Longe vão os tempos em que a construção naval era uma indústria-chave em Macau. Ainda assim, vários mestres que subsistem dessa época continuam a tradição, agora através da produção de barcos de madeira em miniatura, mantendo os procedimentos de sempre. Com o relógio a correr contra si, diversos grupos locais estão apostados em manter vivo este património e estas práticas e técnicas, muitas delas centenárias
Texto Cherry Chan
Durante séculos, foi uma imagem típica de Macau: dezenas de pequenas embarcações polvilhando as águas ao largo do território, servindo de ganha-pão àqueles – muitos – que faziam do mar e da pesca a sua vida. A suportar essas comunidades piscatórias, estava uma indústria local de construção e reparação naval, hoje inexistente, mas que acabou por ficar intimamente ligada à história de Macau.
Em meados da segunda metade do século XX, os registos oficiais apontam para a existência de várias dezenas de estaleiros, espalhados por entre a península de Macau, a Taipa e Coloane. Com o desenvolvimento económico verificado com o aproximar da viragem do milénio, a pesca enquanto actividade industrial foi perdendo peso, acabando por levar ao afundamento do sector da construção naval. O lançamento à água, em 2005, do último barco construído em Macau simbolizou o fecho desse capítulo.
Se o sector da construção naval desapareceu, mantiveram-se – e mantêm-se – em Macau diversos antigos mestres de construção naval. Alguns deles dedicam-se hoje à produção de miniaturas dos barcos que outrora lhes saíam das mãos – de sampanas a juncos –, utilizando para tal as mesmas técnicas e conhecimentos do passado. Procuram agora sangue novo, interessado em aprender e manter esta parte importante do património imaterial de Macau.
Contra a maré do esquecimento
“Em relação aos estaleiros, a indústria desapareceu – é um facto”, diz Vangaree Tam Chon Ip, presidente da Associação Cultural do Ofício de Construtores Navais. “Porém, no que toca aos aspectos da cultura e da história, ainda há mais que pode ser feito a fim de os preservar”, afirma o dirigente associativo.
Nascido em Macau numa família de artesãos de construção naval, Vangaree Tam não enveredou – pelo menos, directamente – pela tradição familiar: é filho do reputado mestre Tam Kam Chun. Seguiu antes o caminho dos estudos académicos, formando-se em arqueologia e dedicando-se a investigar e promover a história e cultura de Macau. Nos últimos anos, o trabalho de Vangaree Tam centrou-se na conservação da indústria da construção naval do território, documentando e estudando este ofício.
Antes do estabelecimento, em 2019, da Associação Cultural do Ofício de Construtores Navais, os seus membros vinham já levando a cabo diversos trabalhos de promoção cultural nos antigos estaleiros de Lai Chi Vun. De acordo com Vangaree Tam, desde logo que as actividades do grupo se focaram na preservação da história da indústria da construção naval de Macau e da cultura associada.
A partir de 2020, o grupo passou a organizar workshops ligados à construção naval. O primeiro focou-se ainda na reparação de embarcações, com mestres experientes a explicarem aos participantes como executar a tarefa. Depois, vieram workshops de produção de miniaturas de barcos-dragão.
“Visto que, actualmente, muitos dos barcos-dragão usados nas regatas não são de madeira, as pessoas podem não conhecer este tipo de embarcação tradicional”, conta Vangaree Tam. “Pensámos que os barcos-dragão tradicionais podiam estar em perigo de extinção, pelo que também queríamos chamar a atenção do público quanto a isso.”
Parte indissociável de Macau
Além da Associação Cultural do Ofício de Construtores Navais, há outros grupos no território a promover a conservação do património ligado à antiga indústria naval local. São os casos da Associação dos Operários de Estaleiro de Macau e da Associação de História e Cultura Portuária de Macau.
Leong Chan Iat é um dos líderes da Associação dos Operários de Estaleiro de Macau e ele próprio um antigo trabalhador da indústria. O responsável sublinha que o território possui, em termos históricos, uma cultura piscatória muito profunda, surgindo, por arrasto, a indústria da construção naval.
Da parte do Governo da Região Administrativa Especial de Macau, tem existido igualmente um esforço em promover uma aproximação do público ao património ligado à antiga indústria da construção naval. A revitalização dos antigos estaleiros navais de Lai Chi Vun, que arrancou em 2021, pretende criar um espaço de actividades recreativas e culturais dedicado a este tema. No ano passado, foi inaugurada no local – actualmente um bem imóvel classificado de Macau – uma exposição temática com uma secção dedicada às práticas e técnicas dos construtores navais.
Para assegurarem a transmissão a novos públicos do património imaterial ligado à construção naval, a Associação dos Operários de Estaleiro de Macau e a Associação de História e Cultura Portuária de Macau promovem regularmente workshops conjuntos de produção de barcos de madeira em miniatura. A edição mais recente decorreu entre Abril e Agosto, com uma sessão por semana.
Pou Chao Kuong, presidente da Associação dos Operários de Estaleiro de Macau, explica que a construção de embarcações em miniatura não é, na verdade, algo de novo. “Sempre tivemos miniaturas de barcos”, assegura o responsável, também ele um antigo operário de estaleiro. “Existiam miniaturas porque, antes de fabricar uma embarcação, era normalmente necessário fazer um modelo para que os trabalhadores tivessem uma ideia mais específica do barco a produzir.”
O mais recente workshop teve a duração de quatro meses. “O ideal são seis meses, porque, para fazer uma miniatura, mesmo um mestre experiente pode necessitar de mais de 30 dias”, nota Pou Chao Kuong.
Nos workshops, não há peças pré-fabricadas e prontas a encaixar: cada participante tem de preparar o seu projecto, desenhar e cortar os diversos componentes e tratar do processo de montagem. Mais do que levar uma miniatura pronta para casa, o principal desafio é conseguir completar, pelo menos, um esqueleto para a respectiva construção.
Lio foi uma das pessoas que participou no mais recente workshop. “Agora sei que há muitos pormenores envolvidos, que consomem muito tempo e muita mão-de-obra”, diz. “No início, não estava à espera de precisar de fazer tantos desenhos, mas assim que comecei a preparar a miniatura, percebi que para ficar bonita é preciso tempo e esforço.”
Na verdade, Lio – como outros participantes neste tipo de formação – tem ligações familiares à construção naval. O seu pai foi operário de estaleiro no passado, tendo agora vestido o papel de um dos instrutores no workshop. “Para quem é totalmente novo nisto, podem ser precisos meses só para se familiarizar com este tipo de procedimentos”, explica o progenitor.
Outra participante no curso que terminou em Agosto, de apelido Ng, é já repetente em iniciativas do género. No sangue, também lhe correm ligações à indústria piscatória de Macau e, por isso, quis saber mais sobre a cultura e tradições do sector. “Já vi este tipo de embarcação antes e estou bastante interessada nesta forma de artesanato. Esta é a segunda vez que participo num workshop de construção naval em miniatura e voltarei a inscrever-me no futuro”, assegura.
Ng concorda que construir uma miniatura não é tarefa fácil. “No entanto, quando estou a trabalhar nisto, estou tão concentrada que consigo esquecer todas as outras coisas. É bastante relaxante, embora, no final, me sinta fisicamente cansada.”
Já outro participante, de apelido Chan, conta com quatro projectos concluídos desde que se começou a dedicar à actividade, incluindo um barco-dragão. “A construção naval é agora bastante diferente do passado”, nota. “Estamos a construir miniaturas, que são modelos e que diferem em termos da construção de uma embarcação real, nomeadamente no que toca ao desenho, corte e outros procedimentos de manuseamento da madeira.”
Já para o senhor Choi, um antigo carpinteiro e hoje reformado, esta é uma forma de contribuir para a preservação do património imaterial de Macau. “Acredito que é possível transmitir este tipo de conhecimento a outros”, diz, acrescentando a importância de atrair mais jovens para estes workshops.
Estabelecer um novo rumo
Os workshops são apenas uma das formas através das quais a Associação de História e Cultura Portuária de Macau está focada em promover o património cultural ligado às actividades portuárias. O grupo foi criado em 2013 por Chan Yat Fung, proveniente de uma longa linhagem de pescadores.
“A ideia da associação surgiu porque descobri que as pessoas que me rodeavam, independentemente da idade, conheciam pouco sobre a cultura naval”, afirma. “Macau é uma cidade portuária, com uma história de 400 anos. Mas hoje estamos bloqueados do contacto com o mar por edifícios altos e não conhecemos esse passado.”
Desde então, a associação tem promovido diversas actividades, incluindo exposições de barcos antigos. Foi assim que surgiram os workshops de construção de embarcações de madeira em miniatura, como forma de criar uma plataforma para antigos mestres poderem divulgar as suas técnicas junto do público em geral.
“Os workshops que a nossa associação organiza são mais ligados à promoção cultural: não só ensinamos os participantes a fazer as miniaturas, como também os levamos a conhecer algum do património local ligado à construção naval, para que saibam como era a indústria quando estava no auge”, nota Chan Yat Fung. De resto, o responsável sublinha que o tempo corre contra a associação: os mestres mais novos ligados ao antigo sector da construção naval são hoje sexagenários, pelo que urge assegurar a transmissão dos seus conhecimentos, técnicas e estórias.
Para isso, a associação tem também realizado mostras, palestras e outras actividades junto de universidades e escolas locais. “É um meio muito útil e directo para os jovens aprenderem sobre estas tradições e cultura, sendo também uma boa forma de despertar o seu interesse”, considera Chan Yat Fung.
A Associação Cultural do Ofício de Construtores Navais, de Vangaree Tam, procura navegar por rotas similares. “Estamos também a considerar a promoção deste património cultural através da cooperação com instituições de ensino superior, o que nos poderá permitir ter mais espaço para fazer mais coisas”, diz.
“Talvez as práticas e costumes ligados à construção naval não tenham ainda sido elevados a património cultural intangível de Macau porque ainda não receberam do público atenção suficiente”, continua o responsável. Vangaree Tam enfatiza que as diversas associações ligadas ao sector trabalham em conjunto, tudo para “estabelecer uma plataforma que ofereça ao património ligado à indústria da construção naval um novo rumo”.