O Governo quer que o sector financeiro mantenha um peso na economia local acima dos 10 por cento nos próximos anos. A meta está definida na estratégia de desenvolvimento da diversificação adequada da economia da RAEM. Especialistas ouvidos pela Revista Macau consideram que o objectivo está ao alcance do território
Texto Marta Melo
O caminho para a diversificação adequada da economia da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) está definido e a indústria financeira moderna é um dos sectores–chave. A aposta encontra respaldo no âmbito da estratégia governamental “1+4” de diversificação adequada da economia.
Esta é uma das indústrias consideradas de desenvolvimento prioritário – em paralelo com as áreas da tecnologia de ponta, da “big health” e das convenções, exposições, comércio, desporto e cultura –, através do apoio do sector basilar do turismo e lazer. Assim se pode ler no “Plano de Desenvolvimento da Diversificação Adequada da Economia (2024-2028)”, aprovado no último trimestre do ano passado. Segundo o Governo da RAEM, a estratégia vai permitir “um futuro mais promissor” para Macau e possibilitar que, até 2028, as actividades não-jogo tenham um peso equivalente a cerca de 60 por cento no Produto Interno Bruto (PIB) de Macau.
No sector financeiro, o Executivo estabelece como trabalhos prioritários para os próximos cinco anos alargar o âmbito da indústria financeira, assim como optimizar e aperfeiçoar o software e hardware das infra-estruturas financeiras. O desenvolvimento do sector passará igualmente pelo reforço do regime de fiscalização e pelo desenvolvimento de projectos inovadores no âmbito da Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin.
A Autoridade Monetária de Macau (AMCM) reconhece que a indústria financeira local ainda “consiste principalmente em actividades tradicionais”. No entanto, “os sectores bancário e de seguros têm vindo a expandir-se em termos de activos e de dimensão”, sublinha o regulador. Simultaneamente, tem havido um “reforço do grau de internacionalização” e um “enriquecimento gradual” do sector ao nível da diversificação de produtos e serviços.
“O desenvolvimento de um sector financeiro moderno pode dar origem a novas áreas de actividades financeiras, o que, por sua vez, aumentará o peso da representação do sector financeiro no PIB e no emprego de Macau”, nota o organismo liderado por Benjamin Chan Sau San.
Sector de peso
António Félix Pontes, antigo presidente do Instituto de Formação Financeira, afirma que é “indiscutível” que o desenvolvimento do sector financeiro é determinante para o progresso da economia real de qualquer jurisdição. No caso de Macau, entende, a estratégia do Governo para a indústria está “correcta”, existindo “boas potencialidades de evolução”, argumenta.
Durante a pandemia de COVID-19, o sector financeiro mostrou resiliência e foi um dos menos afectados. Segundo dados oficiais da AMCM, em 2022, o peso do sector financeiro no valor acrescentado bruto de todos os ramos de actividade económica foi de 17,2 por cento contra 6,9 por cento em 2019. O sector superou mesmo o peso do jogo neste capítulo (15,2 por cento). Em Setembro do ano passado, o total de activos do sector financeiro atingiu 2,69 biliões de patacas, representando um aumento de 24,2 por cento em relação ao final de 2019.
No “Plano de Desenvolvimento da Diversificação Adequada da Economia”, o Governo realça que “a indústria financeira de Macau possui uma qualidade de activos estável, um rácio de solvabilidade estável, uma liquidez suficiente e uma boa rentabilidade, bem como um grau de internacionalização cada vez mais elevado”. É a partir desta base que é proposto o alargamento do sector rumo a uma indústria financeira moderna.
Para os próximos anos, a meta é manter o peso do sector financeiro acima de 10 por cento do PIB. Para Henry Lei Chun Kwok, docente do Departamento de Finanças e Economia Empresarial da Universidade de Macau, o objectivo é “relativamente fácil de alcançar”, dado o apoio do Governo Central no que toca à emissão de obrigações denominadas em renminbi em Macau, de forma a acelerar o desenvolvimento do mercado local. “O desenvolvimento contínuo da Zona de Cooperação Aprofundada em Hengqin e as medidas de apoio à mobilidade financeira transfronteiriça também podem ajudar os sectores bancário e financeiro de Macau a expandirem a sua escala”, acrescenta.
Também António Félix Pontes afirma ser “expectável” que o peso do sector financeiro se mantenha acima dos 10 por cento do PIB. Ainda assim, o economista nota que, “sobre o desenvolvimento do sector financeiro de Macau, os seus novos domínios vão demorar algum tempo a concretizar-se”, sendo de esperar que, “nos anos mais próximos”, continuem a ser os serviços financeiros tradicionais a ter ainda um maior relevo no PIB local.
Mercado de obrigações
Dentro dos domínios estratégicos para impulsionar o sector financeiro, o desenvolvimento do mercado de obrigações é uma das prioridades. Nesse sentido, pretende-se promover a conexão com os mercados de obrigações do Interior da China e a nível internacional.
Segundo a AMCM, o desenvolvimento do mercado de obrigações e das actividades de gestão de fortunas “contribuirá para o enriquecimento dos serviços existentes nos domínios de investimento e financiamento”. O organismo sublinha que o estabelecimento de um sistema de supervisão do mercado obrigacionista e, mais recentemente, em Novembro do ano passado, a implementação de um regime de registo para a emissão pública de obrigações, “contribuíram para aumentar as iniciativas dos emitentes” no que respeita à emissão de obrigações em Macau.
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Estão, entretanto, a decorrer trabalhos para actualizar as funcionalidades da Central de Depósito e Liquidação de Valores Mobiliários, entidade que fornece serviços de registo, depósito e liquidação de valores mobiliários, sendo uma peça-chave no mercado de obrigações local. O objectivo é interligar a central de depósito de Macau aos sistemas mundiais de depósito, de forma a facilitar “a participação das instituições internacionais no mercado obrigacionista de Macau, motivando-se a realização de transacções no mercado secundário”, refere a AMCM.
Em dois anos de existência, mais de 100 instituições abriram contas na Central de Depósito e Liquidação de Valores Mobiliários, sendo que cerca de um terço delas eram entidades locais. Segundo declarações em Janeiro do presidente da AMCM, Benjamin Chan, o valor dos títulos de dívida depositados na central ascendia já a um total de 95 mil milhões de patacas, incluindo obrigações emitidas pelo Ministério das Finanças da República Popular da China e obrigações do Governo Popular da Província de Guangdong. Até ao final do ano passado, tinham sido emitidas ou cotadas 394 obrigações em Macau, com um montante equivalente a 600,6 mil milhões de patacas.
“Dado o apoio do Governo Central, com o aumento da quantidade de obrigações em renminbi emitidas e negociadas em Macau, aliado ao estabelecimento de um mercado secundário líquido na RAEM, isso contribui para o desenvolvimento do mercado de obrigações, o qual tem uma posição de liderança no âmbito da indústria financeira moderna”, sustenta o académico Henry Lei.
António Félix Pontes concorda que o mercado de obrigações será o segmento que pode ter “ascendente sobre os demais, mas só a médio prazo”. “Tem as vantagens de criar uma fonte alternativa de obtenção de fundos e de reduzir a dependência aos bancos comerciais para o financiamento das necessidades de investimento ou de expansão das empresas”, afirma. Para o economista, o principal desafio no desenvolvimento de um mercado obrigacionista local reside na dimensão limitada do sistema bancário do território e respectivo apoio que pode fornecer.
Novas instituições financeiras
Importante para o desenvolvimento da indústria financeira moderna é a atracção de mais investidores e empresas do sector para Macau. A AMCM nota que, com a melhoria das condições e do ambiente de mercado, entre as autorizações concedidas nos últimos cinco anos, “existem 13 novas instituições financeiras recentemente instaladas em Macau”. As áreas de actividade abrangem os pagamentos electrónicos, o financiamento e a locação financeira, a gestão de fundos de investimento e a negociação de activos financeiros. “Esta circunstância permitiu enriquecer mais o panorama financeiro de Macau e reforçou gradualmente a função do território enquanto plataforma de investimento e financiamento”, defende o regulador.
Uma das áreas para as quais se pretendem atrair mais empresas para Macau é a gestão de fortunas. No “Plano de Desenvolvimento da Diversificação Adequada da Economia”, o Governo compromete-se a estudar a introdução de políticas de benefícios fiscais para impulsionar a instalação de sociedades de gestão de activos no território.
Este é o domínio apontado por António Félix Pontes como aquele que, “com grande probabilidade”, se posicionará em segundo lugar no desenvolvimento da indústria financeira moderna local. O economista afirma, no entanto, que há que “acautelar os inerentes riscos de evasão fiscal e branqueamento de capitais”.
Nas actividades cambiais transfronteiriças, a ideia é o alargamento das formas de negócio. O Governo quer estudar a introdução de uma plataforma para transacções de produtos financeiros “não padronizados”, permitindo às mini-empresas do Interior da China e de Macau obterem suporte de capitais.
A locação financeira é outro domínio a promover. O “Plano de Desenvolvimento da Diversificação Adequada da Economia” defende um aumento da divulgação das políticas em vigor na RAEM neste âmbito, procurando-se “atrair mais sociedades de locação financeira a instalarem-se em Macau”.
O futuro do sector financeiro passará também pelas chamadas “finanças verdes”. No “Plano de Desenvolvimento da Diversificação Adequada da Economia”, refere-se o estudo de um sistema de subsídio para a taxa de certificação na emissão de títulos de dívida verdes, bem como a introdução de produtos de gestão financeira verdes.
Para Henry Lei, as finanças verdes “têm um forte potencial”, dada a importância reconhecida à área da sustentabilidade. “É uma nova área de serviços financeiros em que Macau pode envolver-se, tendo o Interior da China como mercado principal, em linha com a transição económica e a transformação verde do país, para oferecer oportunidades de investimento e capital para investimentos e actividades inovadoras verdes”, diz o académico.
Os desafios de diversificar
Sobre o caminho para o desenvolvimento da indústria financeira moderna, Henry Lei começa por apontar a necessidade de aperfeiçoamento da regulamentação. “Enfrentamos o desafio de leis e regulamentos financeiros imperfeitos, nos quais os interesses das empresas e dos investidores não estão totalmente protegidos”, salienta.
O próprio “Plano de Desenvolvimento da Diversificação Adequada da Economia” reconhece isso, elencando uma lista de diplomas legais a rever ou criar de raiz. Entre eles estão a elaboração da Lei de Valores Mobiliários e a revisão da regulamentação ao nível da constituição e funcionamento dos fundos de investimento e das sociedades gestoras de fundos de investimento.
António Félix Pontes considera que tem havido “um esforço evidente” de melhoria no campo da regulamentação. O economista destaca o esforço de “actualização de alguns diplomas dos anos 1990”, cobrindo áreas como a “locação financeira, actividade seguradora, emissão monetária e sistema financeiro”, bem como a criação de “um enquadramento jurídico numa matéria nova, os ‘trusts’”. E acrescenta: “Decerto, outros se seguirão, com especial destaque para o mercado de obrigações”.
A AMCM recorda que, nos últimos anos, entraram em vigor cinco novos diplomas legais na área financeira. No ano passado, as leis fundamentais dos sistemas monetário e financeiro de Macau – respectivamente, o Regime Jurídico da Emissão Monetária e o Regime Jurídico do Sistema Financeiro – foram reformuladas e aprovadas. Ainda em 2023, procedeu-se à revisão de mais de 15 directivas e outros documentos de supervisão, cobrindo áreas como a banca electrónica, obrigações, projectos de inovação tecnológica financeira, fundos de oferta privada, actividades de hipotecas imobiliárias e o financiamento de prémios de seguro.
Para Kot Hung Wan, antigo coordenador dos cursos de licenciatura e mestrado em finanças da Universidade de Macau, um dos desafios que se colocam ao território no desenvolvimento de uma indústria financeira moderna é a formação e captação de talentos nesta área. O académico destaca, em particular, a necessidade de profissionais qualificados no campo da regulação financeira.
Para responder à procura por recursos humanos, o Governo quer apostar na formação, nomeadamente ao nível de cursos de ensino superior e de qualificação profissional, bem como na promoção de acções de valorização “on-the-job”. A finalidade é, de acordo com a AMCM, “formar uma equipa de quadros locais” e possibilitar “o aproveitamento, por parte da população activa, das oportunidades de emprego de alto valor acrescentado emergentes do sector financeiro moderno”.
Até 2028, o Governo projecta aumentar de 18 para 25 o número de cursos de ensino superior relacionados com a indústria financeira moderna. As directrizes para o desenvolvimento de Macau apontam ainda para a formação de profissionais com talentos integrados, como, por exemplo, “finanças + tecnologia” ou “finanças + direito”.
Ao longo do ano passado, a AMCM organizou já cerca de 160 cursos e seminários na área financeira, em colaboração com diversas entidades, envolvendo aproximadamente 6000 participantes. As iniciativas versaram sobre temas relativos ao mercado de obrigações, gestão de fortunas, finanças verdes, locação financeira e tecnologia financeira.
Nos seus planos de desenvolvimento de uma indústria financeira moderna, Henry Lei afirma que Macau enfrenta desafios como a competição por parte de centros financeiros “maduros”, casos de Hong Kong e Shenzhen, além de um ambiente internacional de taxas de juro elevadas e questões ligadas à conversibilidade total do renminbi. “São factores que influenciam o desenvolvimento da indústria financeira moderna, especificamente as obrigações em renminbi, locação financeira, gestão de património, finanças verdes e serviços de compensação em renminbi”, diz.
Complementaridade regional
A estratégia de diversificação adequada da economia “1+4” visa integrar Macau no desenvolvimento nacional, para servir as necessidades do país. A construção da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau “alargou o âmbito e o espaço de desenvolvimento do sector financeiro da RAEM, criando condições para o seu crescimento”, salienta a AMCM.
No contexto da Grande Baía, o organismo sublinha o projecto-piloto de “Gestão Financeira Transfronteiriça”. Constitui uma “medida inovadora para o impulsionamento da interligação e interconexão dos serviços financeiros” de Guangdong, Hong Kong e Macau, contribuindo para o reforço do fluxo e uso transfronteiriços do renminbi, é dito. A AMCM entende que a iniciativa é igualmente “susceptível de criar novas oportunidades comerciais” para o sector bancário local.
O projecto-piloto de “Gestão Financeira Transfronteiriça” visa a facilitação dos investimentos transfronteiriços individuais dos residentes na Grande Baía. O sistema foi fruto de optimização em Janeiro, tendo sido alargado o âmbito das instituições participantes, passando a ser incluídas empresas de valores mobiliários. Foi também ampliado o leque dos produtos qualificados de investimento e aumentado o limite máximo de investimento por parte dos investidores individuais, de um milhão de renminbi para três milhões de renminbi.
A cooperação financeira transfronteiriça passa, em particular, pela Zona de Cooperação Aprofundada em Hengqin, que é vista como “um importante ponto de partida para Macau participar na construção da Grande Baía”. Através da Zona de Cooperação Aprofundada, pretende-se a integração de recursos para desenvolver o mercado de obrigações e intensificar a interconexão dos mercados financeiros.
Na perspectiva de António Félix Pontes, o fluxo de pessoas, de mercadorias e de fundos no seio da Grande Baía pode criar “um amplo leque de oportunidades de negócio” para as instituições financeiras de Macau. Entre as possibilidades, o economista enumera as actividades financeiras e de seguros especializadas, bem como o acesso a novos mercados. Na relação com a lusofonia, António Félix Pontes defende que a Grande Baía pode também ser uma oportunidade em termos de comércio externo, seja através de seguros para cobertura de riscos comerciais e políticos, da concessão de linhas de crédito aos bancos centrais dos países lusófonos ou do relacionamento financeiro com instituições bancárias desses países.