A empresa Comidas Wong Chi Kei (Macau), Lda., a caminho de completar oito décadas de vida, celebra os sabores da tradição, mas também um projecto familiar partilhado. Os contributos de três gerações são a base de um negócio que, embora de cariz tradicional, não se atrasa perante a passagem do tempo
Texto Cherry Chan
Fotografia Cheong Kam Ka
O restaurante de cinco andares, em pleno Largo do Senado, era uma ambição antiga do fundador. Wong Wun Chi queria que a empresa Comidas Wong Chi Kei (Macau), Lda. estivesse na zona nobre da cidade, marcando o culminar do longo caminho que o negócio tinha já percorrido. O sonho tornar-se-ia realidade em 2000, já após o seu falecimento, com o filho Wong Tin a insistir em honrar o desejo do pai. É hoje o único estabelecimento de restauração a operar com porta aberta para aquele que é um dos principais cartões de visita de Macau.
Das mesas do Estabelecimento de Comidas Wong Chi Kei no Largo do Senado, pode-se apreciar a calçada de estilo português, mas também os sabores característicos da massa de fitas de tipo “jook-sing”, amassada com recurso a grandes canas de bambu. Servida ao estilo de sopa de fitas, seja com “wontons” de camarão ou porco, ou com ovas de camarão, a massa é um dos “ex-libris” da Wong Chi Kei, negócio agora a cargo da terceira geração da família proprietária.
As origens da empresa remontam a 1946, enquanto actividade ambulante. Foi na província de Guangdong, na cidade de Dongguan, a cerca de uma centena de quilómetros de Macau, que Wong Wun Chi se lançou na venda de rua, carregando as suas massas de fitas ao ombro, com a ajuda de uma vara.
O sucesso levou-o, cerca de cinco anos depois, a trocar a rua por uma loja de pedra e cal, na capital provincial, Guangzhou. Uma nova mudança de localização haveria de suceder dali a alguns anos, com a vinda de Wong Wun Chi para Macau e a abertura, em 1959, da primeira unidade do Estabelecimento de Comidas Wong Chi Kei na cidade, na tradicional Rua de Cinco de Outubro – o local continua em operação, 65 anos depois.
A força do bambu
Mais do que preservar uma história familiar de três gerações, a Wong Chi Kei mantém viva uma parte do património de Macau. O negócio dedica-se à confecção de massa “jook-sing”, uma prática inscrita em 2020 no Inventário do Património Cultural Intangível de Macau.
Este tipo de massa é típico da gastronomia cantonense. A mistura é tradicionalmente amassada com a ajuda de grandes canas de bambu (daí a expressão “jook-sing”, em cantonês). O artesão senta-se repetidamente em cima do bambu – algo conhecido como “cavalgar a cana” –, controlando o processo de pressão e o ritmo do batimento do bambu na massa, a fim de criar uma mistura compacta e consistente. Posteriormente, esta é espalmada em forma de folha, é dobrada várias vezes, cortada em finos fios e, por fim, conservada em rolos.
A massa “jook-sing” utiliza muitos ovos de pato, “o que cria uma grande tensão na mistura e torna difícil amassá-la bem apenas com as mãos”, explica Wong Yu Fei, neto do fundador e director de desenvolvimento de negócio da empresa. “Por isso, usa-se a cana de bambu, empregando a teoria da alavanca”, permitindo aumentar a força aplicada sobre a mistura ao amassá-la.
Na Wong Chi Kei, a confecção de massas “jook-sing” esteve presente desde o início: começou com o próprio fundador, que lançou o negócio após algum tempo como aprendiz junto de um mestre local em Guangdong. Com o passar do tempo, a empresa adaptou-se à modernidade. Parte das operações foi automatizada, mas os proprietários orgulham-se de ainda realizar uma porção do processo de produção de forma manual e com recurso às tradicionais canas de bambu.
Wong Yu Fei enfatiza que há ciência na utilização do bambu na preparação de massas “jook-sing”. Por isso, aquando do processo de automatização parcial das operações, a família desenvolveu as suas próprias fórmulas matemático-mecânicas de produção, de forma a assegurar que a introdução de maquinaria não teria impacto na qualidade da massa. No Japão, encontrou uma empresa capaz de fabricar maquinaria especializada segundo as suas especificações.
Para lá dos restaurantes
A adopção de uma produção parcialmente automatizada – com a inauguração de uma unidade fabril na zona do Iao Hon – coincidiu com a passagem de testemunho da liderança da Wong Chi Kei do fundador Wong Wun Chi para um dos filhos, Wong Tin. Formado no Japão, onde desenvolveu uma sensibilidade para a importância do “branding”, o novo homem-forte da empresa decidiu investir na criação de uma imagem própria para a Wong Chi Kei. Além da abertura do estabelecimento de comidas no Largo do Senado, a empresa chegou mesmo a ter presença no mercado da restauração de Hong Kong.
Mais tarde, já pela mão de Wong Yu Fei, surgiu o desenvolvimento de uma gama de produtos para turistas. A entrada no segmento das lembranças alimentares formalizou-se em 2016, através da marca “Yea Yea” – um termo para “avô” em cantonês, em forma de homenagem ao fundador. Além de massas de fitas, a marca oferece diversos tipos de canja chinesa, bem como condimentos – os produtos estão disponíveis tanto em Macau como em Hong Kong.
“Os italianos têm o esparguete, os japoneses têm o ‘ramen’. Porque não podemos ter a nossa própria massa ao estilo cantonês, para os visitantes levarem para casa após visitarem Macau?”, questiona Wong Yu Fei. A marca “Yea Yea” nasceu, assim, com o propósito de “introduzir a massa cantonesa ao mundo”, diz.
A aposta na inovação é uma componente essencial do projecto, com a procura constante pelo aperfeiçoar das técnicas de confecção. Em 2019, o esforço foi compensado: a “Yea Yea” tornou-se na primeira marca de Macau com produtos distinguidos com medalha de ouro no prestigiado concurso internacional Monde Selection de La Qualité. “Fomos o primeiro vencedor de sempre de uma medalha de ouro na categoria de massas de fitas proveniente da Grande China”, sublinha Wong Yu Wei. Desde então, os prémios Monde Selection têm-se sucedido.
Um esforço inter-geracional
Wong Yu Fei sublinha o papel de cada uma das três gerações da família proprietária para fazer prosperar a empresa. “O meu avô começou por fazer massa de fitas com recurso a canas de bambu para ganhar a vida e assim poder alimentar a família. O meu pai, como elemento da segunda geração, teve a responsabilidade de transformar a nossa massa de fitas numa marca, de a levar a mais pessoas”, explica.
“Os italianos têm o esparguete, os japoneses têm o ‘ramen’. Porque não podemos ter a nossa própria massa ao estilo cantonês, para os visitantes levarem para casa após visitarem Macau?”
WONG YU FEI
DIRECTOR DE DESENVOLVIMENTO DE NEGÓCIO DA COMIDAS WONG CHI KEI (MACAU) LDA
Para a actual geração, continua Wong Yu Fei, fica a tarefa de honrar o trabalho árduo do pai e do avô. “Isso é algo muito importante e especial para mim”, diz.
Um momento capital para se mostrar à altura dos antecessores foi a pandemia da COVID-19. O sector da restauração foi particularmente atingido pela necessidade de assegurar o distanciamento social, que também reduziu a vontade das pessoas durante esse período de fazer refeições fora de casa.
“Não foi uma perda de negócio de 70 por cento ou 80 por cento, mas sim uma queda de 99 por cento”, recorda Wong Yu Fei. No entanto, a marca “Yea Yea” permitiu manter uma fonte de receitas activa, recorda.
O responsável sublinha a importância, nessa altura, do apoio providenciado pelo Governo e por associações de cariz comunitário, através da realização de diversas iniciativas de apoio às pequenas e médias empresas. Wong Yu Fei recorda a realização de feiras comerciais no Interior da China promovendo produtos de Macau, onde a marca “Yea Yea” esteve presente.
Passada a pandemia, a vontade de promover os produtos da empresa no exterior ficou. “Temos trabalhado arduamente para sair de Hong Kong e Macau e apresentar esta massa ao mundo”, afirma Wong Yu Fei.
Diversos programas lançados pelo Governo têm ajudado à projecção do negócio. É o caso do “Plano das Lojas com Características Próprias”, organizado pela Direcção dos Serviços de Economia e Desenvolvimento Tecnológico. Este visa apoiar empresas locais com características singulares a operar nos sectores da restauração e do comércio a retalho. A unidade do Estabelecimento de Comidas Wong Chi Kei na Rua de Cinco de Outubro está incluída no regime e Wong Yu Fei reconhece os seus efeitos. “Após o alívio das restrições de viagem ligadas à COVID-19, muitos turistas vieram até nós – esse foi o melhor período ao nível do negócio em mais de 70 anos”, realça.
Olhando para o futuro, o objectivo é continuar a crescer, passando de uma empresa familiar para uma estrutura cada vez mais profissionalizada e moderna, afiança Wong Yu Fei, acrescentando que há a meta de desenvolver mais produtos ligados às lembranças alimentares. Potenciais novos segmentos de negócio estão sob avaliação, das massas instantâneas às bebidas à base de chá. “Espero que possamos atingir o objectivo de cumprir 100 anos de existência”, remata o responsável da Wong Chi Kei.