Inclusividade

Juntos para ultrapassar os obstáculos que ainda persistem

O desporto é considerado um excelente veículo para dar visibilidade às pessoas com deficiência
O desporto inclusivo em Macau continua a evoluir, mas algumas barreiras mantêm-se tanto para atletas de elite como para amadores. A integração na sociedade, graças aos benefícios da prática desportiva, é uma realidade a nível global a que Macau se associou. Para muitas famílias, o desporto foi a porta que permitiu uma mudança de mentalidade

Texto Vítor Rebelo

A relação entre desporto e pessoas com deficiência continua a ser uma luta pela dignidade, sendo a eliminação da discriminação uma tarefa constante, esforçada e que envolve a dedicação de atletas, famílias e múltiplas organizações, incluindo o Governo.

A contribuição que a prática desportiva oferece para a inclusão de um ser humano na sociedade está mais do que provada, aumentando a autoestima proporcionada pelo bem-estar físico e social. Esta realidade ganha ainda mais relevo ao nível de pessoas com deficiência, para as quais o desporto funciona como um campo para extravasar emoções e desafiar preconceitos de longa data, proporcionando, fundamentalmente, o tão importante contacto com outros indivíduos com ou sem deficiência.

Macau não foge à regra e apresenta até a vantagem, pela sua pequena dimensão territorial, de favorecer um relacionamento mais próximo e rápido, ao contrário do que acontece em grandes cidades por esse mundo fora.

Para trás, ainda que num passado não muito distante, ficou o receio de muitos pais mostrarem à sociedade os seus filhos com problemas físicos ou mentais, uma barreira que tem sido gradualmente reduzida.

O número de pessoas – jovens ou menos jovens – que têm recorrido aos programas da Macau Special Olympics nos últimos anos prova que o território tem conhecido uma grande evolução neste domínio. No entanto, as pessoas com deficiência são, com demasiada frequência, excluídas de certas áreas da sociedade devido à falta de acessibilidade das infra-estruturas ou serviços, que não estão adaptados às suas necessidades.

Nesta reportagem, a Revista Macau falou com dirigentes, atletas e outros intervenientes directamente ligados ao desporto inclusivo, fazendo o ponto da situação do desporto como actividade de lazer para pessoas com deficiência, mas também o da evolução de atletas de elite no território.

De uma forma geral, o progresso do desporto inclusivo em Macau recebe nota positiva, contando com algum investimento por parte do Governo. Porém, diz quem está ligado ao sector, “há ainda muito por fazer”, em especial no que diz respeito aos espaços disponíveis para treino.

“Nos últimos anos, tem-se verificado uma evolução positiva no apoio oficial dado às pessoas com deficiência que querem praticar desporto em Macau”, afirma Hetzer Siu Yu Hong, director da Macau Special Olympics. O dirigente salienta que o Governo “tem demonstrado um maior empenho na promoção do desporto inclusivo e no apoio às pessoas com deficiência”.

No entanto, diz o responsável, “algumas das dificuldades continuam por resolver ao longo dos anos, como a falta de locais de treino”.

Os horizontes, defende Hetzer Siu, deveriam ser alargados, até porque o desporto é um factor de coesão e uma excelente ferramenta social de melhoria da qualidade de vida e da saúde dos cidadãos.

Obstáculos a transpor

Duas atletas locais que beneficiam do estatuto de elite são Hoi Long e Lao In I. A primeira, com deficiência auditiva, tem obtido excelentes resultados tanto em competições de desporto adaptado como em provas regulares, ou seja, competindo com atletas sem quaisquer limitações mentais, sensoriais ou físicas/motoras. Já Lao In I tem competido com sucesso na disciplina de esgrima em cadeira de rodas.

Para Hoi Long, as duas categorias de atletas, com ou sem deficiência, “enfrentam um grande desafio no que diz respeito às instalações de treino” no território.

“Em Macau, há uma escassez de espaços desportivos disponíveis para treinar e esses recintos têm também de satisfazer as necessidades do público em geral, o que torna tudo ainda mais difícil”, afirma a atleta.

Segundo Hoi Long, o Governo tem-se concentrado no desenvolvimento de disciplinas desportivas específicas que requerem pouco espaço, como o wushu e o karaté. No entanto, “desportos como o triatlo, que requerem áreas de treino maiores, são mais difíceis de desenvolver em Macau, daí que as disciplinas desportivas baseadas na velocidade enfrentem maiores obstáculos em termos de desenvolvimento”, refere.

Na opinião de Lao In I, nem os recursos administrativos nem os recursos técnicos têm acompanhado o desenvolvimento das diferentes modalidades, “sobretudo com o envelhecimento dos atletas portadores de deficiência física, o que torna ainda mais difícil o desenvolvimento do desporto adaptado”, realça.

A esgrimista considera que uma pessoa com deficiência pode descobrir através do desporto os seus limites e potencialidades, “ultrapassando algumas barreiras impostas pela sociedade”.

Lao In I tem competido em várias provas em representação de Macau

António Fernandes, presidente da Associação Recreativa dos Deficientes de Macau, que engloba atletas da “classe de elite”, refere que embora faltem alguns estímulos para que jovens com deficiência procurem uma carreira de elite no mundo do desporto adaptado, a sua associação conta actualmente com cerca de 40 atletas, dedicados às modalidades de ténis de mesa, boccia, badminton e esgrima.

Mais programas, mais recursos

De uma forma mais “amadora” e empenhados em proporcionar uma genuína integração social através da prática desportiva, a Macau Special Olympics depara-se igualmente com dificuldades.

“Enfrentamos constrangimentos em termos de recursos financeiros, pessoal e instalações”, assevera Hetzer Siu. “O desenvolvimento de programas de desporto inclusivo requer recursos adicionais para fornecer treino especializado, equipamento especializado e infra-estruturas acessíveis”, diz o responsável, acrescentando que “o financiamento limitado pode dificultar a expansão e a sustentabilidade das iniciativas” ligadas ao desporto adaptado.

“O desenvolvimento de programas desportivos inclusivos requer formação especializada e conhecimentos para treinadores, formadores e membros do pessoal”, recorda o dirigente.

Hetzer Siu reconhece que apesar de se registar um interesse crescente dos jovens com deficiência em praticar desporto em Macau, “não há motivação suficiente para que eles dêem o primeiro passo, também devido à falta de instalações”.

Numa política clara de inclusão social graças aos benefícios do desporto, a Macau Special Olympics mantém-se fiel ao princípio da organização-mãe, a Special Olympics International, de apoiar pessoas com deficiência intelectual, desenvolver a sua autoconfiança, capacidades de relacionamento interpessoal e sentido de realização.

O desporto, segundo as organizações internacionais, torna-se, pelo seu carácter universal e massificante, um excelente veículo e instrumento para dar visibilidade às pessoas com deficiência e ajudar a passar do cidadão com deficiência e incapacidade para a pessoa com capacidades e potencialidades.

Ao longo de quase 40 anos de actividade, a Macau Special Olympics tem trabalhado no desenvolvimento do desporto inclusivo, não deixando também de olhar para a vertente mais competitiva, com muitos dos seus atletas a conquistarem medalhas em provas além-fronteiras.

No ano passado, por exemplo, a associação marcou presença nos Jogos Mundiais de Berlim, Alemanha, de onde trouxe cerca de quatro dezenas de medalhas. No próximo ano, a Macau Special Olympics vai ser representada por atletas nos Jogos Nacionais da China, com algumas modalidades a terem lugar em Macau.

Trabalho de equipa

Ao abordar-se o tema da “inclusão através do desporto”, o papel da Macau Special Olympics ao longo dos anos tem sido determinante, até mesmo nas actividades puramente de carácter social, as quais têm servido de “trampolim” para que muitas pessoas com deficiência tenham o primeiro contacto com o desporto.

Numa definição geral, a inclusão social é entendida como “um veículo que promove o trabalho em equipa”, permitindo a todos interagirem com os seus pares, para além de criar laços de amizade que favorecem a entrada na prática desportiva. Esta, por outro lado, promove a aquisição de capacidades motoras e o desenvolvimento de aptidões ao nível da mobilidade, orientação, equilíbrio e comunicação.

Para Hetzer Siu, o desporto inclusivo em Macau desempenha um papel significativo na integração das pessoas com deficiência na sociedade. “Ao proporcionar oportunidades iguais de participação no desporto a pessoas com deficiência, estabelece-se um sentimento de pertença e aceitação, promovendo ligações sociais e reduzindo o isolamento”, explica o dirigente.

Por outro lado, “o desporto inclusivo cria oportunidades para os indivíduos sem deficiência se envolverem e compreenderem as capacidades e os desafios enfrentados pelas pessoas com deficiência”, acrescenta.

Para Hetzer Siu, ao oferecer programas desportivos, promover a inclusão, defender os indivíduos com deficiências e enfatizar o desenvolvimento pessoal, a Macau Special Olympics “desempenha um papel vital na melhoria da vida” das pessoas com deficiência e “na criação de uma sociedade inclusiva”.

No âmbito do evento “Jogos Olímpicos Especiais de Macau”, são organizados programas de treino e competição desportiva especificamente concebidos para pessoas com deficiência intelectual, salienta Hetzer Siu. Estes programas cobrem uma variedade de desportos, incluindo atletismo, natação, ténis de mesa, basquetebol, futebol, entre outras.

A Macau Special Olympics tem registado um aumento no número de participantes nas actividades que organiza

“Criámos também um ambiente inclusivo onde os indivíduos com deficiência intelectual podem socializar, interagir e desenvolver relações significativas com os seus pares, treinadores e voluntários”, adianta o responsável. “Ao fomentar um sentimento de pertença e aceitação, os Jogos Olímpicos Especiais de Macau ajudam a combater o isolamento social e promovem o bem-estar geral dos seus participantes.”

Nova mentalidade e atitude

A Macau Special Olympics, fundada em 1987, possui também um centro de serviços sociais que oferece uma gama completa de serviços e apoio a pessoas com deficiência intelectual e às suas famílias, em termos de cuidados pós-escolares, redes de apoio à família, cuidados de saúde, serviços de autocarro e actividades de lazer e artes.

“O centro trabalha a nível individual para avaliar as necessidades de cada utilizador e criar um plano de serviços especificamente concebido para responder às suas necessidades”, reforça Hetzer Siu.

Além disso, afirma, “os serviços especializados, como os ateliers protegidos, a formação profissional e os centros de actividades diurnas”, têm como objectivo “ajudar as pessoas com deficiência intelectual a conseguir um emprego significativo e a contribuir para a sociedade”.

Já o Departamento de Reabilitação Profissional procura responder às expectativas dos atletas e famílias “no que toca à construção de um local de trabalho mais inclusivo na comunidade”, afirma o responsável.

No que concerne o papel dos pais e das famílias, Hetzer Siu não tem dúvidas: “Embora possa haver ainda alguns pais que inicialmente hesitam em permitir que os seus filhos com deficiência pratiquem desporto, há geralmente uma maior abertura e sensibilização para os benefícios do desporto inclusivo em Macau”.

Actualmente, diz o dirigente, os esforços de sensibilização e promoção do desporto inclusivo “ajudaram a mudar as atitudes e a encorajar os pais a apoiarem a participação dos seus filhos, reconhecendo agora o impacto positivo que o desporto pode ter no bem-estar físico e mental, nas competências sociais e no desenvolvimento geral das crianças”.

Promover a autoconfiança

Como atleta de elite, Hoi Long conjuga o desporto com um emprego a tempo inteiro na função pública. Com um plano de treino bastante exigente, os seus dias começam cedo, com sessões de treino antes de ir para o trabalho, que diversas vezes se repetem ao final do dia.

Hoi Long tem obtido excelentes resultados tanto em competições de desporto adaptado como em provas regulares

A desportista reconhece que o desporto aumentou a sua autoconfiança, melhorou as suas capacidades sociais e alargou os seus horizontes através das viagens para competições. “Cultivei a minha força de vontade e perseverança através de anos de treino regular, que me ajudam também a ultrapassar adversidades e a resolver desafios. O desporto permite-me viver hoje uma vida mais saudável e mais confiante.”

Lao In I diz que o desporto permite que as pessoas com deficiência alarguem os seus horizontes. “O desporto inclusivo faz com que as pessoas com deficiência física e mental mostrem as suas habilidades à sociedade”, permitindo também que o público possa “sentir a energia positiva das pessoas com deficiência”.

No seu caso, a atleta tem a possibilidade de mostrar o seu talento na esgrima, podendo também partilhar com jovens atletas “as competências e a experiência de competição” que adquiriu.

Existem ainda alguns estigmas e mitos que têm de ser quebrados, mas, cada vez mais, o desporto adaptado começa a ser integrado no dito desporto regular. No entanto, de acordo com os dirigentes associativos, esta integração deverá começar na base, na prática desportiva escolar, antes de chegar às estruturas regulares e envolver outros agentes desportivos.

Segundo Fátima Santos Ferreira, em tempos a presidente do Instituto de Acção Social, é importante que as pessoas com deficiência não só tenham acesso a espaços de lazer e desporto, mas também à liberdade de escolher e à possibilidade de participar na actividade de que gostam e na qual se podem destacar.

Actualmente à frente da Associação de Reabilitação Fu Hong de Macau, Fátima Santos Ferreira realça que “o desporto, para além de proporcionar uma integração mais fácil na sociedade, permitirá que mais tarde as pessoas com deficiência ingressem na vida profissional”.