É presença habitual em muitos momentos da vida comunitária do território: a dança do leão é um dos costumes mais enraizados em Macau. A Revista Macau foi falar com alguns praticantes da arte, para saber como está a ser assegurado o futuro desta tradição
Texto Cherry Chan
A prática é centenária em Macau, mas renasce a cada actuação: a vivificação do leão “acorda” o animal que, manobrado por dois dançarinos, executa vários movimentos e posições, seguindo o ritmo de tambores, gongos e címbalos, tocados de forma frenética pelos restantes membros da trupe. Tudo para solicitar protecção e segurança divinas e atrair bons augúrios. A tradição está viva e é fácil de encontrar no território, seja durante festivais como as celebrações do Ano Novo Lunar, seja associada à inauguração de eventos ou abertura de estabelecimentos comerciais, entre outros.
Serão certamente centenas as vezes que Pun Keng Man já ajudou o leão a ganhar vida. Pun preside à Associação Desportiva Leão Acordado “Lo Leong”, estabelecida em 1938. O grupo é um dos principais promotores da dança do leão em Macau.
Pun Keng Man explica que a prática tem mais de 100 anos no território. O veterano adianta que, para manobrar o leão, é necessário perícia e coordenação. Afinal, são precisos dois para dançar. “Precisam tanto de capacidade física como de sentido de arte”, diz. “Precisam de fazer os movimentos de acordo com o ritmo dos tambores e da música, enquanto a cabeça do leão também tem que fazer diferentes expressões.”
Herança chinesa, tesouro de Macau
O leão possui um importante simbolismo na cultura tradicional chinesa. As crenças tradicionais apontam-no como um animal protector, símbolo de força e coragem. Daí ser comum encontrar estátuas de leões à entrada de templos, palácios e outros lugares públicos, bem como de residências privadas: as estátuas são normalmente em pares, com o macho responsável por proteger a estrutura do edifício e a fêmea como a protectora do seu interior e habitantes.
Em Macau, a dança do leão é uma actividade tradicional, habitualmente realizada durante celebrações em templos, cerimónias de casamento e festivais populares. Tem como intuito afastar espíritos malignos e criar um ambiente de alegria e festividade.
O tipo de dança do leão tradicional no território tem as suas origens na cultura cantonense – ou de Lingnan, como também é denominada, numa referência à região a sul das montanhas de Nanling. Daí que seja conhecida como “dança do leão do Sul”, em oposição à “dança do leão do Norte”, tradicional das províncias mais setentrionais da China.
Enquanto arte performativa, integra artes marciais, dança e música: a sua origem e desenvolvimento em Macau estão intimamente ligados a escolas de artes marciais chinesas. Existem leões de diferentes cores, com simbolismo distinto. A prática foi integrada em 2020 no Inventário do Património Cultural Intangível de Macau.
Na dança do leão, o animal é composto por uma cabeça e um dorso felpudo. Há uma série de movimentos típicos, desde o “Choy Cheng” (apanhar uma alface ou outro vegetal com a boca) ao “caminhar em Meihuazhuang” (pequenos pilares com o topo em forma de flores de ameixa).
A tradição da dança do leão é sobretudo assegurada em Macau por associações locais, passando muitas vezes de geração em geração. Nas últimas décadas, a prática cultural tomou também a forma de desporto: foi uma das modalidades integrantes dos Jogos Asiáticos em Recinto Coberto, cuja segunda edição decorreu em Macau em 2007 e durante a qual a equipa do território de dança do leão obteve quatro medalhas, incluindo uma de ouro. A prestação valeu-lhe o Título Honorífico de Valor, entregue pelo então Chefe do Executivo, Edmund Ho Hau Wah.
Abertura a novos participantes
Antigamente, a dança do leão era sobretudo uma tradição familiar. A comunidade era fechada e não era fácil entrar. Mak Wang, que lidera a secção de artes marciais chinesas e de dança do leão e dragão da Associação Desportiva “Ou Kong Si San Kit Yee Tong” de Artes Marciais Chinesas, fundada em 1914, diz que a situação começou a mudar a partir da década de 1990. “Enfrentando um problema de envelhecimento entre os praticantes, começámos a introduzir a dança do leão junto das escolas, como actividade extracurricular, através de professores treinados pela nossa associação”, conta.
Foi o início de uma maior democratização da prática. Vários estabelecimentos de ensino oferecem hoje não só acesso à dança do leão como actividade extracurricular, como possuem as suas equipas, existindo até competições interescolares. A prática chegou também a mais organizações do território, com algumas a terem os seus próprios grupos de dança do leão.
Mak Wang acrescenta que muitas companhias locais também apoiam a tradição, abordando a sua associação para que leve a cabo performances em eventos empresariais. O dirigente recorda ainda o caso de estrangeiros que, durante as suas estadias em Macau, procuraram a associação, “para aprender alguns movimentos de dança do leão”.
Apesar da popularidade, quem pratica a dança do leão depara-se muitas vezes com problemas de falta de espaço adequado para treinar. São necessários locais com áreas suficientes para os dançarinos e toda a panóplia de adereços associada à dança do leão, bem como com um pé direito suficientemente alto para que seja possível executar as várias acrobacias. Mas isso não chega: devido aos elevados decibéis da música, muitas vezes a prática da dança do leão gera queixas dos vizinhos.
“Na verdade, a maioria dos residentes apoia esta actividade, por isso também tentamos o nosso melhor para não causar qualquer inconveniente ao público, nomeadamente quando treinamos”, diz Mak Wang. A sua associação tem acesso a um pequeno edifício antigo junto do Templo de Na Tcha, na Calçada das Verdades, onde guarda os materiais. Os treinos têm lugar no interior, mas também no terraço no topo do edifício. A associação procura levar a cabo os ensaios musicais durante a tarde, de forma a evitar incómodos de maior à vizinhança.
Na Associação Lo Leong, Pun Keng Man explica que os ensaios usualmente também decorrem no topo de um edifício. Durante os treinos, o grupo cobre os tambores com panos grossos, de forma a abafar o som das batidas.
Olhos no futuro
Apesar da maior abertura, as associações tradicionais ligadas à dança do leão continuam a funcionar como uma comunidade relativamente próxima, assegura Pun Keng Man. A sua associação acolhe crianças de tenra idade, procurando que as duplas que manuseiam cada leão possam aprender e evoluir em conjunto. “Temos membros novos todos os anos e temos equipas de diferentes níveis”, indica o responsável.
O dirigente afirma que, após um ou dois anos de treino, uma dupla é já capaz de efectuar os movimentos mais básicos da dança do leão. “Para actuações mais difíceis, possivelmente têm de ser treinados durante cinco anos antes de poderem subir ao palco.” Afinal, saltar em cima de estacas que podem ter mais de três metros de altura e uma base para pousar o pé com um diâmetro inferior a 40 centímetros é tarefa complicada: um passo em falso pode originar lesões graves. Além disso, há que contar com o peso da cabeça do leão, que pode superar cinco quilos, além da falta de visibilidade e calor causados pelo fato.
Lou Chon Hei, estudante universitário, é um dos membros da trupe de dança do leão da associação “Ou Kong Si San Kit Yee Tong”. Praticante há cerca de uma década, dá continuidade a uma longa tradição familiar de ligação à dança do leão: teve início com o bisavô e continuou nas gerações seguintes. “Gosto, tenho paixão por isto”, afirma. E, através dele, a associação também ganhou mais sangue novo: alguns dos seus amigos, inicialmente curiosos sobre a prática, acabaram por integrar o grupo.
Olhando para o futuro, Lou Chon Hei considera que a dança do leão se deve adaptar às novas realidades, mas sem trair as origens. “Precisamos de manter a tradição, mas podemos promover esta dança através dos meios de comunicação actuais”, explica. A sua associação já o fez, por exemplo, com recurso a “lives” em redes sociais.
Chung Pui Ying tem um percurso similar ao de Lou Chon Hei na associação “Ou Kong Si San Kit Yee Tong” – ou quase. A também estudante universitária está igualmente com o grupo há uma década, mas, ao contrário de Lou, toca música, não manuseia o leão. Também ela tem ajudado a rejuvenescer a associação, com algumas das suas amigas agora entre os seus membros.
“Era difícil obter qualquer informação sobre a aprendizagem disto quando eu era mais jovem, mas agora a situação mudou”, defende. “Há mais informação e temos alguns membros que estão a ensinar a dança nas escolas”, indica.