O que para uns é um entrave à afirmação da gastronomia macaense, para Carlos Anok Cabral é um aspecto fundamental da sua riqueza e vitalidade. O presidente da Confraria da Gastronomia Macaense argumenta que a existência de múltiplas receitas para um mesmo prato não coloca em causa a gastronomia macaense, mas é a base da diversidade que a sustenta
Texto Marco Carvalho
A lembrança é doce, delicada e repleta de felicidade. É aos dias fartos da infância que remonta o primeiro contacto de Carlos Anok Cabral com a alquimia da cozinha. Foi a ver os bolos crescer na cozinha da avó que o actual presidente da Confraria da Gastronomia Macaense primeiro se convenceu de que, mais do que um ritual ou do que um acto de circunstância, cozinhar é o único gesto de amor em que a magia se faz palpável.
“Comecei com sete anos. Naquela altura, praticamente aquilo que fazia era ajudar a minha avó na cozinha a fazer os bolos. Para uma criança, fazer um bolo é uma coisa muito simples. Sentava-me numa cadeirinha, prendia a taça entre as pernas e, com um varão de madeira, começava a mexer para fazer a massa para o bolo”, recorda Carlos Cabral.
Na preparação de qualquer iguaria, a primeira manifestação de magia nasce da amálgama, muitas vezes inusitada, de ingredientes, mas também do engenho com que são preparados. Há um meneio que se faz espanto no arcaico milagre de transformar simples claras de ovo na frágil tessitura de uma nuvem de algodão, processo prenhe de fascínio que o cozinheiro macaense se habituou a acompanhar, tanto sob a orientação da avó, quanto pela mão da mãe, cujos preparados culinários adoçaram durante algum tempo a boca aos clientes do Hotel Lisboa.
“A minha mãe fazia bolos – de laranja, de ananás, de manteiga, de chocolate, bolo mármore – e vendia-os para o Hotel Lisboa. A determinada altura, o hotel começou a exigir uma maior quantidade de bolos e tornou-se impossível para a minha mãe satisfazer a procura. De qualquer forma, comecei com sete anos, mas, a bem dizer, na parte da doçaria”, conta.
As iguarias salgadas e os sabores macaenses são uma descoberta tardia, uma revelação que se fez tangível pela mão da tia, Rita Cabral, já “Calito” – nome pelo qual é carinhosamente conhecido no seio da comunidade macaense – era homem feito.
O baptismo de fogo no mais genuíno repositório das tradições gastronómicas de Macau não é fruto do acaso, mas quase. “Quando voltei para Macau, em 2004, a minha tia ajudou-me a fazer a inscrição num concurso de culinária, de comida macaense. Macau recebeu nesse ano o Encontro das Comunidades Macaenses e foi a partir daí que comecei a explorar com mais afinco os pratos e os sabores macaenses. A minha tia fez a inscrição, eu tive de aceitar, mas disse-lhe que tínhamos de fazer o possível para ganhar qualquer coisa”, lembra Carlos Cabral.
O prato que preparou – a emblemática fula-papaia com caranguejo – garantiu-lhe o segundo lugar na competição e um estatuto pioneiro numa nova fornada de cozinheiros apostados em salvaguardar o património, as técnicas e os sabores que ao longo de séculos ajudaram a edificar a gastronomia macaense. A iguaria, que tem como ingrediente fundamental a flor de papaia, é um de uma série de petiscos em risco de desaparecer, seja por escassez de matéria-prima ou pela evolução das técnicas de confecção.
“Há, por vezes, uma grande dificuldade para reproduzir receitas antigas, utilizando novas técnicas de confecção. Um dos problemas diz respeito à equiparação do peso e da quantidade. Era frequente as senhoras irem ao mercado e, em vez de pedirem um determinado peso, dizerem que queriam dez patacas de carne de porco picada. Os registos em moeda constituem um grande desafio para nós actualmente”, reconhece Carlos Cabral.
“Outra dificuldade é a perda de alguns ingredientes. Agora, em Macau, é muito difícil encontrar flor de papaia, por exemplo. Durante alguns anos, conseguia encomendar a partir do Interior da China, onde conhecia um camponês que tinha um pomar onde só plantava árvores de papaia”, acrescenta. “O balichão é outro dos ingredientes em risco, até porque é feito com camarões muito pequeninos. São muito pequenos e, nesta zona, antigamente ainda era possível encontrá-los. Agora é um ingrediente que está praticamente esgotado.”
Uma “cozinhação” plural
Se o caranguejo fula-papaia que cozinhou em 2004 possuía o apuramento ideal para embalar o então incipiente cozinheiro para uma jornada de descoberta dos saberes e sabores maquistas, o lançamento, em Dezembro de 2013, do livro “Comê Qui Cuza?” constitui um marco incontornável no processo de renovação e reafirmação do mais genuíno património gastronómico de Macau.
Com mais de três dezenas e meia de receitas redigidas em português, chinês e inglês, acompanhadas de pequenos apontamentos em patuá, o livro é a primeira obra a conciliar a gastronomia macaense e a “lingu maquista”, ou não fosse “Calito” Cabral presença frequente nas récitas do grupo de teatro Dóci Papiaçám di Macau.
Em “Comê Qui Cuza?”, Carlos Cabral detalha, a par e passo, os segredos de iguarias que são presença habitual na mesa das famílias macaenses. O incontornável minchi pontifica em dose tripla, uma opção justificada com a natureza polissémica e plural da culinária maquista. O insigne cozinheiro macaense considera que a verdadeira essência da gastronomia macaense radica na diversidade, quase da mesma forma que uma grande diversidade dialectal enriquece certas línguas.
“Cada família, sua receita. Não podemos escolher uma versão, colocá-la cá para fora e dizer que determinada receita é melhor do que as demais. Não é assim tão simples. Há quem tenha provado diferentes variações de uma mesma receita e se tenha apercebido de que não é propriamente fácil dizer qual é a melhor”, argumenta Carlos Cabral.
A perspectiva de que na variedade é que está o ganho norteia também a sequela de “Comê Qui Cuza?”, obra em fase de acabamento, mas ainda sem data definida para desaguar nos escaparates das livrarias. A obra dá a conhecer receitas de petiscos ainda recorrentes nas mesas das famílias macaenses, mas também iguarias que não sobreviveram à voragem do tempo e caíram em desuso.
“O segundo volume de ‘Comê Qui Cuza?’ está praticamente feito. Os pratos já foram escolhidos, foram confeccionados e até já tenho as fotografias. É na parte das histórias que está mais atrasado, porque eu quero manter também essa parte em patuá. Já escrevi metade das histórias, agora falta a outra metade”, revela o autor.
“Há receitas menos conhecidas. Algumas receitas estavam perdidas e consegui recuperá-las graças à minha tia, que as herdou de uma senhora macaense que emigrou para o Canadá há muitos anos e já faleceu”, remata.