Local e universal, vetusto e contemporâneo, obsolescente e ameaçado, mas, ainda assim, mais relevante e mais exposto do que nunca. Trinta anos depois de ter subido ao palco pela primeira vez, o teatro em patuá do grupo Dóci Papiaçám di Macau condensa em si forças e furores o mais das vezes antagónicos, mas é também a mais perfeita síntese do multiculturalismo em Macau
Texto Marco Carvalho
No palco, como na vida, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. A morte, em Março de 1993, de José Inocêncio dos Santos Ferreira confrontou a comunidade macaense com a mais insustentável das inquietudes, a do fim anunciado de uma era.
Quando faleceu, o grande cultor da projecção do patuá na segunda metade do século XX já não escrevia uma nova récita há 16 anos. A última rábula em maquista rubricada por Adé subiu ao palco em Abril de 1977, mas a longa década e meia em que “a dóci lingu di Macau” esteve ausente do espaço público nem por isso suavizou a intensidade do abalo emocional que o desaparecimento de José dos Santos Ferreira suscitou no seio de uma comunidade melindrada pela incerteza.
“O nosso saudoso amigo Adé morreu no dia 24 de Março de 1993 e, como não podia deixar de ser, todos os macaenses ficaram tristes e consternados com o facto. A ideia, na altura, era que se tinham acabado as récitas, que se tinha acabado o dialecto. Que, de uma forma ou de outra, era também a morte do dialecto”, recorda Fernanda Robarts, uma das arquitectas – a par de Sónia Palmer e de Marina de Senna Fernandes – da reabilitação do teatro maquista.
O luto e a orfandade cedo se transverteram em algo mais: o desejo de honrar a memória de Adé, de lembrar o seu legado, de salvaguardar a sua obra. A 3 de Abril de 1993, nove dias depois da sua morte, o “pai do patuá de Macau” é homenageado na Casa Garden e é neste desparamentado e quase espontâneo acto de saudade que está a génese do que viria a ser o grupo Dóci Papiaçám di Macau.
“No dia 30 de Outubro deste ano faz 30 anos da nossa primeira actuação, mas, rigorosamente, a ideia de formar o grupo nasceu no dia 3 de Abril de 1993”, evoca Fernanda Robarts. “O Adé morreu a 24 de Março e, uns dias depois, um grupo de amigos decidiu prestar-lhe uma pequena homenagem na Casa Garden, cantando e declamando algumas das suas canções e poemas. Entre os presentes estava a viúva de Adé, estava uma irmã dele, o seu filho José, além de outras individualidades”, acrescenta.
O singelo tributo a José dos Santos Ferreira foi como que o insuspeito impulso de onde brotou o renascimento cultural da comunidade macaense. A reabilitação do teatro em patuá, a 30 de Outubro de 1993, é fruto de uma inusitada conjugação de vontades e circunstâncias, da visita de Mário Soares, então Presidente de Portugal a Macau, ao alento e encorajamento de Monsenhor Manuel Teixeira.
“No final da actuação na Casa Garden, fomos muito felicitados pelos presentes, entre eles Monsenhor Manuel Teixeira, um grande historiador de Macau. Foi ele que, no fim, nos disse: ‘Vocês actuaram muito bem. Mas têm de continuar, não podem deixar morrer este dialecto. Vocês têm de continuar a obra do Adé’”, recorda Fernanda Robarts. “E foi com este incitamento, com este encorajamento do Padre Manuel Teixeira que nasceu a ideia de formar o grupo Dóci Papiaçám di Macau.”
A diversidade como trunfo
O regresso ao palco das rábulas em patuá, após mais de 16 anos de interregno, com um jovem Miguel de Senna Fernandes a procurar ocupar o abissal vazio deixado por Adé, dificilmente se poderia ter materializado em circunstâncias mais sui generis. Na noite em que o histórico Teatro D. Pedro V reabriu, após um prolongado período de renovação, ao Dóci Papiaçám di Macau – baptizado dias antes, num golpe de génio, por Fernanda Robarts – coube a responsabilidade de abrir uma noite de gala, com Mário Soares como convidado de honra.
Em pouco mais de vinte minutos, o grupo exorcizou receios e angústias e insuflou um novo sopro de vida na centenária tradição do teatro em patuá. “Olâ Pisidénte” marcou o arranque de uma longa, incerta e exigente aventura, uma caminhada laboriosa composta por centenas de horas de palco e pela entrega de muitos, que culminou com a inclusão, em 2021, do teatro em patuá na Lista Nacional de Itens Representativos do Património Cultural Intangível da China.
“Esta distinção é um trunfo e um triunfo. É um trunfo porque é a língua que dá um cunho especial a esta forma satírica de se estar no teatro. É um trunfo porque destaca o que há de diferente nesta terra. E é um triunfo porque, no fundo, é um reconhecimento. É uma espécie de vitória por algo que conseguimos e que é reconhecimento além-fronteiras, além dos limites de Macau, a nível nacional”, destaca Miguel de Senna Fernandes.
“O teatro em patuá em Macau nunca foi um teatro que tivesse características físicas especiais: não há trajes, não há uma música típica. Não há nada disso. Mas é um teatro que traz algo de novo, antes de mais, porque se trata de comédia. É uma forma irónica de fazer comédia, coisa que é rara em Macau. Elege a comédia satírica, numa sociedade que ainda é muito conservadora e muito fechada”, argumenta o encenador, dramaturgo e linguista. “Por outro lado, se bem que a maior parte do auditório seja macaense ou português, a verdade é que actuamos perante uma audiência cada vez mais diversa. Já disse por mais do que uma ocasião que o teatro em patuá não é mais do que uma plataforma do multiculturalismo em Macau e isto não pode ser visto se não como mais uma especificidade.”
Para Paula Carion, a sujeição sem pruridos à diversidade a que Miguel de Senna Fernandes se refere explica, em parte, a sobrevivência e a longevidade do projecto do Dóci Papiaçám. Quando a antiga karateca se juntou aos bastidores do grupo, em 2006, o receio de que as récitas em maquista pudessem desaparecer já há muito tinha sido afastado, mas o teatro em patuá, considera Paula Carion, só conquistou verdadeiramente projecção quando deixou de se balizar em exclusivo pela comunidade macaense.
“O teatro em patuá, o trabalho feito pelo Dóci Papiaçám, é um reflexo da evolução da cidade e da sociedade de Macau. Não nos podemos limitar a usar o patuá ou a usar apenas português e patuá. Há outras formas de olhar para Macau, a sociedade mudou, a cidade mudou e, com isso, o nosso trabalho também mudou. Este ano acrescentámos personagens a falar mandarim pela primeira vez. Sei que há pessoas que não gostaram, mas essa é cada vez mais a nossa realidade”, sustenta Paula Carion.
Em 2007, quando subiu pela primeira vez ao palco, ao lado do pai, José Carion, a antiga atleta pouco ou nada sabia da “dóci lingu di Macau”. Agora é, com Anabela Ritchie, antiga presidente da Assembleia Legislativa, responsável pelas legendas que permitem que a arte e a sátira do Dóci Papiaçám di Macau cheguem, desde há mais de uma década, a um público bem mais vasto.
“Eu não falava patuá. Só aprendi patuá depois de ter começado a colaborar com o Dóci Papiaçám di Macau, através da participação nas récitas. No início, sou sincera, não compreendia o papel, as palavras ou o guião do Miguel. Limitava-me a memorizar tudo”, admite Paula Carion. “Foi quando comecei a traduzir as legendas que comecei, de facto, a aprender a língua. O trabalho de tradução não é muito difícil, porque o patuá é uma língua bastante simples: tens o passado, o presente e o futuro. Não é exactamente como o português, onde é necessário dominar verbos e conjugações. O mais das vezes deixei de fazer traduções directas. Sei que tipo de mensagem o Miguel está a tentar transmitir e não me fico pela tradução literal. Opto por tentar transmitir a mensagem que eu sei que o Miguel está a tentar passar”, explica.
Sangue novo e perseverança
Aprender o maquista, sustenta José Carion, é o menor dos desafios na difícil missão de assegurar a continuidade do teatro em patuá. Para a generalidade dos linguistas, o crioulo de Macau é um idioma tecnicamente morto, com uma natureza eminentemente performativa, e sobrevive no palco graças ao esforço, à entrega e à devoção daqueles que, ao longo das três últimas décadas, deram corpo ao Dóci Papiaçám di Macau.
Se dependesse de José Carion, o futuro das récitas teatrais e do próprio dialecto estavam assegurados. Desde que actuou pela primeira com o grupo em 2007, José Carion só falhou uma performance. “Desde 2007, falhei um único ano e falhei porque tive que seguir a recomendação do meu médico, que me disse que tinha de descansar. Há oito anos, ainda durante os ensaios, fui ter com o Miguel e disse-lhe: ‘Miguel, estou com um problema de saúde’. Ainda assim, subi ao palco e completei a actuação. Só depois dos espectáculos fui submetido a uma intervenção cirúrgica. E não tive problema nenhum”, afiança.
Para que o patuá sobreviva ao veredicto de uma morte há muito anunciada, argumenta o veterano actor, é fundamental atrair sangue novo e perseverar. O desconhecimento da “dóci lingu di Macau”, assegura, é o menor dos empecilhos.
“As pessoas devem ter consciência de uma coisa. Para se levar ao palco um espectáculo de teatro, não bastam duas semanas ou vinte dias. São necessários meses. Quem assiste à récita, vê duas horas, mas são necessários meses para preparar aquelas duas horas. E quando apanhamos alguém novo no palco, temos de o ensinar. E não é só ensinar como se fala o patuá, é ensinar como se actua, como se pronuncia, como se enfatiza. Por vezes é necessário corrigir uma vez, duas vezes, três vezes, mas estamos cá para corrigir, para ensinar as vezes que for necessário. Precisamos de sangue novo para continuar”, reitera José Carion.
Optimista, José Carion não teme pelo futuro do teatro em patuá, mas também não escamoteia os obstáculos e desafios que o Dóci Papiaçám tem pela frente. E o maior é impossível de iludir: “Eu diria que o papel do Miguel em tudo isto é incontornável. Por enquanto, acho que não temos substituto. Não temos ninguém capaz de fazer o que ele faz.”
A preocupação é partilhada pela filha, para quem o dramaturgo e encenador é a força motriz, a alma e a chama por detrás da coesão do grupo: “Como o meu pai dizia, o único aspecto que não pode ser substituído é o Miguel. Ele possui um charme e um carisma que têm permitido reunir as pessoas e encontrar as pessoas certas para cada um dos papéis. Acho que o aspecto mais difícil no que diz respeito à tarefa de manter o Dóci Papiaçám vivo é a necessidade de o Miguel lá estar para manter coeso o grupo. Ele não é, propriamente, a pessoa mais fácil com quem já trabalhei. Pode escrever isso. Mas ele conseguiu manter este grupo de pessoas a trabalhar juntas ao longo de 30 anos”, assinala Paula Carion.
Miguel de Senna Fernandes acata o tom elogioso das preocupações dos colegas de grupo, mas refuta o estatuto de imprescindível que lhe é assacado. “As pessoas não são insubstituíveis. Cada um tem o seu estilo, é verdade, e dentro do seu estilo, as pessoas são insubstituíveis. Mas quando nos referimos a uma coisa que é comum, quando alguém desaparece, tem de ser substituído pelo outro. O outro vai retomar o percurso interrompido, vai impor o seu estilo e as coisas mudam de acordo com isto. O Adé tinha uma maneira de fazer teatro. Nós impusemos um outro estilo. Um estilo completamente diferente”, explica o encenador do grupo Dóci Papiaçám di Macau.
“Eu estou convencido de que as coisas não ficam por aqui, de que as coisas não vão cair no esquecimento. O Adé fez as suas récitas e depois as coisas pararam durante 16 anos. O teatro em patuá foi retomado 16 anos depois pelo Dóci Papiaçam. E porque é que foi retomado? Porque houve uma necessidade de retomar o que tinha sido deixado em suspenso. Há 30 anos, nós éramos a geração vindoura. Oxalá que agora haja jovens que olhem para tudo isto com uma outra perspectiva”, remata Miguel de Senna Fernandes.