É uma gesta com tanto de afortunado, como de improvável. Um farmacêutico inglês, radicado em Macau, reinventa uma pequena, mas emblemática iguaria portuguesa que faz os consumidores chineses perder a cabeça há mais de três décadas. As icónicas “tartes de ovo” criadas por Andrew Stow tornaram-se um símbolo de Macau e, para milhares de turistas, uma doce razão para visitar a cidade
Texto Marco Carvalho
Quando, a 15 de Setembro de 1989, Andrew Stow inaugura uma pequena e inconspícua padaria na então pacata ilha de Coloane, está longe de imaginar que a arriscada aposta viria a estar na origem de uma das histórias de maior sucesso da Macau contemporânea, um conto de fadas adocicado sem princesas, magos e bruxas, mas com uma boa dose de espanto e cobiça à mistura.
Químico-farmacêutico de profissão, Andrew Stow levava dez anos de Macau quando embarca numa aventura que muitos imaginavam talhada para o naufrágio. Longe da agitação da cidade e do quotidiano frenético da Praia Grande, Coloane era, no final da década de 1980, um idílico fim-do-mundo que acenava às comunidades expatriadas com montanhas e praias e entardeceres indolentes.
Situada a dois passos do braço de mar que separa a vila de Coloane de Hengqin, a Lord Stow’s Bakery propõe-se preencher um vazio, muitas vezes identificado pelos estrangeiros radicados na ilha, e oferece carcaças, bolos de aniversário, pães de canela e outros bolos e bolinhos.
Entre eles, uma versão muito própria do pastel de nata, que Andrew Stow proporciona aos amigos portugueses como paliativo para a saudade e para a distância, sem se aperceber ainda que a pequena tarte amarela iria não só transformar a sua vida, mas também mudar a própria imagem de Macau no mundo. A iguaria depressa se tornou apreciada e a sua popularidade rapidamente extravasou fronteiras, começando por Hong Kong.
Trinta e cinco anos depois, a padaria Lord Stow’s vende milhares de pastéis por dia, nas quatro lojas que possui em Macau. “Temos a padaria Lord Stow’s em Coloane, onde tudo começou. Temos uma loja na Taipa, na Rua do Cunha. Estamos no Venetian e possuímos um novo espaço no Londoner. Ao todo, nestes quatro locais, vendemos entre 30 mil e 32 mil tartes por dia e todas elas são confeccionadas à mão”, explica Eileen Stow, que assumiu a gestão da padaria depois do falecimento do irmão, em 2006.
“São muitas as pessoas que me abordam e me dizem, ´Porque é que não abres uma loja aqui? Porque é que não abres uma loja acolá?’, mas as perspectivas não são assim tão simples. Há um enorme trabalho em garantir que as condições de produção são as condições certas. Antes de abrirmos o que quer que seja, há um enorme investimento na formação de recursos humanos para garantir que o produto final tem a qualidade de sempre”, esclarece a empresária britânica.
De Coloane, com amor
A fidelidade à fórmula original e o respeito pelo método de produção definido por Andrew Stow explicam, argumenta a irmã, o extraordinário sucesso que as “Portuguese egg tarts” alcançaram nos quatro cantos da Ásia. Em 35 anos, muito mudou, mas as tartes de ovo da padaria Lord Stow’s preservam o sabor e a textura de sempre.
“A razão pela qual o Andrew fez o que fez e criou a sua própria receita foi por não querer estar a usar receitas de terceiros, até porque também não possuía uma fórmula que lhe permitisse confeccionar os pastéis em grande quantidade. As receitas com que se foi cruzando tinham todas um procedimento em comum, a necessidade de se cozinhar o recheio da tarte antes de o adicionar à massa, e ele queria eliminar esse passo. Ao fazer isso, deixou de recorrer à farinha para engrossar o creme e substituiu-a por uma maior quantidade de nata”, explica Eileen Stow.
Com uma massa menos estaladiça e menos oleosa que a nata portuguesa, e com uma consistência mais clara, brilhante e homogénea, a tarte de Andrew Stow depressa caiu no goto – e no gosto – dos consumidores da vizinha Hong Kong, que começaram a peregrinar a Coloane em grandes números apenas para provar a iguaria que colocou, ao fim de pouco mais de três anos, Macau nas bocas do mundo. Três décadas e meia depois, a romagem às lojas do grupo mantém-se, uma tendência que para Eileen Stow não é mais do que o maior dos atestados de qualidade com que a iguaria poderia ser brindada.
“Creio que, para quem gosta de comida, é como se fosse uma peregrinação. Na loja de Coloane, as pessoas compram os pastéis e tiram fotografias com o saco, a comer as tartes junto do nosso logotipo, e isso para nós é uma grande honra. É algo de que nunca me farto. Sempre que testemunho estes momentos, sinto orgulho”, assume a empresária. “Quando o Andrew abriu a padaria em 1989, o propósito era, simplesmente, o de ganhar a vida, depois de uma sequência de anos um pouco mais difíceis. Mas nunca imaginou que o projecto pudesse alcançar o sucesso que alcançou. Se foi bem-sucedido, parece-me, foi por causa de toda a dedicação, do grande amor que colocou nestes pastéis”, acrescenta Eileen, que em Março do ano passado delegou na sobrinha, Audrey, a direcção executiva da padaria.
Cartão de visita
Se as filas permanentes no exterior das lojas Lord Stow’s são o sinal mais evidente do sucesso do projecto sonhado e engendrado por Andrew Stow, um outro fenómeno, bem menos positivo, atesta a importância e o significado que a tarte de ovo viria a adquirir. Foram muitos os que tentaram cavalgar a onda do sucesso alcançado por Andrew Stow, ao atropelo das regras mais básicas do negócio e da decência, recorda Eileen Stow.
Na viragem do milénio, a fama da criação já tinha suplantado a do criador e os pastéis de nata de Lord Stow começaram a ser vistos, dentro e fora de portas, como um desígnio de Macau e um dos grandes cartões de visita da cidade.
“Tanto eu como o Andrew tivemos de fazer as pazes com a ideia de que, a partir de determinada altura, não seria possível produzir todas as tartes de ovo que seriam eventualmente vendidas em Macau. A decisão, em última análise, cabe ao consumidor. É ele que vai decidir se prefere o original ou, se por uma razão de conveniência, opta por aquele que estiver mais próximo”, assume Eileen Stow.
O consumidor – a julgar pela extraordinária quantidade de pastéis que a padaria produz todos os dias – fez a sua escolha. O volume de negócios que a Lord Stow’s registou no ano passado bateu todos os recordes e o negócio emprega hoje quase duas centenas de pessoas. A tarte de ovo, essa, argumenta Eileen Stow, dá sustento a muitas mais.
“Surpreendentemente, 2023 foi o nosso melhor ano de sempre em termos financeiros”, afirma a empresária britânica. “Recrutámos mais funcionários para responder à procura. Neste momento, empregamos cerca de 190, mas se pensarmos no número de lojas que vendem, actualmente, os pastéis, o número é amplamente superior”, remata Eileen Stow.