Alquimia, sustentabilidade e produto. No evangelho da gastronomia, os três conceitos são, para André Lai, a santíssima trindade onde se fundamenta a cozinha moderna. Macaense desenraizado e descontextualizado, olha sem arrebatamento e sem pruridos para o futuro da cozinha macaense, mundividência que, defende, está condenada à sobrevivência
Texto Marco Carvalho
“O que é a cozinha macaense senão uma cozinha de inovação?” A pergunta é arremessada em jeito de certeza por André Lai. O actual chef executivo do restaurante Andaz Kitchen vê como inevitável a transmigração da gastronomia macaense do aconchego das cozinhas domésticas para a copa dos restaurantes, num processo a que não é indiferente a progressiva profissionalização do sector da restauração em Macau.
No processo de consolidação e renovação da cozinha maquista, o tempo, sustenta, é o ingrediente essencial. O chef, com formação em gastronomia francesa pela Escola de Hotelaria do Estoril, em Portugal, assume como inevitável que os sabores macaenses evoluam, tal como sucedeu, por exemplo, com a gastronomia portuguesa ao longo das últimas décadas.
“O factor na equação que mais influência vai ter é o tempo. O tempo vai fazer com que a persistência dos profissionais da área consiga prevalecer e com essa prevalência chega a inovação, porque é isso que tem vindo a acontecer com a cozinha portuguesa”, salienta André Lai.
“A cozinha portuguesa é mais do que receitas. É produto. E quando se tem um produto, consegue-se inovar. Quando se tem um background e quando se tem uma base sólida, é possível inovar e a cozinha macaense consegue ter essa base sólida”, acrescenta.
“O que se tem de continuar a fazer em Macau é solidificar a cozinha macaense … perceber o que se come genuinamente em casa das pessoas, o que tem história, o que tem raízes, o que é fruto de uma herança e compreender de que forma é que essa base pode ser consolidada e a partir daí inovar”, argumenta o chef.
“A cozinha macaense é, na verdade, uma cozinha de inovação. Foi uma das primeiras cozinhas de fusão do mundo e uma cozinha de fusão é sempre uma cozinha de inovação”, defende.
Filho de peixe sabe nadar
Filho de pai chinês, natural de Timor-Leste, e de mãe portuguesa, o experiente cozinheiro é, tal como as iguarias macaenses, o resultado da convergência de dois mundos. Do pai, cozinheiro e disseminador de restaurantes chineses um pouco por toda a Europa, herdou o fascínio pelas artes culinárias e pela alquimia que lhes está associada.
“Cozinho, muitas vezes, pela satisfação de ver a comida ser transformada. A magia que está por trás de transformar, de fazer um simples refogado é algo que me dá bastante alento”, sustenta André Lai. “O meu foco vai ser sempre esse: a transformação da comida e o prazer que transformar a comida me dá. Considero o sucesso a capacidade de conseguir transparecer isso para as outras pessoas”, acrescenta.
A impremeditada paixão pelas lides da cozinha manifestou-se cedo e colheu oposição onde menos se esperava. “Para longe da tua mãe, já chego eu. Além disso, a cozinha é muito bonita, mas não queiras envelhecer à frente de uma chapa”, disse-lhe o pai. A advertência, quase profética, acompanha André Lai desde sempre e tem norteado os passos de uma bem-sucedida carreira, que o levou à cozinha de projectos como o restaurante Fortaleza do Guincho, em Portugal, o Alma Portuguese Grill Restaurant, em Hong Kong, os restaurantes Gosto e Mesa by José Avillez, em Macau.
“São duas frases que me ficaram na cabeça e que acabaram por moldar a minha ambição ao longo do tempo. Na altura entendi o que ele quis dizer, mas é muito diferente sentir isso na pele: saltamos aniversários, épocas festivas e todos os outros momentos importantes. Os chefs gozam actualmente, de certa forma, de uma imagem de rock stars e isso tem os seus benefícios, tem os seus aspectos positivos, mas não é só glamour. Há aspectos negativos e há desafios que é necessário ter em conta”, sustenta André Lai.
Um dos maiores, numa indústria que se habituou a não olhar a meios para atingir os fins a que se propõe, é o da sustentabilidade. O acesso a produtos de qualidade sem ter de recorrer a fornecedores do outro lado do mundo e sem colocar em causa a autenticidade dos pratos e iguarias que oferece, é uma das missões pela qual tem batalhado desde que assumiu, há um ano, o estatuto de chef executivo no restaurante.
“Claro que passar para chef executivo é passar para uma posição mais administrativa. É claro que, no final do dia, o produto que eu tenho de oferecer aos meus clientes continua a ser comida. Mas seria redutor pensar que lidamos apenas com comida. Também lidamos com pessoas. E ser chef executivo é ser responsável por uma equipa que gere a cozinha de um hotel. Quando isso acontece, o meu produto são as pessoas e as pessoas que trabalham comigo têm de providenciar a qualidade para a qual queremos direccionar os nossos pratos”, assume André Lai.
“Como chef executivo, uma das vantagens que chegam com a função é que posso decidir a direcção do projecto nas áreas da sustentabilidade que possam ter impacto. Gerir um hotel com 600 quartos e colocar fruta em cada quarto é uma decisão que tem um impacto social. Neste momento, em vez de colocarmos em cada quarto fruta japonesa, reconhecida pela sua grande qualidade, o que estamos a fazer é a pegar em fruta local, do Interior da China, e oferecer fruta que esteja no melhor da época. É algo natural e, de certa forma, lógico, mas que nem sempre é praticado”, sublinha o responsável.
Radicado em Macau há oito anos, mais do que uma segunda casa, André Lai reencontrou no território as suas raízes ancestrais. Com a vinda para o Oriente cumpriu-se um desígnio que o acompanhou desde sempre, ou não fosse o sangue mais espesso do que a água.
“É irónico, mas sempre disse a toda a gente que gostava muito de viver na China. Sendo o meu avô de Macau, pode parecer uma ambição natural. Mas nem sequer era para Macau, era para a China mesmo. Queria vir para a China e dizia isso a toda a gente. E um dia houve alguém que me disse que tinha uma oportunidade para vir para Hong Kong. Não pensei duas vezes”, remata.