Primeiro com relutância, depois com paixão. Palmira Pena assumiu a cozinha e a gestão do restaurante “O Manuel” e o que inicialmente se prefigurou um encargo rapidamente se tornou numa fonte de realização pessoal. Manter intocada a reputação que o restaurante forjou ao longo de três décadas exige dedicação, mas a jovem chef desencanta, ainda assim, tempo para o que entende ser uma missão: divulgar a gastronomia macaense
Texto Marco Carvalho
Fotografia Wong Sio Kuan
Filha de peixe sabe nadar. O adágio ilustra na perfeição o percurso de Palmira Pena entre panelas e tachos, mas o que agora se afigura como um desenlace evidente e uma verdade insofismável poderia muito bem não o ter sido. A mesma cozinha que hoje navega com desembaraço e naturalidade – a do restaurante “O Manuel”, na ilha da Taipa – acobertou ausências e foi, nos verdes anos da infância, fonte de inquietude, de desilusão e de mágoa, assume a jovem chef.
“Para ser honesta, quando era mais nova não era exactamente isto que eu queria seguir e que me via a fazer. Crescer num restaurante é complicado. O normal é os pais não terem tempo para os filhos e eu ficava um pouco triste”, recorda Palmira Pena.
O fruto, porém, nunca cai longe da árvore. Malgrado o desamparo da infância e o leve desdém que as lides da cozinha a determinada altura lhe inspiraram, Palmira Pena rumou a Montreux, na Suíça, para estudar gestão hoteleira.
“Quando fui para a Suíça estudar hotelaria era mesmo para trabalhar num hotel, como, de resto, aconteceu. O curso que frequentei abrangia gestão de negócios, gestão de cozinha, um pouco de tudo. Os meus primeiros empregos em Macau foram em hotéis, passei por vários. Fiz, inclusive, a abertura de algumas propriedades no território, hoje em dia bastante conhecidas”, sustenta a jovem chef. “Um dia chegou, no entanto, em que o meu pai se virou para mim e disse: ‘Pronto, tenho de me reformar. Não posso ficar aqui o resto da vida a trabalhar. O que é que achas de voltares para o restaurante e dares continuidade ao que eu comecei?”, recorda.
Em nome do pai
O que Manuel Pena começou, em 1992, não é coisa pouca. Situado mesmo à entrada da Rua Fernão Mendes, antes ainda da pitoresca artéria se abalançar pelo coração da Taipa Velha, o restaurante “O Manuel” construiu, ao longo das três últimas décadas, uma reputação sólida como ponto de passagem incontornável para quem quer descobrir ou matar saudades dos mais genuínos sabores da gastronomia tradicional portuguesa.
O fiel amigo, confirma Palmira Pena, está entre as iguarias mais solicitadas: “O bacalhau tem sempre muita saída. Mas as amêijoas, o arroz de marisco e os grelhados também são muito procurados. Os grelhados são uma das imagens de marca do restaurante e saem muito, mas o mais interessante é que, neste momento, os nossos clientes começam a gostar mais de guisados, como favas, que é um prato que não é fácil degustar. No entanto, eles querem entender um pouco mais sobre esta oferta, querem experimentar coisas novas”, ilustra a coproprietária do estabelecimento.
Arrastados pela popularidade crescente nas redes sociais e pelos comentários positivos de quem já se sentou à mesa do pequeno estabelecimento, os comensais chegam sobretudo de fora de Macau. Para muitos, a experiência, pela mão de Palmira Pena, constitui o baptismo de fogo no universo dos sabores portugueses.
“Desde que começaram a promover Macau como Cidade Criativa da UNESCO em Gastronomia que se nota um aumento dos turistas que procuram o restaurante. Os nossos clientes, praticamente, são de fora de Macau, sobretudo do Interior da China e de Hong Kong. Tirando alguns clientes regulares, que vêm cá há 20 ou 30 anos, temos sobretudo muita procura turística, atesta Palmira Pena.
Paixão e missão
Para o reforço da visibilidade e do bom nome internacional do restaurante contribuiu também o envolvimento, cada vez mais frequente, da jovem chef em iniciativas de promoção do potencial gastronómico de Macau, dinamizadas quer pela Direcção dos Serviços de Turismo, quer por entidades do sector. Nos anos que precederam a pandemia da COVID-19, Palmira Pena esteve por duas vezes na Austrália, onde deu a conhecer alguns dos pratos mais procurados de “O Manuel”, mas também um pouco daquilo que é a riqueza da gastronomia macaense.
“No restaurante não servimos comida macaense, mas se for por reserva, eu preparo. Se alguém me disser ‘quero um bafassá’ ou ‘quero um minchi’ ou ‘quero uma capela’, eu meto mãos na massa e faço. E faço porque não há muitos jovens chefs dispostos a dar continuidade ao legado da gastronomia macaense”, sustenta.
Filha de mãe chinesa e de pai português, macaense de primeira geração, a jovem cozinheira vê como fulcral a revelação e o fomento de um património que está, directa ou indirectamente, vincado ao seu ADN e à sua percepção do mundo.
“Para ganhar experiência e para conseguir chegar onde cheguei, fui bater à porta de algumas pessoas que conhecem bem a culinária macaense. Há certas pessoas – a chef Neta Manhão e a senhora Filomena da Costa, por exemplo – a quem eu estou imensamente grata, porque me ensinaram e divulgaram aquilo que sabem. Foram fundamentais para que eu pudesse cultivar a minha técnica, aprofundar a minha sabedoria e pudesse levar a gastronomia macaense a vários locais do mundo”, complementa Palmira Pena.
A cruzada pessoal em que embarcou para se familiarizar de forma mais convicta com um património que considera emocionalmente seu, é também, sustenta a jovem chef, a forma mais imediata de zelar pelo futuro de um saber multissecular e de contrariar equívocos. A gastronomia macaense nunca recebeu tanta exposição como hoje, mas também nunca esteve tão sujeita a ambiguidade, avisa a chef. “O que eu gostava mesmo é que as autoridades de Macau pudessem educar quem nos visita para que as pessoas pudessem saber qual é a diferença entre a culinária portuguesa, a culinária macaense e a culinária que se faz em Macau.”
Como o sangue é mais espesso do que a água, o enfado de outrora deu lugar à admiração e à convicção de que, mais do que um legado de família, a mítica cozinha é um amor para a vida toda.
“O meu pai para mim é um herói. Tanto ele, como a minha mãe. Foram eles que me ensinaram tudo o que sei sobre cozinha. Hoje sei bem o quão exigente é manter um restaurante de pé, mas vou continuar até não conseguir mais. Até chegar à idade do meu pai, se calhar”, remata Palmira Pena.