Macau celebrou em Outubro o centenário do nascimento do proeminente escritor Henrique de Senna Fernandes. A vida e obra do autor macaense, nascido em 1923 e que faleceu em 2010, são passados em revista num ensaio da historiadora Tereza Sena, com vasta obra publicada sobre o território
Texto Tereza Sena*
Henrique de Senna Fernandes tinha sempre algo de irreverente, quase infantil por vezes. Jovial, riso pronto, mas capaz de se emocionar, brincalhão e um olhar malandro que tudo queria abarcar, registar e desfrutar. Desde a beleza feminina, à arte, à literatura, muito ao cinema, à gastronomia, às pessoas sem distinções, à vida em suma.
Essa sua curiosidade, o gosto pela leitura e o encanto pelas histórias que foi ouvindo desde o berço – ou indagando ao calcorrear as ruas da Macau que tanto amava, que classificava de única e de fascinante, e dizia ser a sua Mátria –, conduziram-no à paixão da sua vida: comunicar e escrever. Por isso, preferiu sempre a actividade de professor, que exerceu de forma cativante e próxima aos seus alunos, à de advogado.
E o que nos legou foi como que uma antropologia literária, uma ficção de costumes romanceando vivências e registando memórias de pessoas, práticas, tradições, crenças, edifícios, ruas, bairros e lugares de uma Macau de outros tempos, mas também do seu. Algumas referências mais autobiográficas, outras traçando a psicologia social da cidade, com humor e crítica, descrevendo o fosso entre os universos chinês e português, e explorando a interculturalidade quase sempre através da trama amorosa. Outras ainda cultivando a exemplaridade, edificante, senão mesmo moralizante, e, acima de tudo, passando testemunho às gerações vindouras quanto ao significado do ser-se macaense, através da construção de um lugar mítico e de uma memória em que o grupo se reveja e se reinvente.
Henrique de Senna Fernandes tornou-se assim no mais famoso e apreciado escritor português natural de Macau dos tempos modernos, mesmo além-fronteiras, que muitos ainda recordarão, visto ter falecido apenas há cerca de uma década. Faria este ano 100 anos.
Tracemos-lhe então uma muito sucinta biografia, pondo em relevo não apenas a sua obra, mas como a escrita e a vida de Senna Fernandes se entrecruzam com a Macau da sua época.
O homem
Henrique Rodrigues de Senna Fernandes nasceu em 15 de Outubro de 1923 em Macau, na freguesia da Sé, no seio de uma família tradicional macaense. Em 1939 viveu episodicamente em Cantão, onde o pai passara a gerir uma unidade hoteleira na ilha de Shamian (também conhecida por Shameen e então uma concessão franco-britânica) depois de ter sofrido, no ano anterior, um grande desaire financeiro no mercado bolsista. Contudo, logo em Outubro desse ano, foi a família afectada pela ocupação japonesa, vivendo momentos de grande violência e dificuldades financeiras. Acabaram por regressar a Macau, onde o jovem Senna Fernandes concluiu a instrução secundária. Estando-se então em 1942, no auge da Guerra do Pacífico e Segunda Guerra Mundial, só em 1946 pôde o nosso biografado partir para Portugal a fim de prosseguir os seus estudos, licenciando-se em direito pela Universidade de Coimbra em 1952.
Por tudo isso, Henrique nunca esquecerá os tempos da Guerra do Pacífico, que constituem uma referência constante na sua escrita ficcional, sendo, mesmo, o cenário que escolheu para um dos seus últimos romances, “A Noite Desceu em Dezembro”. Não conseguiu infelizmente dar-lhe o desenvolvimento que pretendia, mas a obra revela essas reminiscências, sem esquecer a dimensão histórica que lhe soube inculcar, ou não tivesse sido história uma das paixões de Senna Fernandes e a disciplina que mais gostou de leccionar. Chegou até a confessar ter sido a vivência dessa experiência que o fez despertar para a dura realidade da vida e abandonar a presunção e a arrogância – quiçá estimuladas pela ainda dominante valorização social das suas origens aristocráticas – que marcaram a sua juventude, exemplaridade essa que também transpôs para a escrita.
Após ter concluído o estágio em Portugal, regressou a Macau em 1954 onde exerceu advocacia de forma continuada, tendo presidido à associação local dos advogados entre 1992 e 1995 e desempenhado, na interinidade, as funções de juiz de direito e de delegado do Ministério Público. Mas não só.
O jovem Henrique de Senna Fernandes, que antes da sua partida para Portugal fora professor do ensino primário oficial, leccionou depois na Escola Comercial Pedro Nolasco da Silva, que dirigiu durante 11 anos, e na Escola do Magistério Primário, tendo ainda sido director interino do Centro de Informação e Turismo e presidido à comissão executiva do Grande Prémio de Macau em 1967 e em 1986.
Em 1 de Agosto de 1955, foi nomeado bibliotecário interino das bibliotecas Nacional de Macau e Sir Robert Ho Tung mas, em 26 de Janeiro de 1962, o Ministério do Ultramar optou por Luís Gonzaga Gomes (1907-1976), que há anos se vinha dedicando à pesquisa e organização documental de Macau, com fortes ligações a Portugal e concretamente àquele ministério e suas dependências científicas. Contudo, após a aposentação de Luís Gonzaga Gomes em 1968, Senna Fernandes voltará a ocupar o lugar de bibliotecário, detendo-o até 1981.
Dotado de consciência política, integrou o Conselho Legislativo de Macau antes de 1974, e, depois, a Associação para a Defesa dos Interesses de Macau (ADIM), de que foi sócio-fundador, para além de diversos conselhos e comissões, nomeadamente os conselhos de educação e de cultura de Macau. Pelos serviços prestados à causa da educação, foi agraciado com a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique em 1987, possuindo, desde 1978, o grau de Oficial da Ordem da Instrução Pública.
O escritor
Iniciando-se na escrita muito jovem, Senna Fernandes viu, ainda estudante, o seu conto “A-Chan, A Tancareira” ser distinguido nos Jogos Florais da Universidade de Coimbra de 1950 com o Prémio Fialho de Almeida. Depois de divulgado localmente na revista Mosaico, em 1956, viria, em Março de 1974, a constituir um opúsculo da colecção “Cadernos Capricórnio”, publicada no Lobito, em Angola, e destinada “a revelar e a divulgar temas e autores do mundo tropical de expressão portuguesa”. Foi, mais tarde, incluído na colectânea “Nam Van. Contos de Macau” – publicada em edição de autor em 1978 e reeditada pelo Instituto Cultural de Macau em 1997 – cujas primeiras versões chinesa e inglesa, da responsabilidade da Praia Grande Edições, foram lançadas no Festival Literário “Rota das Letras” de 2020, ficando-se a dever respectivamente a Chris Song e a David Brookshaw, este último académico ligado à Universidade de Bristol, no Reino Unido.
Em 1986 e 1993, surgirão os romances “Amor e Dedinhos de Pé”, que constituiu um imediato sucesso editorial com sucessivas reedições, e “A Trança Feiticeira”, ambos traduzidos para chinês por Yu Hui Juan, em 1994 e 1996 respectivamente. O último foi também vertido para inglês em 2004 por David Brookshaw. Do primeiro resultou o filme homónimo, realizado por Luís Filipe Rocha, comercializado em Portugal nos primeiros dias de 1993.
“A Trança Feiticeira”, por seu turno, despertou a atenção dos irmãos Cai Yuan-Yuan e Cai An-an, que adaptaram a obra para cinema e realizaram o filme que, com o mesmo título, se estreou em Macau em Junho de 1996, após bom acolhimento na República Popular da China. Teve banda sonora original composta pelo maestro brasileiro Oswaldo Veiga Jardim, de há muito radicado em Macau. Este romance foi ainda adaptado e encenado pelo actor Rui Brás, que, em 1997, dirigiu a representação do Grupo de Teatro da Escola Comercial Pedro Nolasco da Silva, também levada à cena em Portugal, onde fez uma curta digressão em Julho do mesmo ano.
Socorrendo-se da sua própria vivência, das memórias familiares e das da comunidade, Henrique de Senna Fernandes retrata, não sem alguma crítica implícita, e acentuando o fosso existente entre os universos chinês e português, os ambientes e pequenos dramas, familiares e sociais, de uma Macau já desaparecida. Para isso, recorre frequentemente à relação amorosa, às virtudes morais e à integridade de carácter dos seus personagens para a regulação de tensões, preconceitos sociais e relações interétnicas.
Empenhado em fixar e preservar a memória e as vivências da sua terra, sobretudo os costumes, hábitos e tradições macaenses, novo livro de contos do autor, reunidos sob o título de “Mong-Há”, surgiu em 1998 sob a chancela do Instituto Cultural.
Em Setembro de 2012, foi postumamente editado também pelo Instituto Cultural um romance que deixou inacabado, visto que pretendia acrescentar-lhe um segundo volume cujo enredo se estenderia até 31 de Dezembro de 1961, ou seja, até à grande reforma do jogo em Macau e início da actividade da Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, que para sempre alterou os destinos da cidade. Falamos de “Os Dores” – também já traduzido para chinês em 2015 – surgido graças à persistência dos seus filhos, nomeadamente de Miguel de Senna Fernandes.
Em Novembro de 2015, seria a vez de “A Noite Desceu em Dezembro”, obra com que o autor respondera em 2004 ao repto do jornal Ponto Final, convocando cinco autores para, ao longo de um ano, escreverem um romance em formato de folhetim semanal para ser dado à estampa naquele diário. Com a sua publicação integral e em livro, alcançou-se o quarto e, até ao presente, último volume da “Obra Completa de Henrique de Senna Fernandes”, editada pelo Instituto Cultural. Como já se referiu, em “A Noite Desceu em Dezembro” é retomado o cenário da guerra, que tanto marcara Senna Fernandes na sua juventude – e a vida da sua primeira mulher, Ho Heong Sut, Maria Teresa Hó pelo baptismo (1932-2001) –, mas que, segundo o autor, constituiu o ponto de ruptura definitiva com a Macau tradicional, retrógrada e fechada sobre si própria.
O cinéfilo
Colaborador na imprensa, nomeadamente do jornal Notícias de Macau (1947-1975) e das revistas Mosaico (1950-1957) e Boletim do Instituto Luís de Camões (1965-1981), a cujos órgãos sociais pertencia, Henrique de Senna Fernandes foi orador em inúmeras conferências, palestras e sessões culturais e um contista nato.
Também foi um cinéfilo apaixonado(1) e autor de diversos artigos sobre o cinema em Macau, a que deu início na década de 1970 nas páginas do jornal Confluência — que chegou mesmo a dirigir —, tendo durante vários anos assegurado a crítica cinematográfica na antiga Emissora Nacional de Macau e sido o responsável pela cinematografia na comissão executiva do Instituto Luís de Camões (1965). Partindo daqueles textos e da informação coligida ao longo de uma vida, Senna Fernandes retomaria o tema nas páginas da Revista de Cultura (edições portuguesa e inglesa) entre 1991 e 1997, em artigos que foram reunidos em volumes autónomos pelo Instituto Internacional de Macau em Novembro de 2010, cerca de um mês após o desaparecimento do autor.
Esta obra, “Cinema em Macau. Desde o início do século XX até a década de 30”, profusamente ilustrada e documentada, é um contributo fundamental, quer para história do cinema em Macau como, e sobretudo, para a caracterização da sua sociedade, já que, de par com a história das casas de espectáculo, equipamentos, negócio, proprietários e público, se inventaria a oferta fílmica a que Macau teve acesso. Nela ainda se discorre sobre as reacções e emoções que essa moderna e poderosa forma de comunicação suscitou na cidade periférica e como esta acompanhava o evoluir dos acontecimentos a nível mundial. Ensaios de filmologia quase, acentuando a dimensão antropológica, e até histórica, da escrita de Senna Fernandes, que ultrapassa o campo meramente ficcional a que um olhar menos atento a poderia eventualmente limitar, aspectos que merecerem quem os estude e eventualmente complete, sobretudo no que respeita à filmografia em língua chinesa.
O legado
Por o que se disse, seria importante que o Instituto Cultural prosseguisse com o projecto de reunir a “Obra Completa de Henrique de Senna Fernandes”, que oportunamente chamou a si, continuando a reeditar títulos, publicar inéditos e a fazer traduzir as suas obras para chinês e inglês. Assim, e no que concerne à reedição das suas obras, temos ainda em falta os textos dedicados ao cinema e os livros de contos. Mas seria fundamental reunir os artigos que deixou dispersos na imprensa diária e revistas, locais, portuguesas e estrangeiras, e que vão desde o conto, à crónica, à recensão, ao artigo político, memorialista e de opinião, versando temas literários e antropológicos, entre muitos outros certamente.
Entrevistas; registo iconográfico, sonoro e audiovisual; manuscritos e objectos pessoais — se a família assim o entender —, bem como a bibliografia passiva e a activa que publicou no exterior, completariam o acervo que deveria integrar o espólio da Casa da Literatura de Macau. E a proposta é válida para este e outros autores, por forma a transformá-la numa entidade depositária, mas também impulsionadora do estudo do património literário da cidade, e, por isso, passível de alimentar outros projectos como os de história oral, ou memorialista, em torno de temas tão relevantes como, por exemplo, a Guerra do Pacífico; a transição e transferência de administração de Macau; os inícios da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), entre outros. E porque não também, e dando apenas um exemplo, a criação de roteiros e guias literários capazes de proporcionarem a tão desejável e apregoada diversificação da oferta cultural, e de alimentarem uma oferta turística diferenciada para Macau?
Quanto aos inéditos de Senna Fernandes ainda existentes — já que muito lamentava a perda de outros na sequência de um incêndio ocorrido na zona do seu escritório — sabe-se, pelo menos, da existência de “O Pai das Orquídeas”, em que o autor trabalhou aturadamente, produzindo diversas versões. Por isso, a sua edição levanta problemas de selecção e de fixação de texto (ou quiçá de textos alternativos oferecendo narrativas paralelas, acrescento eu), e não dispensa a intervenção de um, ou mais, especialistas, o que naturalmente só poderá ser concretizado com apoio institucional. “Os Filhos das Nuvens e da Chuva” seria o título de uma outra obra, por vezes referida em entrevistas e textos sobre o autor, mas sobre a qual o seu filho Miguel confessou nada saber.
Ligado às principais associações locais, Henrique de Senna Fernandes foi presidente da comissão directora da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM), também integrada por José Manuel Rodrigues (1952-2023) e Edith Silva, cuja acção foi decisiva para a instalação da actual Escola Portuguesa de Macau, inaugurada em 1998.
Por tudo o que se disse, Senna Fernandes mereceu reconhecimento institucional e a estima da comunidade. Para além das muitas condecorações portuguesas, foi agraciado com a Medalha de Mérito Cultural pelo Governo da RAEM em 2001; eleito Académico Correspondente da Academia Internacional da Cultura Portuguesa em 2003, e feito Doutor Honoris Causa em Literatura pelo Instituto Inter-Universitário de Macau e pela Universidade de Macau em 4 de Novembro de 2006 e em 10 de Dezembro de 2008, respectivamente.
Henrique de Senna Fernandes faleceu em Macau em 4 de Outubro de 2010, nas vésperas de completar 87 anos. Para trás fica um exemplo de vida dedicada a Macau, plenamente vivida, mas também o lamento de, por não dominar o idioma escrito, não ter conhecido mais profundamente o mundo chinês e a sua literatura.
* Investigadora Convidada do Centro de Estudos das Culturas Sino-Ocidentais, Escola Superior de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Politécnica de Macau
Nota 1 Este artigo é uma versão resumida e adaptada de um capítulo — onde se ensaia a construção de uma narrativa familiar plausível, focando aspectos frequentemente omitidos no discurso biográfico conhecido de Henrique de Senna Fernandes — de um livro da autoria de Tereza Sena ainda inédito (cuja edição chinesa se aguarda para breve), intitulado “Alguns Autores Portugueses de Macau dos Séculos XIX e XX ― Tou Sang e Kwai Lo”. O trabalho foi produzido no âmbito de um projecto de investigação científica do Centro de Estudos das Culturas Luso-Ocidentais da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Politécnica de Macau, entidade à qual se agradece a permissão para inclusão neste número da Revista Macau, associando-se assim à comemoração do centenário do nascimento de Henrique de Senna Fernandes.
Nota 2 As fotografias que ilustram este artigo, da autoria de Lúcia Lemos, fazem parte da obra “Fragmentos – O Olhar de Henrique de Senna Fernandes”, de Lúcia Lemos e Yao Jingming, tendo sido gentilmente cedidas pela autora.
(1) É curioso o depoimento em que Henrique de Senna Fernandes nos revela a influência que nisso teve no seu primo Bernardino de Senna Fernandes (1916-2008), designer e pintor. Conhecido como Néni – “o primo favorito da minha infância e primeiros tempos da adolescência”, nas palavras do autor –, era um magnífico contador de histórias e aquele que também o terá iniciado na literatura policial. Vide o catálogo da exposição que esteve patente ao público na Galeria da Direcção dos Serviços de Turismo de 14 a 26 de Janeiro de 1992, “Bernardino de Senna Fernandes”. Macau: Associação dos Antigos Alunos do Liceu Nacional Infante D. Henrique, 1992.