Trata-se de um dos nomes cimeiros da arte em Macau na segunda metade do século XX: Lok Cheong é agora recordado através de uma mostra retrospectiva alargada, que aborda não só a sua obra, mas também as suas contribuições para o meio artístico local e para a comunidade
Texto Cherry Chan
Fotografia Wong Sio Kuan
É tarefa complexa sintetizar o impacto de Lok Cheong no panorama artístico local. Além das suas evidentes qualidades enquanto pintor multidisciplinar, teve um papel de grande relevo ao nível do associativismo no campo das artes, bem como na promoção de novos talentos. De forma a dar palco às diferentes facetas do artista, o Museu de Arte de Macau está a dedicar-lhe uma grande exposição retrospectiva, ocupando todo o terceiro piso do museu.
Nas palavras da presidente do Instituto Cultural, Deland Leong Wai Man, Lok Cheong foi “um dos pilares do círculo artístico de Macau, tendo apoiado jovens artistas a despontar, unido amantes da arte e promovido o intercâmbio cultural com o Continente chinês”. De acordo com a responsável, as obras do artista são “altamente expressivas”, reflectindo “uma forte paixão e empatia para com a vida, o povo e a sua Pátria”.
Inaugurada em finais de Novembro e patente até 7 de Abril, a exposição “Retrospectiva Centenária da Arte de Lok Cheong” visa assinalar os 100 anos do nascimento do artista, falecido em 2006, aos 83 anos de idade. A mostra apresenta uma centena de pinturas de Lok Cheong, juntamente com alguns dos seus desenhos, bem como obras da autoria de artistas seus contemporâneos com quem manteve laços de amizade. Ao todo, são 150 peças, incluindo trabalhos a óleo, aguarelas, manuscritos e documentos pessoais. A exposição abarca a obra de Lok Cheong desde a década de 1950 até um ano antes da sua morte, cobrindo uma ampla gama de temas que, no seu conjunto, ilustram a vida, carreira e legado do artista.
A diversidade do percurso de Lok Cheong está patente ao longo da exposição. Destacam-se, numa primeira fase do artista, as pinturas de grandes dimensões de figuras humanas, bem como os retratos em aguarela. Mais tarde, Lok Cheong foca-se mais na criação de paisagens em aguarela e pinturas chinesas. Durante um longo período, a sua obra é permeada por uma figuração realista e um forte sentido de patriotismo: são trabalhos em especial a óleo que revelam um poder de observação apurado, retratando as condições de vida que observava à sua volta e exprimindo um forte sentido humanista.
Homem multifacetado
Foram muitas as peles que o artista vestiu ao longo da sua vida. Uma das facetas de Lok Cheong bem patentes na exposição é o seu domínio de diferentes técnicas de pintura, obtido de forma autodidacta, da aguarela à pintura a óleo ou com recurso à tinta-da-china. “Os artistas desta geração pintavam recorrendo a diferentes formatos, utilizavam todo o tipo de materiais, não se limitavam a uma única técnica”, explica Ng Fong Chao, curador da exposição, em declarações à Revista Macau. Segundo o responsável, Lok Cheong foi, aliás, um dos defensores, entre a sua geração, das técnicas de pintura ocidental, embora também se tenha evidenciado no uso de técnicas de pintura de estilo chinês.
Os contributos patrióticos de Lok Cheong são também recordados ao longo da mostra no Museu de Arte, merecendo uma secção própria. De resto, depois da fundação da República Popular da China, o artista trabalhou, durante muitos anos, na construção de arcos decorativos (conhecidos em chinês como “pailou”) para a celebração em Macau do denominado “Dia da Nação”. O curador Ng Fong Chao fala numa “consistente expressão de amor pelo País” por parte de Lok Cheong através da sua arte, “a qual contribuiu para despertar no público o amor à Pátria”.
No campo do associativismo cultural, Lok Cheong procurou desde cedo promover um melhor conhecimento por parte dos artistas de Macau do que se passava em termos artísticos do lado de lá das Portas do Cerco. “Lok Cheong realizava frequentemente intercâmbios com grupos do Interior da China”, procurando construir pontes duradouras, nota Ng Fong Chao. E acrescenta: “A falta de compreensão leva muitas vezes à resistência. Lok Cheong levou jovens artistas em viagens de desenho pelo Interior da China, não só para melhorarem a sua arte, mas também para os ajudar a compreender melhor o país”.
Voltando à organização da exposição, Ng Fong Chao explica que cada uma das cinco secções da mostra foi concebida por razões específicas. “Captando o Carácter de Macau”, por exemplo, apresenta pinturas de paisagens da cidade; já a secção “Retratos” inclui uma série de pinturas representando figuras de relevo. “Visitando a exposição e percorrendo o itinerário estabelecido, o público pode retraçar a vida de Lok Cheong e conhecer o seu percurso artístico”, explica o curador.
“Visitando a exposição e percorrendo o itinerário estabelecido, o público pode retraçar a vida de Lok Cheong e conhecer o seu percurso artístico”
NG FONG CHAO
CURADOR DA EXPOSIÇÃO
Da arte à sociedade
Nascido em 1923 no Interior da China, na prefeitura de Xiangshan – actual cidade de Zhongshan, na província de Guangdong –, Lok Cheong veio ao mundo como Lok Hau Cheong. Acabaria por mudar-se para Macau, regressando mais tarde, em 1935, à província de Guangdong, para viver em Guangzhouwan (actual Zhangjiang).
Durante a Guerra de Resistência contra o Japão, trabalhou em design tipográfico e criou numerosos cartazes de propaganda anti-japonesa. Regressou depois a Macau onde, em 1948, casou com Choi Keng Chan, também conhecida por Wa Ka.
Trabalhou como artista gráfico para alguns dos principais cinemas de Macau, tendo estabelecido o Grupo de Arte Camelo e sendo um dos fundadores, em 1952, do Sindicato do Cinema de Macau. Em 1956, Lok Cheong junta-se a vários outros artistas para fundar a Associação de Pesquisa Artística de Macau. No mesmo ano, é promovida a organização da primeira edição da Exposição de Belas-Artes de Macau. Em 1967, a associação passa a ser designada por Associação dos Artistas de Belas-Artes de Macau, com Lok Cheong no posto de director e, mais tarde, de presidente, cargo que viria a exercer por vários anos.
As suas obras foram expostas na sexta, sétima e oitava edições da Exposição Nacional de Belas-Artes da China. Em 1984, o artista é mesmo galardoado com um Prémio Extraordinário na sexta Exposição Nacional de Belas-Artes pelo trabalho “Estrada de Seixos”. A obra seria depois integrada na colecção do Museu Nacional de Arte da China.
Em 2001, o percurso ímpar de Lok Cheong vale-lhe a Medalha de Mérito Cultural por parte do Governo da então recém-criada Região Administrativa Especial de Macau (RAEM). No mesmo ano, é lhe dedicada no território uma mostra retrospectiva, consistindo em mais de 60 pinturas suas, sendo ainda publicado um livro dedicado à sua obra.
À vida artística de Lok Cheong esteve associada também uma forte componente cívica. O artista foi nomeado na década de 1980 membro do Conselho Consultivo para a Lei Básica da RAEM. Além disso, foi chamado a integrar o painel do Comité de Selecção para a Bandeira e Emblema da RAEM. Foi ainda membro da Comissão de Selecção do Primeiro Governo da RAEM.
Da família para o museu
A maioria do espólio que compõe a exposição agora patente no Museu de Arte é fruto da doação, em 2020, por parte da família de Lok Cheong, de uma porção substancial do acervo do artista, incluindo obras que lhe tinham sido oferecidas por alguns dos seus amigos. Na altura, foram doadas ao museu 239 pinturas a óleo, aguarelas, caligrafias e pinturas chinesas, bem como 24 álbuns de desenhos.
“Esperamos que, através da exposição, o público possa compreender o percurso artístico de Lok Cheong e ver a sua paixão pela arte, incluindo a história por detrás das suas obras”, diz à Revista Macau um dos seus filhos, o também artista e designer gráfico Lok Hei. “O meu pai foi alguém que fez bem o seu trabalho e criou um caminho”, acrescenta.
A vida artística de Lok Cheong influenciou Lok Hei, que tem vindo a trilhar um percurso artístico próprio em Macau. “Quando acabávamos os trabalhos de casa, íamos naturalmente à sua estante e tirávamos os livros de pintura e desenhávamos como gostávamos”, recorda. “Entre os cinco filhos, tenho a sorte de continuar ligado às artes, mesmo quando estou a trabalhar, fazendo desenhos e gráficos promocionais”, diz.
Tal como o pai, Lok Hei tem vindo a desenvolver uma forte presença ao nível do associativismo artístico local. Isso, afirma, leva-o a perceber melhor aquela que era a rotina do progenitor. “Ele estava sempre ocupado”, recorda. “Só quando eu andava no ensino secundário, e mesmo mais tarde, é que fiquei a conhecê-lo melhor, a perceber o seu trabalho e a sua contribuição” para a sociedade, diz.
Olhando agora para as obras expostas no Museu de Arte, Lok Hei salienta a complexidade por detrás de Lok Cheong: para lá do homem que conheceu como pai, há para descobrir um profícuo artista, um promotor das artes e alguém com elevado sentido cívico. “Mostrou-nos como nos mantermos firmes na sociedade, como sermos alguém que contribui para o bem comum, através de uma postura responsável nos nossos diferentes papéis”, conclui Lok Hei.