Visitar a Papelaria Veng Lei pela primeira vez é uma caixinha de surpresas: ao contrário do que o nome português indica, a loja não vende artigos escolares, mas sim incenso, de diferentes formas e fragrâncias. Mais: apesar do nome Veng Lei ter nascido há oito décadas em Macau, o estabelecimento na Rua das Estalagens abriu há pouco mais de dois anos. Confuso? A Revista Macau foi conhecer melhor esta marca local, agora revitalizada
Texto Cherry Chan
Fotografia Cheong Kam Ka
Macau é amplamente (re)conhecida pelos seus biscoitos de amêndoa e pastéis de nata. No entanto, na história da cidade cabem outras indústrias, outrora pujantes, mas agora praticamente inexistentes. “Esperamos que um dia, todas as pessoas de Macau nos conheçam e compreendam os nossos produtos, tal como acontece com os produtos icónicos de agora”, diz o casal Wong Keng Si e Chen Yi Hsin, fundadores da renovada Papelaria Veng Lei, conhecida em inglês como Veng Lei Laboratory.
O produto a que se referem é o incenso – ou pivetes, como são denominados localmente os pauzinhos de incenso – que, a par com os fósforos e os panchões, integrava o grupo das principais indústrias artesanais de Macau em meados do século XX. A Papelaria Veng Lei original era uma das muitas lojas existentes em Macau no auge do sector.
Inicialmente inaugurado em 1942, o estabelecimento foi fundado por Chan Lai – avô de Wong Keng Si –, mas já então não vendia material escolar ou de escritório. A designação de “papelaria” deveu-se antes a um desencontro cultural: além de incenso, o estabelecimento comercializava lingotes de ouro feitos em papel e outros artigos do género, utilizados pela comunidade chinesa para queima em rituais religiosos, fruto de misturas de taoismo, budismo e folclore regional. Perante os artigos de papel, a então administração portuguesa do território assumiu tratar-se de uma papelaria. Como o fundador do negócio não sabia português, a designação ficou, explica Wong Keng Si.
A loja ficava na zona da Praia do Manduco. Muitos dos seus clientes eram pescadores, que aí se abasteciam para realizar oferendas e outros rituais em busca de protecção divina, antes de irem ao mar.
O estabelecimento original encerrou portas em 1985, numa altura em que as vendas estavam já em queda, para dar lugar a uma estrada, fruto de um processo de reordenamento urbano. O que não desapareceu foi o marco histórico da indústria de fabrico de pivetes a nível local, a qual passaria a integrar o Inventário do Património Cultural Intangível de Macau em 2020. Um ano depois, a Veng Lei (re)abria portas, mas num formato distinto.
Reformular de forma criativa
Na nova vida da Veng Lei, um dos objectivos foi manter as práticas tradicionais de fabrico de incenso, mas dar um novo uso ao produto final. Segundo Wong Keng Si e Chen Yi Hsin, para ser sustentável, o negócio tinha de ser transformado, de forma a ser mais inovador e atractivo para as novas gerações. Assim, o incenso produzido na Veng Lei passou a ter finalidades de purificação e perfume do ambiente, mas também de promoção da saúde e calma interior.
Os produtos são muito diferentes dos pivetes tradicionais, a começar pela embalagem: há incensos de vários aromas, desde flores a frutos, passando por uma gama dedicada a Macau. “Acreditamos que uma ligação entre as histórias de Macau e os aromas pode ser uma forma eficaz de divulgar a cultura local”, explica Chen Yi Hsin.
A loja pode criar incenso com aromas “à medida”, nota a co-proprietária. “Quando os clientes vêm à procura de certas sensações – por exemplo, querem sentir-se na floresta –, então, introduzimos no incenso esse tipo de aroma.”
A Veng Lei também vende estampas, amuletos, postais e outros produtos culturais e criativos. A ligação à loja original não está perdida: no estabelecimento actual, ainda é possível encontrar produtos para fins religiosos e de veneração das divindades.
Ao reposicionarem o incenso tradicional, Wong Keng Si e Chen Yi Hsin querem trazer os jovens para mais perto das suas raízes. “A nossa essência continua a ser o incenso, a nossa história temática continua baseada nas crenças religiosas de Macau, mas a nossa forma de as preservar pode ser criativa e atractiva”, afirma Wong Keng Si.
Preservar para o amanhã
Nascido e criado em Macau, Wong conheceu a formosina Chen Yi Hsin quando ambos estudavam cinema em Tainan, em Taiwan. Ela mudou-se depois para Pequim para prosseguir os seus estudos, enquanto Wong Keng Si se manteve em Taiwan, a completar um mestrado. Em 2020, já reunidos na capital chinesa – ele a trabalhar na indústria cinematográfica, ela empregada numa empresa de publicidade –, viram a pandemia da COVID-19 interromper a sua rotina. Foi então que nasceu a ideia de relançar a Veng Lei – pouco tempo depois, estavam em Macau para lançar mãos à obra.
Embora Wong Keng Si tenha nascido já após o fecho da loja original e depois do falecimento do seu avô, a história e tradições familiares foram-lhe passadas pela avó, que também o introduziu no mundo de fabricar incenso de forma manual. A essa base, o casal somou a sua experiência na arte de bem contar uma história, fruto do seu tempo na indústria cinematográfica: o guião para o sucesso estava pronto.
“Havia estas três grandes indústrias em Macau no passado”, explica Chen Yi Hsin. “Pensámos que, naturalmente, estes pivetes, ou incenso, que fabricamos, carregavam uma certa cultura e história, uma memória com valor para Macau.”
A primeira apresentação da Veng Lei foi sob a forma de loja “pop-up”, isto é, de formato temporário. A experiência correu bem e, alguns meses depois, (re)abria a Papelaria Veng Lei, agora na Rua das Estalagens, cravada numa das zonas mais antigas da cidade, não muito longe do Templo do Bazar. Para a decoração, os proprietários usaram artefactos da Veng Lei original, reutilizando ainda algumas das gaiolas de pássaros vazias que tinham encontrado no novo espaço – o edifício fora antes a casa da famosa loja Aves Estimação Va Yun, já encerrada.
A fim de darem continuidade à preservação da prática do fabrico de incenso, Wong Keng Si e Chen Yi Hsin têm trabalhado ininterruptamente para aperfeiçoar o seu domínio técnico, até porque há diferenças entre a produção de incenso ritual e incenso aromático. Aquele que produzem segue o método “hexiang”, em que cada pivete é fabricado individualmente de forma manual, mas que dá origem a um artigo final de maior qualidade.
Inicialmente, foi um processo de tentativa e erro, admite Wong Keng Si. Demorou algum tempo até conseguirem calibrar os níveis de moagem, acertar na proporção dos diferentes materiais e compreender qual o nível de humidade ambiente adequado para a produção de incenso. “É um processo de constante aprendizagem”, sintetiza Wong. Esse é um conhecimento que também procuram passar a outros, através de workshops e seminários.
A Papelaria Veng Lei ganhou nova vida há mais de dois anos, mas o co-proprietário diz que ainda é necessário elevar a visibilidade da marca. “Dizemos sempre que Macau é um mercado pequeno, mas, mesmo assim, ainda não nos conseguimos dar a conhecer a todas as pessoas.”
O empresário sublinha que o incenso faz parte da cultura e das crenças locais, estando enraizado na comunidade. “Não é possível que toda a gente goste dos nossos produtos, mas esperamos ser compreendidos e reconhecidos”, afirma. “Este é um dos nossos objectivos.”