Francisco Manhão

Os lugares da memória contra a ratoeira da saudade

Francisco Manhão
Pragmático e objectivo, Francisco Manhão não troca a Macau de hoje pela visão, muitas vezes distorcida pela nostalgia, da cidade de antanho. Aos 74 anos, o actual presidente da Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC) diz viver em paz com os ecos de uma juventude com tanto de difícil, como de desconcertante. O passado não é propriamente um lugar estranho, mas nem só de memórias vive o Homem

Texto Marco Carvalho
Fotografia Oswald Vas

Mestre da sua alma, capitão do seu destino, rei e senhor da sua rua. Francisco Manhão não se lança com um entusiasmo fortuito na ratoeira da saudade. Desconfia até de quem lhe garante que a Macau de antanho possuía encantos que a de hoje não possui.

Se o saudosismo não é mal que o acometa e o velho casario de outrora não lhe suscita particular devoção ou encantamento, reconhece que a candura com que enaltece a aurora da vida facilmente se confunde com sujeição à nostalgia ou glorificação da juventude. Mais do que dos locais onde viveu, Francisco Manhão sente falta do que viveu, dos dias em que tudo parecia possível e o mundo era um mar de oportunidades.

Dias felizes, mas nem por isso fáceis. As memórias das tardes irrepetíveis da meninez são cada vez mais esparsas, mas há nuances que Francisco Manhão não esquece: décimo de uma numerosa linhagem de 12 irmãos, encontrava na rua o fôlego, o espaço e a liberdade que o mais das vezes não tinha em casa.

Os anos formadores da infância foram passados no número 55 da Avenida do Coronel Mesquita. A vivenda sobreviveu à voragem dos anos e à transformação meteórica da paisagem urbana e encontra-se em vias de classificação por parte das autoridades de Macau. Hoje vista como uma estrutura com características únicas, um raro exemplo do peculiar estilo arquitectónico que se popularizou sob a designação de “português suave”, a moradia integra um conjunto habitacional com características similares, originalmente concebido para acolher funcionários públicos das categorias inferiores do quadro geral e para responder às necessidades básicas de espaço de uma pequena família, circunstância na qual o clã Manhão não encaixava de todo.

“A casa era um tanto ou quanto pequena. Se bem que fosse uma moradia com dois pisos, ao todo éramos 14 pessoas na minha família. Vivíamos com muitas dificuldades”, reconhece.

“Naquela altura tudo era difícil. O meu pai era subchefe da Polícia de Segurança Pública, mas era o único que ganhava. Era necessário fazer muita ginástica. Basta que lhe diga que a mesa de jantar não dava para sentar toda a gente. Os menores tinham que se sentar fora da mesa e eu era um deles. Era o décimo na hierarquia da prole e tinha de ficar fora da mesa. As perspectivas não eram fáceis, mas tudo se criou”, constata Francisco Manhão, sem angústia e sem nostalgia.


Ao espaço minguante dentro de portas, Francisco Manhão e a rebanhada de miúdos que cresceram no chamado Bairro de Mong-Há respondiam com uma invasão frenética e comanditada das ruas que cercavam a colina. De tão pacatas, as avenidas, os becos e as ruelas pareciam infinitos.

“De meia em meia hora ou a cada 45 minutos passava um carro. Portanto, dava perfeitamente para engendrar todo o tipo de brincadeiras. No Verão, largávamos papagaios de papel. Na altura, nós tínhamos um rolo e era com a ajuda desse rolo que controlávamos os papagaios. O melhor sítio para lançar os papagaios era na rua. Quase não passavam carros. A única desvantagem eram mesmo os fios eléctricos. Na altura, estavam pendurados por todo o lado. A linha quando lhes tocava rebentava logo”, recorda.

Foi também na rua que Francisco Manhão descobriu uma paixão que o acompanhou ao longo de toda a vida, o futebol. A infância do agora dirigente associativo teve um pendor marcadamente territorial, com as brincadeiras a orbitarem em torno da Avenida do Coronel Mesquita e a desaguarem infindáveis vezes no Campo do Canídromo.

“Passávamos grande parte do tempo na mesma zona. Quando morávamos na Coronel Mesquita, praticamente não saíamos da Coronel Mesquita. Havia poucas probabilidades de irmos para o Tap Seac ou para a Belchior Carneiro”, admite Manhão.

“Onde eu passava mais tempo era no Campo do Canídromo. E passava grande parte do tempo no Campo do Canídromo porque ali podíamos jogar à bola, ver jogos de futebol e, como éramos um pouco malandros, surripiávamos as bananas e a batata doce que o guarda lá plantava”, recorda.

O manancial de horas que passou naquele espaço fazem de Francisco Manhão uma verdadeira enciclopédia no que toca à história, ainda por contar, do desporto-rei em Macau. História, que em grande medida, se confunde com o seu próprio percurso pessoal.

“Passei muito tempo da minha infância no Canídromo. Assisti ali a muitos jogos de futebol. Tantos que tenho uma memória muito cristalina de muitos dos melhores jogadores que ali jogavam no passado”, assume o antigo presidente da Associação dos Veteranos de Futebol de Macau.


A ligação umbilical, quase visceral, à Coronel Mesquita rompe-se com a entrada na adolescência. Aos 13 anos, a família sobe a avenida e instala-se no há muito desaparecido Edifício da Flora, onde encontra condições de vida mais favoráveis: “Já havia mais espaço para nós. Tínhamos três quartos e as divisórias eram melhores”, conta.

O prédio tinha vista desassombrada para o Campo D. Bosco, mas o Canídromo permaneceu como refúgio de eleição no planisfério sentimental de Francisco Manhão ou não remontassem ao mais antigo relvado do território as primeiras grandes conquistas pessoais.

“Fomos campeões na categoria de juniores em dois anos consecutivos. É por isso que digo que, para mim, o Canídromo é muito importante. Ganhámos em 1964 e voltámos a ganhar em 1965, tinha eu 14 e 15 anos”, diz o presidente da APOMAC.

Se, dentro de campo, Francisco Manhão aprendeu o valor do companheirismo e a importância do trabalho em equipa, nas carteiras do Seminário de São José recebeu os fundamentos da educação clássica e rigorosa que é apanágio das instituições da Igreja. Dos anos passados na instituição, retém a memória de um ambiente generoso e intelectualmente estimulante, pela mão de mestres como os padres Juvenal Garcia, Júlio Augusto Massa ou José Barcelos Mendes.

“Fui para o Seminário por influência dos meus irmãos. O meu pai queria que eu fosse para o Liceu Nacional Infante D. Henrique, mas a minha cabeça estava voltada para o Seminário e é uma decisão da qual não me arrependo”, assume. “Apanhei professores formidáveis no Seminário. Nos anos finais da minha formação, apanhei o padre Massa, o padre Mendes, o padre Juvenal. Tudo pessoas fora de série”, garante.

Seminário de São José

Os anos passados como aluno externo do Seminário de São José foram fundamentais para lutas futuras, principalmente as que protagonizou ao lado do amigo Jorge Fão na recta final do período de administração portuguesa com a camisola da Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau (ATFPM).

Se dentro das paredes do seminário se inteirou dos valores onde se fundamenta a moral católica, fora delas foi tomando o pulso aos pequenos prazeres e vícios que iludem os sacramentos, mas que, em grande medida, dão cor à vida. Ponto de paragem obrigatória para a comunidade macaense, o café Ruby, em plena Avenida de Almeida Ribeiro, foi para Francisco Manhão como que uma segunda casa.

“Na Avenida Almeida Ribeiro, mesmo em frente aos Correios, havia um restaurante muito conhecido, o restaurante Ruby. Era um local muito procurado por um grande número de pessoas da comunidade, muitos dos quais eram funcionários do Estado. Depois do almoço, encontrávamo-nos lá e tomávamos café. Eles iam para o serviço e nós íamos para a bola ou fazer outras coisas”, recorda.

Propriedade de uma família chinesa, o café-restaurante foi o espaço de eleição dos macaenses entre as décadas de 1940 e o início da década de 1970. Numa época em que a televisão era ainda uma remota promessa, era para ali que os jovens iam ouvir música, na rádio e na jukebox, ou, como no caso de Francisco Manhão, jogar bilhar.

“Aprendi a jogar bilhar precisamente no primeiro andar do restaurante Ruby. No período das férias, tomávamos café no Ruby e, depois, subíamos as escadas e jogávamos um pouco de bilhar no Salão Tai Chong. Aliás, não era apenas nas férias. Durante o ano lectivo, muitas vezes faltávamos às aulas só para ir jogar bilhar”, remata, com um assomo de nostalgia.