Precursor da moderna indústria da restauração em Macau, Yves Duron chegou ao território em 1989 para reforçar a cozinha do então Mandarin Oriental. Como chef executivo da unidade hoteleira, viveu alguns dos mais significativos momentos da carreira. Em 1999, foi ele o escolhido para robustecer e adoçar o regresso de Macau à administração chinesa. Há quatro anos trocou as cozinhas pela academia e assumiu uma nova missão, não menos desafiante
Texto Marco Carvalho
Abdicou da colher de pau e do avental e substituiu-os por cadernos e manuais, trocando a cozinha de um dos mais antigos e conceituados hotéis de cinco estrelas pelas salas de aula da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (MUST, na sigla em inglês), sem trair aquela que sempre foi a sua grande paixão: a arte de bem-cozinhar. Em Macau desde 1989, Yves Duron viu a cidade transformar-se num território com aspirações legítimas a pontificar nos grandes roteiros gastronómicos internacionais.
A metamorfose não se fez sem percalços e sem pruridos. Quando o chef francês, um dos precursores da moderna indústria da restauração em Macau, colocou pela primeira vez os pés no território, o número de hotéis que se compaginava com as normas internacionais abarcava-se pelos dedos de uma mão e para preparar uma refeição festiva ou uma ocasião especial era necessário, o mais das vezes, planificar com meses de antecedência.
“Naquela altura, tínhamos apenas três hotéis com padrões internacionais e uma das recordações mais fortes que tenho é das dificuldades de abastecimento. Recebíamos um carregamento por semana. É claro que vegetais e esse tipo de víveres conseguíamos adquirir no próprio dia, mas se quiséssemos carne da América ou produtos lácteos de França, o cenário era muito diferente”, recorda Duron.
“No caso da carne, recebíamos um carregamento uma vez por mês e, naquela época, era necessário pelo menos um mês para tratar das autorizações sanitárias. Basicamente, tínhamos de encomendar em Janeiro a carne que íamos confeccionar em Março. Por vezes, ficávamos com muito pouca coisa na despensa, mas arranjávamos sempre forma de nos desenrascar”, sustenta o agora docente.
Da meca do sabor para Macau
Yves Duron cresceu numa cidade que respira gastronomia. Situada na confluência entre os rios Ródano e Saône, ponto de passagem obrigatório entre o Mediterrâneo e o norte da Europa, Lyon cedo se tornou uma meca para o paladar.
“Estudei durante três anos numa escola de hotelaria em Lyon, onde me formei. Depois disso, trabalhei na cidade, fiz alguns estágios e acabei por ir parar ao Sofitel Lyon, que na altura estava a tentar alcançar uma estrela Michelin, o que acabou por conseguir. Depois disso, tropecei num grande obstáculo: o serviço militar obrigatório. Como não queria desperdiçar o meu tempo no exército, antecipei-me e candidatei-me a um lugar na Marinha”, conta.
A experiência encurtou o seu mundo e, nos idos de 1989, quando o convite para rumar para Macau chegou, o então jovem chef não hesitou. À sua espera, no Delta do Rio das Pérolas, uma cidade diminuta em tamanho, enorme em desafios e, ainda assim, estranhamente inebriante. Às dificuldades no acesso a ingredientes frescos, Macau respondia com uma diversidade invulgar, reminiscente do eclético ambiente onde cresceu.
Em termos profissionais, Macau proporcionou um intercâmbio perfeito. “O que digo hoje, nas salas de aula, aos meus alunos, é que estamos sempre a aprender. Como professor, o que faço é partilhar a minha experiência, mas acabo sempre por aprender com eles e o mesmo aconteceu com Macau. Aprendi muito quando vim para Macau. Foi para mim revelador descobrir a cozinha chinesa, os diferentes tipos de gastronomia chinesa. No caso da culinária portuguesa, conhecia muito pouco e Macau permitiu-me descobrir muito mais”, acrescenta.
Então sous chef no à época Mandarin Oriental, o jovem cozinheiro não demorou a aperceber-se de que Macau se postulava como um território propício à confluência de sabores.
“Há muita gente que alega que foi em Macau que surgiu a primeira comida de fusão do mundo e é, obviamente, verdade. A comida em Macau evoluiu. Os portugueses chegaram cá, trouxeram especiarias e tudo o mais, mas quando cá chegaram encontraram algo totalmente diferente daquilo que conheciam. Encontraram a comida chinesa e não tiveram outra solução senão adaptar-se. Trouxeram não apenas novos ingredientes, mas também novas técnicas. Diria que Macau sempre esteve no mapa no que toca à comida e continua a estar hoje em dia”, salienta.
Constante evolução
A gastronomia macaense foi, de resto, um trunfo fundamental no processo de inclusão do território na rede da UNESCO como uma Cidade Criativa da Gastronomia. A distinção reconhece a importância da tradição culinária clássica de Macau, mas, ao mesmo tempo, confere-lhe um novo e necessário fôlego.
A gastronomia macaense, defende Yves Duron, está condenada a reinventar-se. Preservar a sua alma é o grande desafio que enfrenta: “A culinária macaense tem uma natureza vincadamente caseira, muitas pessoas apontavam as receitas em cadernos e os ingredientes nem sempre coincidem a 100 por cento, mas isto é algo que acontece com frequência”, considera o chef francês.
“As pessoas necessitam de estar abertas à ideia de que qualquer prato tem um fundamento clássico, mas esse prato pode mudar, por exemplo, em termos de aparência. Isso não é propriamente um problema, desde que o gosto não mude e que os ingredientes fundamentais continuem lá. Há uma nova geração que está a emergir e que, apesar de se manter fiel às bases, de recorrer às mesmas técnicas, continua a misturar ingredientes e vai contribuir para uma gastronomia macaense melhor e mais elaborada”, complementa Yves Duron.
Depois de mais de 30 anos entre tachos e panelas, a transição para as salas de aula revelou-se um desafio quase tão grande como a maior empreitada de que o antigo chef foi incumbido, a de preparar o jantar de gala com que Macau se despediu de mais de 400 anos de administração portuguesa.
“A semana da transição foi um dos períodos mais intensos e mais desafiantes da minha carreira. Tivemos de criar uma aliança entre quatro hotéis para garantir o fornecimento de todos os eventos externos, fossem recepções para dignitários ou outros certames”, recorda. “Depois, tivemos o último jantar, em que para além do Presidente de Portugal e do primeiro-ministro, participaram 2800 pessoas.
Actualmente, um dos locais onde os futuros protagonistas da gastronomia macaense estão a despontar é o Laboratório de Culinária da Faculdade de Hospitalidade e Gestão Turística da MUST, onde Yves Duron lecciona desde 2020.
“Leccionar foi algo novo para mim. Já tinha cozinhado à frente de pessoas num restaurante, mas vestir a pele de docente, à frente dos alunos, era algo que nunca tinha feito. Assumi este desafio durante a pandemia da COVID-19 e tive miúdos que quando chegaram à sala não sabiam sequer como colocar o avental”, recorda o docente.
“No último semestre, estes miúdos tiveram a última aula antes de seguirem para estágio e é muito gratificante ver a evolução que tiveram. É a melhor recompensa que se pode obter”, conclui Yves Duron.