25 Anos de RAEM

O retrato de uma história que se fez única

No ano em que se comemoram os 25 anos da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), impera perguntar: o que mudou na rotina da cidade desde o retorno à Pátria? As palavras de quem testemunhou de perto estas mudanças descrevem um período singular na história de Macau, marcado por triunfos, mas também por desafios

Texto Tiago Azevedo

Anable Ritchie
Laços de confiança garantem a estabilidade

Não existe uma realidade “imutável”, mas há um “quadro de confiança” que fez com que muita gente de Macau optasse por continuar a viver na RAEM, diz Anabela Ritchie, antiga presidente da Assembleia Legislativa (AL) de Macau, e que reassumiu o lugar de deputada do órgão legislativo da RAEM após o retorno de Macau à Pátria.

Muitos portugueses e macaenses ficaram em Macau após o estabelecimento da RAEM “porque sentiram, no fundo, que há um quadro de confiança que lhes permite querer continuar a viver em Macau”, afirma Anabela Ritchie. E acrescenta: “Eu fiquei porque queria ver como é que seria viver na RAEM e, 25 anos depois, ainda cá estou. Estamos exactamente a meio dos 50 anos estipulados pela Lei Básica e eu continuo em Macau e quero continuar a viver em Macau”.

Anabela Ritchie, que acompanhou de perto o processo de negociação para a transição de administração de Macau, recorda que as partes mencionaram constantemente a necessidade de assegurar uma “forma suave de transição”, algo que se “continua a verificar” após 25 anos.

A estabilidade do RAEM é um benefício, mas o desenvolvimento ao longo das últimas duas décadas e meia foi algo que surpreendeu Anabela Ritchie.

“Se eu me tivesse ido embora de Macau e regressasse agora, acho que não reconheceria a cidade. O surto de desenvolvimento que Macau teve após a transferência de administração torna esta Região Administrativa Especial bastante diferente daquilo que eu sonhava na altura. Foi um desenvolvimento muito rápido do ponto de vista económico, social e cultural”, sublinha Anabela Ritchie, que actualmente desempenha funções como membro do Conselho da Universidade de Macau.

As novas dinâmicas da RAEM trouxeram transformações “inevitáveis” às rotinas da cidade, algo esperado, visto que “o mundo é feito de mudanças”, refere. “Mal de nós se estivéssemos à espera que as coisas todas permanecessem na mesma. Todo este progresso assenta num respeito mútuo, enquadrado pela Lei Básica da RAEM”, que assegura que a singularidade e as vantagens de Macau serão mantidas, afirma a responsável.

“Os princípios e valores estipulados aquando da criação da Lei Básica assentam numa compreensão muito grande do passado e do presente, mas também com uma visão para o futuro”, realça Anabela Ritchie.

Segundo a antiga presidente da AL, é necessário continuar a fazer “grandes esforços” para manter a singularidade da RAEM, especialmente durante um período de maior integração com o Interior da China, nomeadamente no projecto da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau.

A integração é um processo que já corre a passos largos, mas ao qual se deve prestar a devida atenção, ressalva a responsável, enumerando os obstáculos sentidos pelo sector industrial e pelo comércio local. “Em qualquer processo de integração há um período que implica novos hábitos, costumes e aprendizagens, que levam o seu tempo. Mas sou uma defensora acérrima de que devemos proteger o mais possível as marcas identitárias de Macau”, salienta Anabela Ritchie.

A antiga dirigente revela que sentiu “uma vontade muito grande” de todas as partes para que, após a transferência de administração, “houvesse laços de boa colaboração” entre a China e Portugal. “Assisti à feitura da Lei Básica e, nessa altura, falava-se muito em salvaguardar as relações de respeito e de amizade entre a China e Portugal”, diz Anabela Ritchie. “As relações entre a China e Portugal não só foram mantidas, mas foram melhoradas.”

“Acho que isso foi alcançado e até aprofundado, até pelo papel que a China atribui a Macau como plataforma para a cooperação entre a China e os países de língua portuguesa”, acrescenta.

Jorge Rangel
Continuar a acentuar a singularidade de Macau

A transferência de administração de Macau foi “realizada com reconhecido sucesso, em conformidade com os parâmetros acordados entre Portugal e a República Popular da China”, sublinha Jorge Rangel, presidente do Instituto Internacional de Macau (IIM).

“Pelas funções que desempenhava no Governo, pude acompanhar muito de perto todo um conjunto coerente de realizações e também os trabalhos preparatórios da criação da RAEM, cujo funcionamento pleno foi assegurado”, acrescenta Jorge Rangel, que foi membro do Governo de Macau na vigência da administração portuguesa.

Jorge Rangel reconhece que a região registou um “invejável desenvolvimento económico” nos últimos 25 anos, alavancado pelo “rápido e espectacular” crescimento económico da China.

“Ao fazer um balanço objectivo, creio ser justo reconhecer os resultados positivos alcançados ao longo das últimas duas décadas e meia”, sublinha o presidente do IIM.
Segundo Jorge Rangel, a região “cresceu muito, física e financeiramente”, tal como a “exigência da população no que respeita à qualidade de vida”. Embora “grandes transformações” já estivessem em curso na década de 1990, “elas multiplicaram-se” nos primeiros anos da RAEM.

Desde a transferência de administração, foram registados avanços em vários domínios. “A defesa e valorização do património arquitectónico e cultural continuaram a merecer das autoridades a maior atenção. E a classificação do Centro Histórico da cidade, pela UNESCO, como património da humanidade, trouxe renovadas garantias de conservação”, realça o presidente do IIM. Por outro lado, acrescenta, a protecção do património imaterial e das zonas verdes “tem merecido também a louvável atenção dos organismos competentes”.

Jorge Rangel reconhece que a integração de Macau nas estratégias de desenvolvimento da China “tem sido rápida”, representando um “desafio” para a RAEM.

“O delta do Rio das Pérolas, onde Macau se insere, foi durante algumas décadas uma das zonas de maior desenvolvimento físico em todo o mundo, dando lugar recentemente ao desenvolvimento do projecto da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, uma ‘megalópole’ em acelerada construção”, frisa o responsável.

“Terá cerca de 35.000 quilómetros quadrados e uma população de quase 80 milhões”, acrescenta. “É um desafio impressionante” para uma região com a dimensão de Macau, “com uma singularidade própria que se pretende salvaguardar”.

De acordo com Jorge Rangel, o “desafio está lançado, cabendo a Macau, às suas instituições, às autoridades e às suas gentes enfrentá-lo com realismo e um sentido prospectivo”, preparando a RAEM “para uma inevitável integração num espaço muitíssimo mais amplo e com potencialidades imensas”.

O presidente do IIM realça que é preciso promover as “reflexões necessárias para que a singularidade” de Macau “seja, o mais possível, salvaguardada, apostando-se descomplexadamente na afirmação da sua diferença como factor de utilidade para todo o conjunto”.

Também no contexto internacional Macau tem uma “vocação histórica” como “entreposto comercial e cultural entre o Oriente e o Ocidente”, nomeadamente na ligação com os países de língua portuguesa. “Esta missão deu a Macau uma renovada responsabilidade, que compete às autoridades saber abraçar, estreitando os laços de cooperação com os países e os povos de língua portuguesa, bem como com as suas instituições académicas, culturais, comerciais e outras”, refere Jorge Rangel.

“Macau pode beneficiar amplamente das linhas de cooperação estabelecidas e elas podem contribuir para acentuar a singularidade de Macau”, remata.

José Luís Sales Marques
O futuro numa cidade multicêntrica

São duas realidades distintas, mas em que o imaginável se tornou possível. É assim que José Luís Sales Marques, economista e antigo presidente do Instituto de Estudos Europeus de Macau, descreve as primeiras duas décadas e meia da RAEM.

“A RAEM registou avanços muito positivos nestes últimos 25 anos. Pertenci à administração pública nos últimos anos da administração portuguesa e também durante os dois primeiros anos da RAEM – durante o primeiro mandato de Ho Hau Wah, então Chefe do Executivo. A Macau que hoje existe é uma evolução muito positiva comparativamente à Macau de 1999”, afirma José Sales Marques, que desempenhou as funções de presidente da Câmara Municipal de Macau Provisória nos primeiros anos da RAEM.

Segundo o economista, as autoridades da RAEM têm “feito coisas extraordinárias”, alcançando “resultados que há 20 anos eram inimagináveis”. “Com uma economia que tem as suas peculiaridades, Macau tem singrado de forma sustentável, com a economia a crescer rapidamente”, realça José Sales Marques. “Ao longo dos anos, as autoridades têm anunciado e implementado políticas favoráveis ao desenvolvimento de Macau, medidas que deverão manter a cidade no rumo de crescimento.”

Mas também noutras áreas se têm registado “progressos bastante positivos”, salienta, nomeadamente no que toca ao desenvolvimento social, cultural e em termos de educação.
Também a fisionomia de Macau se tem alterado à medida que a cidade se expande, “tanto em termos de área, como de complexidade”, diz José Sales Marques, apontando que os novos aterros e o crescimento populacional desde o retorno de Macau à Pátria “trazem novos desafios” a nível de políticas de planeamento.

“Estas mudanças acarretam desafios aos quais a RAEM tem respondido da melhor forma. Tem-se procurado trabalhar a vertente ambiental e ecológica, com base num desenvolvimento sustentável, o que se apresenta como algo bastante construtivo”, sublinha.

José Sales Marques destaca também um “novo dado” nesta fase de desenvolvimento da RAEM – do ponto de vista económico e social –, que “é a integração na região da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”.

“Este desenvolvimento era algo que se fazia de forma espontânea nos primeiros anos da RAEM, mais até pelas forças de mercado, mas que actualmente é algo sustentado, feito de forma planeada e programada”, realça.

Todo este desenvolvimento “trouxe novas dinâmicas às rotinas da sociedade e à forma como as pessoas interagem, até pelo desenvolvimento das ilhas” da Taipa e de Coloane, salienta José Sales Marques.

“A cidade hoje em dia tem mais turistas e o ritmo de vida é diferente do que era há 25 anos, até porque os espaços de convívio se foram alterando”, explica. “A cidade hoje é multicêntrica, com vários pontos onde as pessoas se encontram e socializam, ao contrário do que acontecia antes, que se centrava em Macau, especialmente no Largo do Senado, com uma ramificação até à zona da Horta e Costa.”

José Sales Marques afirma que é também “relevante” a aposta que foi feita no papel de Macau enquanto plataforma de cooperação entre a China e os países de língua portuguesa.

“No passado, já havia indicações deste propósito, mas, a partir de 2003, ganhou um novo impulso, com uma aposta concreta nesta política que tem trazido vários benefícios para Macau”, diz o responsável. “Não só esta política ajuda na diversificação da economia da RAEM, mas veio também dar uma maior importância à língua portuguesa, que tem vindo a crescer em termos de uso e de ensino”, adianta.

Rui Martins
Muitas mudanças numa transição pacífica

“O que mais importa salientar neste processo foi que se tratou de uma transição pacífica de uma administração portuguesa para uma administração chinesa.” É a primeira afirmação de Rui Martins, vice-reitor da Universidade de Macau (UM) há cerca de 27 anos, que diz que essa estabilidade “permitiu que Macau se desenvolvesse significativamente ao longo destes 25 anos”, ultrapassando os obstáculos que foram surgindo pelo caminho.

Além da abertura que a RAEM conheceu, um momento importante, destaca o académico, foi a designação, em 2005, do Centro Histórico de Macau como parte da Lista do Património Mundial da Humanidade da UNESCO. “Este passo foi importante para o desenvolvimento de Macau e para a manutenção do seu património histórico”, acrescenta.

Rui Martins ressalva que a criação do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa (Macau) foi outro passo marcante, “porque permitiu manter aqui o ensino da língua portuguesa, nomeadamente a nível do Departamento de Português e a nível da Faculdade de Direito, tendo aumentado em muito os alunos interessados em estudar português”.

O vice-reitor lembra que a UM recebeu no final de Outubro um fórum de reitores de instituições da China, dos países de língua portuguesa e de Macau, “que se focou precisamente na questão do português em Macau e na China” e que demonstra que o “desenvolvimento nesta área é enorme”.

Rui Martins, que reside em Macau desde 1992, diz que a região registou “mudanças significativas” desde o retorno à Pátria. “Mas devo dizer que a nossa maneira de viver, o dia-a-dia manteve-se inalterado. Actualmente, a cidade tem mais actividades, mais trabalho, maior dinâmica, mas assente na grande estabilidade que existe aqui nesta região.”

Em termos da UM, foram dados passos essenciais para o desenvolvimento da instituição, realça o vice-reitor. “Aquando da transição, estávamos no campus da Taipa e foi construído o novo campus na Ilha de Hengqin, onde nos encontramos há dez anos”, acrescenta Rui Martins.

“Eu já era vice-reitor em 1999. E a universidade tinha à volta de 3000 alunos e eu era o único vice-reitor. Neste momento, a universidade tem cerca de 15.000 alunos – sendo metade de cursos de licenciatura e metade de mestrados e doutoramentos – e cinco vice-reitores”, afirma.

Segundo Rui Martins, a dimensão actual da UM é demonstrativa do “crescimento astronómico da universidade durante este período, inclusive agora com planos para a criação do novo campus também na Ilha de Hengqin, que terá mais ou menos a dimensão de metade do actual campus, com novas faculdades e cursos”.

O académico elogia o trabalho que tem sido feito pelas autoridades no que diz respeito à integração regional, destacando que a UM já deu vários passos nesse sentido.
“Nós já temos um instituto de investigação em Zhuhai há cerca de seis anos, empenhado no desenvolvimento de actividades de investigação e transferência de tecnologia e de colaboração com as empresas chinesas em Zhuhai, Shenzhen e na Grande Baía”, realça o responsável.

O instituto foi constituído como um “centro conjunto de Zhuhai e Macau” para apoiar a integração de Macau no desenvolvimento do país, assim como uma plataforma destinada à transferência de ciência e tecnologia.

“Estamos a preparar as coisas para a nossa influência na Grande Baía ser ainda maior. Mas isto é uma coisa que leva tempo e acredito que na próxima década iremos observar esse desenvolvimento”, sublinha Rui Martins.