São várias as figuras de relevo para a história de Macau que se formaram na Universidade de Coimbra, uma instituição com mais de sete séculos. No entanto, a ligação entre o território e a universidade portuguesa não ficou parada no tempo: a colaboração tem vindo a acelerar, estendendo-se a novos âmbitos
Texto Marta Melo
O que possuem em comum nomes como o escritor macaense Henrique de Senna Fernandes, o antigo presidente da Assembleia Legislativa Carlos d’Assumpção, diversos governadores de Macau durante o tempo da administração portuguesa, como o Conde de São Januário ou Isidoro Francisco Guimarães, ou ainda D. Belchior Carneiro, fundador da Santa Casa da Misericórdia de Macau? Todas estas figuras do passado de Macau passaram pela Universidade de Coimbra (UC), em Portugal.
Na instituição de ensino superior, fundada em 1290 e uma das dez mais antigas do mundo, fizeram a sua formação cultural e científica muitos dos quadros portugueses – de entre médicos, políticos e dirigentes da administração pública – que vieram a trabalhar em Macau durante a governação portuguesa do território. Em sentido inverso, também para se formar em Coimbra foram muitos filhos de famílias ilustres macaenses.
Passada a transição de administração, a Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) não perdeu a ligação à UC: nos últimos anos, em particular, a colaboração entre instituições de ensino superior locais e a universidade portuguesa foi aprofundada. Ainda este ano, a Secretária para os Assuntos Sociais e Cultura do Governo da RAEM, Ao Ieong U, visitou a instituição. Mais do que prender-se no passado, as novas formas de cooperação olham para temas do futuro, do direito à tecnologia, da economia à inovação, e da gestão às ciências cognitivas e cerebrais.
Parceria estratégica
Um exemplo do aceleramento das relações existentes é a ligação entre a Universidade de Macau (UM) e a UC, que acaba de ser elevada à categoria de parceria estratégica de cooperação. O acordo foi assinado durante a visita da Secretária para os Assuntos Sociais e Cultura à universidade portuguesa. As duas instituições vão reforçar a cooperação académica e no campo da investigação, em áreas como o direito, a gestão de empresas, as relações internacionais, a inteligência artificial, a robótica e a neurociência.
“É o reconhecimento do papel da UC”, nota João Nuno Calvão da Silva, vice-reitor da universidade para as relações externas e alumni, que destaca o relevo da instituição enquanto “uma universidade que ajudou a estruturar, no contexto internacional, o direito e o ordenamento económico-social da RAEM”. E acrescenta, referindo-se à elevação da parceria: “Isso é de uma importância política e simbólica extremamente significativa”.
O objectivo é que, em conjunto, as duas instituições contribuam para a formação de quadros qualificados de alta qualidade. Uma das áreas em que a UM está focada é as ciências cognitivas e cerebrais, com negociações a decorrer para criar o primeiro doutoramento duplo entre a UC e a UM.
“Quando escolhemos esta área, fizemos estudos e dialogámos com os nossos parceiros em Coimbra”, afirma Rui Martins, vice-reitor da UM. “O desenvolvimento destas áreas de doutoramento é um sector fundamental para o desenvolvimento da investigação e para a formação de talentos quer para Macau, quer para a China e mesmo para outros países no mundo.”
No âmbito do reforço da cooperação, a UM e a UC assinaram igualmente em Maio um memorando envolvendo ainda a Universidade Renmin da China, para promoverem o desenvolvimento colaborativo entre as instituições e criarem mais oportunidades nos domínios científico e educativo. Segundo João Nuno Calvão da Silva, o protocolo assinado envolve actividades como a realização de workshops, seminários e conferências, partindo também para projectos de investigação conjuntos.
O papel do direito
A mais antiga área de cooperação entre a UM e a UC é o direito. A parceria começou com a criação da faculdade de direito da instituição de ensino superior de Macau, que teve lugar em 1991. “Os professores que davam os primeiros cursos, que eram apenas em português, eram professores catedráticos da Universidade de Coimbra”, recorda Rui Martins.
Desta cooperação resultou a tradução de muitas obras no campo do direito, de português para chinês, e a criação da licenciatura em direito em língua chinesa, em 1996. “Foi muito importante – e continua a ser – essa colaboração com a UC”, refere o responsável.
Trata-se de um passado que João Nuno Calvão da Silva diz que a UC procura honrar, buscando “intensificar, consolidar e aprofundar a cooperação” com a RAEM, nomeadamente através das várias instituições de ensino superior do território. Macau “representa para nós uma responsabilidade imensa para o presente e para assim trilharmos o futuro das relações entre Portugal, a RAEM e a República Popular da China”, afirma.
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A Universidade Politécnica de Macau (UPM) é outra das parceiras locais da instituição portuguesa. À Revista Macau, um porta-voz da UPM recorda que foram assinados diversos acordos ao longo dos últimos 20 anos com a congénere portuguesa, assim como tem havido “um importante fluxo de docentes e estudantes” entre as duas instituições. “Para contribuir para aprofundar o papel de Macau como plataforma de serviços entre a China e os países de língua portuguesa, a cooperação entre a UPM e instituições de ensino superior dos países de língua portuguesa é muito relevante”, é sustentado.
Com a Universidade da Cidade de Macau, a UC lançou um programa de estudos avançados em relações económicas internacionais, ministrado em inglês, fruto de um acordo assinado em 2021. É um “eixo complementar” da ligação da universidade conimbricense à RAEM, afirma João Nuno Calvão da Silva, acrescentando que a instituição também tem desenvolvido algumas iniciativas com a Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau, “nomeadamente nesse reforço da relação entre universidades e empresas na área do empreendedorismo”.
Para o responsável português, os cursos conjuntos são “uma etapa natural de todo o caminho” de cooperação com as instituições congéneres de Macau. Mas pode não ser o único. “O online pode ser também um outro eixo para intensificarmos a internacionalização [da UC] para a China e para a RAEM.”
Tecnologias a unir Macau e a UC
A área das tecnologias e inovação tem sido uma das apostas na cooperação entre a UPM e a UC no âmbito da formação de quadros qualificados. As duas universidades, além de terem acordado em Agosto o lançamento de um duplo doutoramento em tecnologia de informação, colaboram no Laboratório Conjunto de Tecnologias Avançadas de Cidades Inteligentes entre a Universidade Politécnica de Macau e a Universidade de Coimbra, um projecto oficialmente inaugurado em Portugal este ano. São iniciativas que, para a UPM, “são muito relevantes porque representam uma nova fase de cooperação focada em torno da tecnologia e inovação, que complementa a cooperação anterior em outras áreas, como as línguas”, refere o porta-voz da instituição.
O doutoramento substituiu o programa doutoral conjunto em Ciências e Tecnologias da Informação que tinha sido lançado em 2019 pelo então Instituto Politécnico de Macau (a elevação a universidade aconteceu no ano passado) e a UC, o qual conta presentemente com quatro alunos de Macau inscritos.
À Revista Macau, Henrique Madeira, coordenador do doutoramento pelo lado da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UC, explica que até agora o programa doutoral estava apenas disponível para alunos da RAEM. No entanto, no novo acordo de co-tutela, esta limitação “não existe”. A parceria com a UPM, continua, “promete atrair alunos de doutoramento de grande potencial, não apenas estudantes da China que pretendam ter um diploma de doutoramento da UC, mas também estudantes do nosso doutoramento em engenharia informática que vêem com interesse o desenvolvimento vertiginoso da informática no mercado de trabalho chinês”.
Nesta cooperação, a UPM defende que, juntas, as duas instituições “proporcionam um ambiente único para o desenvolvimento de talentos, com uma ampla variedade de oportunidades para os jovens”. De acordo com o porta-voz da instituição, “as duas universidades não só partilham recursos educativos e de investigação, mas também a sua rede não sobreposta de parcerias na China – em particular na Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau –, nos países de língua portuguesa e na Europa”.
Na partilha de conhecimentos, a UC faz já uso de um sistema desenvolvido na UPM e destinado à monitorização e avaliação ambiental para fins de protecção do património cultural. O sistema está a ser utilizado para apoiar os trabalhos de preservação da Biblioteca Joanina, uma das jóias do património histórico da universidade portuguesa.
Uma ponte para a lusofonia
A relação entre as duas universidades conheceu mais um importante passo este ano, com a assinatura de um acordo para a tradução para português de livros de referência de medicina tradicional chinesa. O projecto envolve ainda o Centro de Ciências da Saúde da Universidade de Pequim. À UC caberá a publicação, promoção e divulgação dos livros nos países e regiões de língua portuguesa.
No quadro dos países de língua portuguesa, Rui Martins fala de “uma cooperação forte” da UM com a congénere lusa através da Associação das Universidades de Língua Portuguesa (AULP). “Temos colaborado com a universidade na aproximação aos países de língua portuguesa e estamos a dinamizar o programa de mobilidade de estudantes na AULP”, refere o responsável.
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No posicionamento de Macau como plataforma, Rui Martins destaca ainda a Aliança Bibliotecária Académica entre a RAEM (China) e os Países de Língua Portuguesa. É uma iniciativa da UM, lançada pelo seu 40.º aniversário, e que junta duas dezenas de instituições dos países de língua portuguesa, entre elas a UC, e outras tantas da China.
Para a UPM, a colaboração com a UC “acelera o valor de Macau como plataforma” entre a China e a lusofonia. “A UPM tem uma ampla rede de relações académicas na China e [em particular] na Grande Baía, enquanto a UC tem muitas ligações fortes com instituições académicas no mundo de língua portuguesa. Ao se criar projectos que envolvem cada vez mais parceiros mútuos, está a ser dado um importante contributo para o papel de Macau como plataforma”, é salientado por parte da UPM.