpo docente, no espaço de dois anos, sofreu algumas reestruturações consideráveis, quer quantitativas, quer de composição dos quadros. Houve vários professores que, por razões diversas, deixaram o departamento. Estes docentes foram substituídos, mais ou menos, na razão de um para um; não nos podemos queixar de forma alguma de falta de corpo docente. Quando cheguei, havia algum desequilíbrio, por exemplo, na relação entre professores da área da linguística e professores da área da literatura e está a ser feito um esforço para reequilibrar essas duas áreas.
A UM está sempre pronta para substituir todos os professores que, por alguma razão, deixam de exercer funções. Tem havido muitos concursos de admissão de pessoal docente e estão previstos para este ano mais alguns concursos. As saídas de professores do nosso departamento têm sido compensadas de uma forma muito satisfatória por novas contratações. Portanto, contando com os professores assistentes, nós temos cerca de 34, 35 docentes.
Para o ano académico 2024/2025, temos 87 alunos na licenciatura, o que ultrapassa as expectativas que nós tínhamos no final do ano lectivo passado.
Nós sabemos que na China em geral, e na UM, que não é excepção relativamente a isso, por razões, sobretudo, demográficas, este ano e nos próximos anos são esperadas diminuições em termos de candidaturas por causa da taxa de natalidade.
Durante o ano lectivo 2023/2024, fomos repetidamente alertados pela faculdade e pela universidade para a grande probabilidade de termos uma diminuição no número de candidatos ao primeiro ano relativamente aos anos anteriores. Isso, felizmente, acabou por não se verificar e mantivemos mais ou menos o mesmo número de estudantes no primeiro ano de licenciatura.
Os mestrados e doutoramentos mantiveram mais ou menos a procura de outros anos. O mestrado de literatura, que, entretanto, foi reaberto, teve um número de candidatos abaixo daquilo que normalmente é permitido na universidade para as disciplinas poderem funcionar, e, portanto, esses alunos foram redistribuídos depois pelos mestrados. Mas, em termos quantitativos, a procura foi sensivelmente igual à dos outros anos, contra aquilo que eram as nossas piores expectativas.
Qual a composição do corpo estudantil do Departamento de Português?
Na licenciatura, isto varia de ano para ano, mas em cada turma ou em cada disciplina, temos cerca de 50 por cento de alunos locais e 50 por cento de alunos do Interior da China. Temos alguns alunos de intercâmbio, os números são muito pouco expressivos, e eu devo dizer que era algo que gostaria de ver modificado aqui no departamento. Creio que este ano temos um único aluno de intercâmbio, um aluno japonês que vem da Universidade de Estudos Estrangeiros de Quioto e que está a frequentar a licenciatura.
Na pós-graduação a situação não é exactamente esta, porque temos alunos portugueses, brasileiros, guineenses, para além de estudantes chineses. A relação quantitativa entre alunos de Macau e alunos do resto da China também varia muito de curso para curso, de ano para ano, de disciplina para disciplina, mas nos cursos de pós-graduação, o número de estudantes do Interior da China é superior ao número de estudantes locais.
Do que tem observado no Interior da China, nomeadamente nas instituições com que a UM tem parcerias, existe interesse em fazer investigação em língua portuguesa por parte dos estudantes chineses?
Existe muito interesse na língua portuguesa por parte dos estudantes chineses e é talvez um dos aspectos que mais me surpreenderam pela positiva. Já conhecia alguma coisa do panorama universitário chinês, por causa da minha ligação ao Instituto Confúcio da Universidade do Porto, que me permitiu viajar e conhecer algumas universidades na China, para além de conhecer relatórios e dados em abstracto, que pude comprovar. Sobretudo no ano passado, pois, precisamente para tentarmos cativar o maior número de candidatos e de bons candidatos para as nossas pós-graduações, a UM e a faculdade encorajaram muito uma série de visitas – quer minhas, quer de outros colegas do departamento – a várias universidades do Interior da China, para captar os alunos que se licenciam nessas universidades para virem fazer cursos de mestrado ou doutoramento aqui em Macau.
Foi muito reconfortante ver a quantidade de alunos chineses que estudam português em quase uma centena de universidades no Interior da China, contando quer as universidades que têm programas de português, quer aquelas que oferecem o português como matéria complementar profissional nos programas. A qualidade e a motivação desses alunos são muito boas.
Finalmente, há um aspecto que eu gosto muito de salientar, e já tenho falado muito em entrevistas sobre ele, que é o corpo docente desses cursos universitários de português nas universidades no Interior da China ser em grande parte formado aqui, neste departamento. Eu contactei com duas ou três dezenas de professores com muito prestígio na China que asseguram o ensino do português em universidades de Xangai e Beijing, e em outras cidades, e foi muito reconfortante verificar que muitos deles tinham obtido o seu mestrado e/ou o seu doutoramento na UM.
Portanto, a UM tem este papel muito importante, que eu penso que não é devidamente salientado às vezes, que é o de ser uma espécie de centro de formação avançada para os docentes universitários de português na China. Obviamente, há muitos docentes universitários de português na China que vêm de outras universidades, quer aqui de Macau, quer de Portugal e do Brasil, mas há uma percentagem muito significativa desses professores que fizeram escola aqui na UM e isso explica também em parte a boa relação que nós temos com muitas universidades.
Fez questão de destacar a importância da investigação no ensino em língua portuguesa. Porquê?
A UM, e este departamento em particular, tem uma tradição muito forte de centrar a investigação em projectos individuais, isto é, mesmo o sistema de financiamento da investigação mediante fundos da própria universidade é muito baseado na atribuição de bolsas individuais e de projectos muito individuais.
O que eu noto, e penso que não é exclusivo deste departamento, é que há muitos colegas a fazer a investigação, até de grande qualidade e de grande impacto, mas as pessoas trabalham muito em paralelo, em vez de trabalharem em conjunto e encontrando pontos de contacto. Eu acho que isto seria um salto qualitativo que nós poderíamos dar e para o qual eu gostaria de poder dar o meu contributo. Em vez de termos uma investigação através de vectores muito individuais e sem grande comunicação, precisamos de ter uma investigação mais partilhada, mais colectiva, mais de grupo, em torno de dois ou três temas que o departamento conseguisse escolher como temas mais catalisadores. Eu gostaria de poder introduzir esta mudança, tornar a investigação mais participada, mais partilhada.
Por outro lado, [gostaria de] tornar a investigação mais comunicante com o que se faz de melhor em estudos portugueses na Europa, na América, na África, no Interior da China. As nossas relações com instituições do Interior da China são muito próximas, claro. Há muitos colegas nossos que têm projectos, por exemplo, na área de tradução, e muitos colegas que até trabalham com grupos de estudantes de pós-graduação, e em grupos entre si, em muitos projectos de colaboração com universidades chinesas. Eu gostava de ver esse modelo replicado noutras áreas, mas também pensando em Portugal e no Brasil. Não podemos esquecer que o português é uma matéria de estudo em muitas das melhores universidades do mundo, por exemplo, dos Estados Unidos, do Canadá, da Europa.
E qual deveria ser o foco dessa investigação, tendo em consideração a necessidade de a tornar mais partilhada?
Ao nível dos principais veios de investigação que têm sido desenvolvidos aqui, há talvez dois que eu considero que são mais destacados, incluindo os estudos de tradução. Eu julgo que a nossa reputação, enquanto centro de formação avançada na área da tradução, e enquanto centro de investigação sobre a tradução português-chinês e chinês-português, nos deixa muito bem vistos.
Portanto, essa é uma área que tem tido um grande desenvolvimento e até com resultados numa área da tradução que é muito difícil, que é a tradução literária. Muitos dos tradutores dos principais autores portugueses ou de língua portuguesa para chinês tiveram em algum momento algum contacto e alguma aprendizagem com a UM. Por outro lado, há a investigação em didáctica, em ensino do português a alunos que têm, normalmente, o chinês como língua materna. Portanto, estas são talvez as duas áreas mais visíveis para o exterior do trabalho que tem sido feito.
Julgo que seria importante agora dar continuidade e fortalecer estas duas áreas e dar uma maior visibilidade à investigação que este departamento tem potencial para fazer em duas outras áreas que são fundamentais: a linguística do português e os estudos descritivos da língua portuguesa, onde eu penso que ainda temos muito trabalho a fazer; e os estudos de literatura em língua portuguesa, porque nós temos no nosso departamento, felizmente, colaboradores excelentes na área dos estudos da interculturalidade, da literatura dos países de língua portuguesa, que não só de Portugal. Neste momento, se precisássemos, por exemplo, de alguém especialista em Luís de Camões, ou especialista em literatura portuguesa numa área um pouco mais restrita, se calhar não encontraríamos com facilidade condições e recursos para desenvolver essa área.
Portanto, julgo que na tradução e na didáctica o trabalho que tem sido feito tem sido excelente. Temos de o desenvolver e talvez incentivar mais as áreas da linguística e da literatura, e tentar procurar também uma integração entre todas estas disciplinas de investigação.
O que acha que torna Macau interessante para pessoas que queiram estudar e fazer investigação em português?
Em primeiro lugar, é o próprio prestígio da UM: o Departamento de Português não vive isolado, vive num ecossistema universitário que é muito favorável. Nós estamos integrados numa universidade com grande prestígio regional, nacional, internacional, que nos principais rankings universitários internacionais está em posições muito cimeiras, e isso tem um factor de atractividade muito grande e garante condições de trabalho muito boas, o que nos dá muita esperança no desenvolvimento dos estudos de português.
Depois, há toda a integração dos estudos portugueses numa cidade que é única, realmente, na Ásia – se nós pensarmos que a China, hoje, é um país que desempenha papéis-chave no mundo, na economia, na política, na ciência, e que há uma parte da China onde o português é uma língua oficial e onde se vê a presença cultural de Portugal e de outros países de língua portuguesa, que lhe confere características tão únicas de uma certa convivência que valoriza muito os laços económicos, mas também os laços culturais e históricos.
Eu penso que esta equação fica completa se considerarmos todas estas circunstâncias, que às vezes são referidas assim um pouco como cliché, mas isto vai para além do cliché, quando nós pensamos no papel do Fórum de Macau e na questão de o português ser uma língua oficial, que é muito desvalorizada. Todos nós conhecemos muitos portugueses que vivem em Macau e que acham que o facto de o português ser uma língua oficial em Macau tem pouca importância para a sobrevivência da língua. Eu, por acaso, tenho uma opinião completamente contrária: acho que o facto de o português ser uma língua oficial em Macau confere à língua um papel muito importante na arquitectura da sociedade, no planeamento dos serviços, na cultura, na informação, no ensino.
Macau é uma cidade onde nós aprendemos, por exemplo, a combinar contrários e onde aprendemos a procurar incessantemente formas de equilíbrio. Nós temos aqui todos os ingredientes para construir um futuro bom para o português e para o estudo do português.