Veio por dois anos, vive em Macau há mais de quarenta. Amélia António vinha preparada para a aventura de uma vida, longe de imaginar que a experiência se pudesse tornar permanente. As oportunidades com que foi brindada e uma poética insuspeita, escondida nos gestos mais prosaicos do quotidiano, transformaram Macau em lugar de pertença
Texto Marco Carvalho
Nunca bebeu da água do Lilau, mas a cidade entranhou-se nela com uma desenvoltura que hoje lhe parece tão natural como a própria sede. A viver em Macau há 42 anos, Amélia António encontrou na região as oportunidades de trabalho e a concretização profissional que tardavam a despontar em Portugal, mas também uma cidade arrebatadora, onde a poesia do quotidiano se fazia tangível a cada esquina.
Os anos passaram, a cidade transformou-se e muito do encanto que enredou a então jovem advogada sobrevive apenas na lembrança, mas Macau conserva a impalpável essência que transformou becos e ruas desconhecidos numa parte fundamental da sua forma de ver e viver o mundo. A Macau de Amélia António é café de antanho, é memória e é mar. São os ecos do fascínio de outrora e a bonomia do crepúsculo. Mas Macau é, mais do que tudo, casa.
A permanência de Amélia António em Macau deve menos a velhos aforismos do que a um arrebatamento mil vezes renovado, mas, na geografia sentimental da advogada, há lugares inadiáveis e sabores inesquecíveis, como o do rústico café que se bebia sob as seculares árvores-do-pagode do Lilau. O largo refresca-se, até aos dias de hoje, à sombra de três colossais figueiras e era ali, debaixo de um simples toldo, que eram preparadas as melhores torradas de Macau.
“Não sei se bebi ou não da água do Lilau, mas café bebi várias vezes. Havia ali um toldo de borracha, esticado entre as árvores, e, lá por baixo, uma senhora que fazia torradas no carvão e café à moda antiga, na cafeteira. O café fervia sobre as brasas, era passado por um filtro de pano e as borras ficavam no fundo da cafeteira. Era uma coisa absolutamente fascinante. Sabia melhor do que tudo o que hoje possamos provar”, recorda a também presidente da Casa de Portugal em Macau.
Debaixo de toldos, no âmago do emaranhado de ruelas e becos que rasgavam o Porto Interior, Amélia António descobriu os encantos de uma cidade com tanto de anacrónico como de inebriante e o fascínio foi imediato. Indiferente ao exotismo dos templos e ao apelo dos pagodes, a causídica sucumbiu sem resistência à pequena poética dos dias.
“Na zona do Patane, havia um toldo que cobria toda a rua e onde estavam pintados os caracteres chineses para pastelaria. Debaixo do toldo, suspensas da parede, havia umas caixinhas de folha, com uma asa. Os funcionários da dita pastelaria faziam uns bolinhos, que eram cozinhados em carvão, e quem queria levar uma maior quantidade, pedia a latinha, colocava os bolos lá dentro e levava-os para casa. Era uma coisa absolutamente irreal, com uma dose de encanto e com uma dose de poesia incomparáveis”, argumenta.
Quando desembarcou em Macau pela primeira vez, em 1982, Amélia António tinha 37 anos e uma vivência tão plural que nela cabiam várias vidas. Órfã de mãe aos sete anos, viu gorada a ambição de prosseguir estudos superiores quando a tia, com quem cresceu, também faleceu. Amélia tinha 17 anos e, num Portugal onde os empregos não abundavam, foi somando experiências profissionais e cívicas. Foi já vários anos depois, enquanto fazia trabalho administrativo no Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, que completou a licenciatura em Direito. Macau surge depois na equação, no que seria uma estadia com data de validade bem definida.
“Vim com uma licença sem vencimento de dois anos, no que seria uma experiência. O meu marido tinha sido convidado para vir fazer um trabalho para a então Inspecção Bancária, eu tinha feito o curso de Direito, tinha concluído o estágio, estava a trabalhar no Sindicato dos Bancários e, uma vez que não tinha muito a perder, decidi que valia a pena vir”, explica.
Em Macau, mais do que um rincão de um Oriente que julgava remoto e exótico, Amélia António encontrou oportunidades de carreira ímpares e uma cidade com tanto de estranho, como de familiar. A curiosidade depressa se fez conforto, mas o fascínio, esse, permanece vivo.
“Andava muito a pé pela cidade, gostava muito de percorrer aquelas ruas do Porto Interior. Hoje, as limitações físicas já não me permitem aventurar pela cidade com a mesma frequência, mas quando me embrenho pela parte velha, continuo a ter essa sensação de reencontro com Macau”, admite Amélia António.
“Ainda há algumas zonas em que se consegue alcançar o sentido do que era Macau. Sempre achei muita graça às arcadas do Porto Interior. Lembravam-me extraordinariamente a Ribeira do Porto”, sustenta a advogada.
Em 42 anos, a cidade mudou, jogou-se ao firmamento. O casario térreo e vetusto, os telhados dobrados sobre si mesmos, deu lugar a torres e a eremitérios engavetados uns sobre os outros. Outrora varridas pelo sol e embaladas pelo longínquo rumor do mar, as ruas escureceram e o encanto que outrora suscitavam foi esmorecendo na mesma medida em que se encheram de sombras.
Na Areia Preta e noutros pontos de Macau, Amélia António viu erguer-se uma urbe em que o ritmo desde cedo subjugou a métrica, nos antípodas da cidade-verso pela qual se apaixonou. “Foram construídos muitos prédios, muito altos e com uma densidade populacional extremamente elevada. Tão elevada que as pessoas que lá vivem não se chegam a conhecer”, defende a presidente da Casa de Portugal, cargo que assumiu quase há duas décadas.
Nem todo o crescimento, reconhece Amélia António, desvirtuou a cidade, mesmo quando a alterou incontornavelmente. O fecho da Baía da Praia Grande expurgou Macau de uma realidade que fez durante séculos parte do seu ADN, mas ajudou a resolver outros problemas.
“A Praia Grande valorizou muito com o arranjo que foi feito. Os lagos ajudaram a resolver a questão dos cheiros e uma série de outros problemas desagradáveis. Mas a antiga baía, com o seu murete e, sobretudo, com as redes de pesca suspensas das canas de bambu, tinha um encanto particular. Era uma imagem muito icónica de Macau”, lembra a causídica, uma das sócias fundadoras, em 1989, da Associação dos Advogados de Macau.
Se Macau se tornou casa, Coloane tornou-se refúgio há quase 30 anos. No final da década de 1990, Amélia António responde ao apelo do mar e procura, na maior das ilhas da região, um recanto de paz e bem-estar onde se pudesse resguardar da turbulência dos dias. Com as suas praias e pequenas enseadas, Coloane já não era o entreposto remoto, quase inacessível que fora outrora, mas continuava a estar, aos olhos de muitos, a um mundo de distância do Largo do Senado.
“Vivo em Coloane há 28 anos. Macau começou a crescer muito, eu tinha uma vida muito agitada e a determinada altura senti a necessidade de encontrar um sítio de paz e de bem-estar. Em retrospectiva, acho que foi das melhores decisões que alguma vez tomei, ao ponto de eu hoje dizer, meio a brincar, meio a sério, ‘Vou para Sintra’”, assume a advogada.
“O que Coloane me ofereceu foi a sensação de sair da cidade, de deixar a confusão para trás. O caminho, por si só, é terapêutico: passar por espaços arborizados, sem casas, com plantas, com pássaros, ajuda-me a chegar a casa com outra cabeça. As pessoas sempre se queixaram que a vida em Macau é muito lenta, muito chata e não sei mais o quê, mas comecei desde muito cedo a ter um quotidiano muito intenso e essa perspectiva tem-se vindo sempre a agravar, quer por razões de trabalho quer por razões de participação cívica”, conta.
“Coloane trouxe-me tranquilidade, aproximou-me do mar. A água, o movimento das ondas e a imensidão sempre tiveram um efeito significativo na minha forma de ser. Ajudam-me a alcançar o equilíbrio”, remata.